sábado, 27 de maio de 2023

Angola | Os Vendedores de Ossadas e as Vítimas – Artur Queiroz


Artur Queiroz*, Luanda

O golpe de estado militar em 27 de Maio de 1977 aconteceu. Mas os “sobreviventes” e familiares dos golpistas dizem que não. Foi apenas uma manifestação pacífica. O Estado-Maior Geral das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA) foi decapitado pelos golpistas. Só não morreram todos os comandantes na emboscada montada nas imediações do quartel da IX Brigada, porque o comandante Xyetu apercebeu-se das movimentações e conseguiu escapar. Angola estava e guerra contra exércitos invasores estrangeiros.

Entre 27 de Maio de 1977 e o Acordo de Bicesse em 31 de Maio de 1991 os “sobreviventes” e familiares dos golpistas estiveram calados. Como se não tivessem participado num sangrento golpe militar para derrubar Agostinho Neto e o MPLA. Provavelmente estavam arrependidos, por terem causado a morte de pessoas inocentes com a sua irresponsabilidade e oportunismo. Ou com medo de virem a ser responsabilizados pelos que perderam familiares, camaradas e amigos. Eles e elas lá sabem porque se remeteram ao silêncio.

Anunciada a mudança de regime e uma data para as eleições multipartidárias, os restos dos golpistas e seus familiares saíram das trevas e apareceram com as suas “verdades”. Pretendiam prejudicar eleitoralmente o MPLA, atribuindo à sua direcção tudo o que eles fizeram. Porque no dia 27 de Maio de 1977 a direcção do MPLA fez o que lhe competia. Defendeu-se dos golpistas e desmantelou as estruturas do golpe militar.

 Os golpistas torturaram, prenderam, sequestraram e assassinaram civis inocentes que não lhes obedeceram, dirigentes do MPLA que impediam a ascensão dos oportunistas, Comandantes das FAPLA que não permitiam a ascensão de impostores. Só não mataram Agostinho Neto, membros do governo e dirigentes partidários porque os serviços de segurança recomendaram o cancelamento de uma reunião do Conselho da Revolução no antigo Museu de Angola, Largo do Kinaxixi. Hoje Museu de História Natural.

Tudo o que escrevem no s livros ou artigos de jornais são aldrabices, delírios, invenções e falsificações dos factos históricos. Quem estava por trás dos golpistas em 27 de Maio de 1977 já se sabe. A direcção política e militar do golpe era tão fraca, tão cega pela ambição, que foi infiltrada ao mesmo tempo pela CIA e pelo KGB. Eram agentes da “Operação Natal em Angola” ou “Operação Cobra” liderada por altos chefes militares franceses e norte-americanos, mas também dos serviços secretos soviéticos, apostados em remover Agostinho Neto da liderança de Angola e do MPLA. Quem lhes paga hoje? Sigam o rasto do dinheiro e sabem quem dá corda aos restos e familiares dos golpistas.

O mais raivoso agente da aldrabice e da falsificação chama-se Carlos Pacheco. Este foi preso, sim. E libertado. Em finais de 1991 encontrámo-nos em Luanda ao fim de longos anos sem nos vermos, porque ele partiu para Moçambique. Como éramos grandes amigos, assim que soube onde residia, fui imediatamente visitá-lo. Uma grande festa pelo reencontro. Fomos os dois visitar amigos. Tenho fotos da visita que fizemos ao comandante Ndozi. Tenho na memória uma visita a casa de Fernando Costa Andrade (Ndunduma) e comandante Rui de Matos (Maio). Também a casa de Mário Pizarro. Nem uma palavra disse sobre o que aconteceu durante a sua prisão. Muito menos do golpe.

Um tal José Reis, que se diz vítima, publicou em 2018 o livro “Angola 27 de Maio a História por Contar”. Uma paródia. Um festival de aldrabices que nem uma criança tinha lata de bolsar. Mas o seu “depoimento” só aconteceu mais de 40 anos depois! Espertalhaço. Assim não corre o risco de ser desmentido pelos jovens, os desmemoriados ou os entretanto falecidos. Mentem porque isso lhes dá dinheiro. Apenas conta o dinheiro.

Em 1991 a direcção do MPLA, instada a explicar o que aconteceu no dia 27 de Maio de 1977 foi claríssima: Um gole de estado militar para derrubar o MPLA e Agostinho Neto. Os restos dos golpistas e seus familiares fizeram um partido, o PRD. O padre Joaquim Pinto de Andrade, da Revolta Activa, juntou-se aos golpistas que em 1976 o prenderam, às ordens de Nito Alves. Todos se puseram em bicos de pés para apanharem umas migalhas do poder.

