domingo, 28 de maio de 2023

Angola | PALAVRAS DISPARADAS COMO PEDRADAS

Artur Queiroz*, Luanda

O Presidente da República disparou estas palavras a propósito do golpe militar do 27 de Maio de 1977, que ocorreu há 46 anos: “Pedimos desculpas públicas e perdão pelas execuções sumárias”. Confesso que me atingiram como pedradas violentas. Fiquei em choque. Li, reli, tresli, analisei, estudei e concluí que fui injusto, para o Chefe de Estado. Porque sim, os golpistas fizeram execuções sumárias.

O Comandante de Coluna Eurico Gonçalves foi preso em casa do Comandante Tetembwa, no bairro Patrice Lumumba (antigo Bairro do Cruzeiro), levado para o quintal do Kiferro e aí foi torturado barbaramente. Quando os golpistas se sentiram perdidos, pegaram nele e levaram-no para a lixeira de Luanda, atirando-o ao lixo, depois de esventrado com uma baioneta. Ficou ali agonizando. Execução sumária. Porque se recusou a patentear os usurpadores que se diziam “comandantes” da I Região (Dembos). 

Até o Zé Van-Dúnem queria patente de oficial superior porque era comandante da guerrilha! Foi guerrilheiro no Liceu Paulo Dias de Novais, em Luanda. No Regimento de Infantaria de Nova Lisboa como recruta e guerrilheiro de cavalaria nos “Dragões”, Cuito (antiga Silva Porto). 

O Comandante de Esquadrão Saidy Mingas (Lutuima) e ministro das Finanças do Governo da República Popular de Angola foi executado sumariamente pelos golpistas. Luís dos Passos e outros golpistas atraíram-no a uma cilada no Eixo Viário. Preso e torturado, foi executado e atirado para a lixeira de Luanda no Sambizanga, mais tarde espaço do Mercado Roque Santeiro. Foi executado porque ousou, no comício da Cidadela, ler a decisão de expulsar Nito Alves e José Van-Dúnem do Comité Central do MPLA.

Nessa fase os golpistas já se comportavam como vencedores. Ameaçavam e perseguiam quem lhes fazia frente. Ninguém quis ler o comunicado da expulsão. Saidy Mingas, corajoso como sempre, leu. Arrancaram-lhe a barba, cortando a pele da face! Abateram-no à queima-roupa. Depois atiraram com o cadáver ao lixo. 

Garcia Neto, diplomata. Ex-preso político. Agostinho Neto contava com ele para primeiro embaixador de Angola em Portugal. Quando soube do desencadear do golpe, às primeiras horas do dia 27 de Maio de 1977, sabendo que o Comandante Eurico, seu amigo e antigo colega na Faculdade de Direito em Coimbra, estava em perigo, foi protege-lo em casa do Comandante Tetembbwa, que estava ausente. Foi apanhado pelos golpistas. Levado para o quintal do Kiferro foi torturado e depois abatido. Atiraram com cadáver ao lixo. 

Estas três vítimas do 27 de Maio de 1977 foram executadas sumariamente. Mas em nome da verdade devo dizer que José Van-Dúnem e Sita Vales não deram a ordem de execução. O casal golpista só mandou matar os comandantes que estavam presos na parada do quartel da IX Brigada.

Hélder Neto, nacionalista julgado e condenado no “Processo dos 50”. Oficial de inteligência militar no Ministério da Defesa. Foi executado sumariamente pela golpista Virinha no pátio da Prisão de São Paulo. Esta vítima dos golpistas também não foi executada por ordem do casal José Van-Dúnem e Sita Vales. 

Os Comandantes de Coluna Paulo Silva Mungungo (Dangereux), Eugénio Veríssimo da Costa (Nzaji) e José Manuel Magalhães Paiva (Bula Matadi) foram executados sumariamente por ordem de José Van-Dúnem e Sita Vales. Eram membros do Estado-Maior Geral das FAPLA. 

O Comandante de Coluna Petroff e na época comandante-geral da Polícia Nacional (Corpo da Polícia Popular de Angola) escapou graças a um estratagema montado por Melo Xavier, que conseguiu levá-lo da IX Brigada para o Hospital Militar. Os golpistas estavam convencidos de que tinham tomado o poder, permitiram a transferência. 

O Comandante de Coluna Ciel da Conceição (Gato) foi levado pelos golpistas da IX Brigada para a lixeira de Luanda e quando metralharam os prisioneiros ele teve a sorte de escapar aos tiros porque outros corpos já atingidos o protegeram. Saiu do lixo para comandante da Força Aérea Nacional.

João Lourenço pediu desculpas e perdão por estas execuções sumárias. Pensando bem, analisando todos os factos, friamente, sem paixão, não podia ser outra coisa. Porque os membros da direcção política e militar do golpe foram julgados em tribunais marciais, condenados e executados. É assim quando militares se levantam em armas para tomar o poder num país em guerra. As FAPLA lutavam contra invasores estrangeiros na Frente Norte, na Frente Leste e na Frente Sul. Os golpistas decapitaram o Estado-Maior Geral.

Virtualmente todas as forças armadas do mundo têm um sistema de corte marcial para julgar militares que quebrem a disciplina, a hierarquia e as regras castrenses. Em 1977, a República Popular de Angola tinha pena de morte. O MPLA era a fonte de todos os poderes. 

José Van-Dúnem e Nito Aves foram expulsos da direcção do movimento por fraccionismo, crime gravíssimo na época. Os factos foram apurados num inquérito conduzido por José Eduardo dos Santos, membro do Bureau Político. O inquiridor foi escolhido pelos dirigentes expulsos. Esse inquérito existe. Compete à direcção do MPLA divulgá-lo ou mantê-lo e segredo como tem feito até agora. Mas os dois expulsos também eram militares, ainda que de vaidade. Sita Vales foi expulsa de militante do MPLA, em 1976, por “oportunismo, intriga e indisciplina”. Outros militantes foram parar ao Bentiaba para reeducação. Eram as regras da época.

A execução dos membros da direcção política e militar do golpe de estado do 27 de Maio de 1977 foi decidida por tribunais marciais. Todos os executados fizeram depoimentos escritos. Só não responderam em tribunal marcial os que morreram em combate ou foram linchados pelos militantes em fúria. 

Um negociante do 27 de Maio, José Fuso, assinou (alguém escreveu por ele) um texto no Novo Jornal ilustrado com a foto de uma página do Jornal de Angola com o título: “Amarrem-nos Onde