Alguém lhes meteu na cabeça que o MPLA ia perder as eleições e era riscado do mapa político de Angola. O padre Joaquim Pinto de Andrade deu uma entrevista em Portugal e disse sem gaguejar que o seu partido ia ganhar as eleições. Os restos dos golpistas reforçados pelos revoltados inactivos tiveram uma derrota estrondosa. 

O chefe do partido dos golpistas de 27 de Maio de 1977, Luís dos Passos, foi candidato à Presidência da República. Conseguiu 1,47 por cento dos votos. Já agora. O PRD içou a bandeira de Nito Alves. Entre os seus activistas estavam José Fragoso e Silva Mateus da Fundação 27 de Maio. Só elegeu um deputado, Rui Augusto. Sacou as mordomias durante 16 anos e desapareceu. O PRD em 2008, nas primeiras eleições depois da guerra, registou,0,22 por cento dos votos. O partido foi extinto por falta de votos.

Era este o panorama quando o Presidente João Lourenço e o ministro Francisco Queiroz resolveram ressuscitar os golpistas e dar cobertura institucional às suas aldrabices e vigarices. Montaram o negócio das ossadas, os sócios zangaram-se e os assassinos viraram vítimas. As vítimas foram abandalhadas e vilipendiadas por um ministro e pelo Chefe de Estado. Assim estamos.

Hermínio Escórcio é militante do MPLA desde 1961, quando era funcionário do Laboratório de Engenharia de Angola (LEA). Criou uma célula importante na instituição e num ano estavam de pé estruturas do movimento em Luanda, Lobito e outros centros urbanos de Angola. Em 1963 foi julgado num Tribunal Militar e condenado. Esteve preso na Foz do Cunene durante nove anos. Só foi libertado após o 25 de Abril de 1974.

No mesmo julgamento foram igualmente julgados e condenados Aristófanes Couto Cabral, meu amigo dos tempos de Camabatela. Teresa Gama, a grande artista plástica angolana injustamente esquecida e ignorada. Mário Torres, um dos mais esforçados militantes na criação de estruturas para o MPLA em Luanda. Luís Rita, o homem que fez milagres à frente das finanças do movimento, em 1974. Aires de Almeida Santos, o nosso poeta do Chinguar universalizado pela sua trova Meu Amor da Rua 11. Lopo do Nascimento ou Roberto de Almeida, altos dirigentes do MPLA na transição e depois da Independência Nacional.

Hermínio Escórcio era o homem de confiança de Agostinho Neto. Eu tratava-o por Vice-Presidente da República. E era mesmo. Em 1974 criou uma estrutura na área da comunicação social que venceu a batalha da informação no período entre o 25 de Abril de 1974 e 11 de Novembro de 1975. Com poucos ovos fez uma imensa omeleta que muito contribuiu para a chegada do MPLA ao poder. Mais importante ainda. Com Manuel Pedro Pacavira e Aristides Van-Dúnem refundou o MPLA no interior sob a liderança de Agostinho Neto. Assim acabou com as “revoltas” a leste e inactivas. Um Herói Nacional. Um Angolano de excepção. Temos para com ele uma imensa divida de gratidão. Obrigado Hermínio. 

José Van-Dúnem tinha 24 anos no 25 de Abril de 1974. Familiares e correligionários publicaram uma biografia dele que só está certo o nome, o nome da mamã e do pai. Verdades indesmentíveis: Quando foi preso estava a cumprir o serviço militar obrigatório no quartel dos “Dragões” no Cuito (Silva Porto). Era soldado atirador de cavalaria. Nunca teve uma profissão. Aos 27 anos queria ser presidente da república dos golpistas. Menos mal. 

O Betinho era ainda mais novo, aprendeu comigo umas coisas na Rádio e no governo dos golpistas ia ser o ministro da Educação. Nito Alves, um impostor com lata de vendedor da banha da cobra. Não sabia fazer nada. Aderiu ao MPLA na I Região (Dembos) quando a guerrilha estava adormecida. Queria ser chefe do governo dos golpistas.

Jacob Caetano, comandante Monstro Imortal. A única cabeça no meio de um bando de oportunistas desmedidamente ambiciosos mas ocos. Tinha um pensamento estruturado. Experiência política. Profundo conhecedor do panorama político africano. Um quadro político-militar de grande valor. Uma perda terrível. Éramos amigos. Mas não fiquei surpreendido quando soube do seu envolvimento no golpe. O seu passatempo favorito era estudar e analisar os golpes de estado em África. Sabia tudo sobre a matéria. 

Sita Vales, uma oportunista, irresponsável e desmedidamente ambiciosa. Não sabia nada de nada. Era a mentora ideológica de Nito Alves e José Van-Dúnem. Era tão fraquinha que foi expulsa do MPLA no final de 1976. Pertencia à direcção política e militar do golpe de estado. Nito Alves, ante o tribunal marcial que o julgou foi muito claro: José Van-Dúnem e Sita Vales deram ordens para matar os comandantes que estavam presos. E antes escreveu o mesmo! Eu tive acesso ao seu depoimento. Este documento, ninguém rasgou, ninguém o queimou, ninguém o escondeu. Felizmente. Essas páginas manuscritas, só por si desmentem todas as aldrabices.

Hoje publico este depoimento de Hermínio Escórcio sobre o 27 de Maio de 1977:

“Em vésperas do dia 27 de Maio havíamos sido informados pelos serviços de segurança de que os fracionistas se preparavam, a qualquer momento, para sair à rua, prender e matar gente. Foi por isso que Agostinho Neto mandou abortar uma reunião do Conselho da Revolução que devia ter tido lugar no Museu de História Natural em que os fracionistas se preparavam para tomar de assalto, enjaular a direção do MPLA e depor o Presidente Neto.

Semanas antes fui avisando alguns deles, entre os quais o meu cunhado Bernardo Teixeira “Nado”, para não se meterem nisso. No dia 21 de Maio, num meeting no pavilhão da Cidadela Desportiva, foi tornada pública a destituição de Zé Van-Dúnem e de Nito Alves do comité central do MPLA. Ninguém queria ler o comunicado, com medo. Foi o Saidy Mingas que se levantou, pegou no documento e decidiu, de forma destemida, assumir a sua leitura. Depois morreu como morreu...

Na manhã do dia 27 de Maio estava em casa quando me apercebi que a Rádio Nacional de Angola (RNA) havia sido tomada. O embaixador da Nigéria foi a minha casa para me perguntar por que razão havia alteração na ordem pública. Disse-lhe que não sabia...

Fui para o meu gabinete no Palácio da Cidade Alta e de lá telefonei para o Futungo de Belas mas de caminho pude avistar o Onambwe e o Delfim de Castro dentro de um tanque, que se dirigia para as instalações da RNA onde já estava no ar o programa radiofónico Kudibanguela controlado pelos fracionistas.

Depois da retomada da RNA fui o primeiro dirigente a lá entrar e encontrei já algumas pessoas presas entre as quais o Carlos Garcia (que viria a ser mais tarde diretor da TPA) a quem dei imediatamente ordens para que fosse libertado porque nada tinha a ver com os golpistas.

Sai da rádio e fui até â Avenida Lisboa para ver se havia rastos de sublevação. Liguei ao Neto, disse-lhe que estava tudo calmo e ele prontamente afirmou: “então posso ir até aí!” Disse-lhe que por uma questão de segurança, talvez fosse melhor ficar pelo Futungo. O Presidente disse-me que ia então mandar chamar a imprensa para fazer o ponto da situação. Mal sabia ele que o Saidy, o Eurico e o Garcia Neto já tinham sido mortos...

Mal sabia também que alguns comandantes haviam caído na emboscada montada pelos fracionistas na IX Brigada. Quando soube de tudo isso, o Presidente ficou completamente transtornado. Não queria acreditar no que lhe estavam a dizer que havia acontecido.

Eu em simultâneo disse ao Rui Carvalho, que trabalhava no Comércio Interno, para tomar conta da Rádio mas este exigiu que fosse exarado um despacho a nomeá-lo, o que acabou por ser feito pelo Lúcio Lara.

O Rui, o João Abel, o Rodrigues Vaz e outros radialistas a partir daquele momento tomaram conta da Rádio. O Iko e o Xietu tomaram conta das operações militares.

Uns dias depois fui à Fortaleza de S. Miguel e lá encontrei o Zé Van-Dunem (estava descalço e coberto por um lençol), o Juca Valentim e o Nado. Ainda falei com o Jacob João Caetano (Monstro Imortal) chefe do estado-maior adjunto das FAPLA e outros quadros. O único que não veio falar comigo, envergonhado, foi o David Aires Machado (Minerva), então ministro do Trabalho. O Zé Van-Dunem perguntou-me pelo pai e disse-lhe que o velho Mateus estava desfeito, nem ele, nem ninguém esperava que ele (Zé) se metesse numa encrenca tão grave. O Zé por fim fez-me um pedido: “olhem ao menos para o meu filho...”.

Esse menino foi seguramente uma vítima. É uma vítima. Será vítima enquanto viver. Tenham respeito por ele e todas as outras vítimas. Acabem com o negócio do 27 de Maio.

* Jornalista

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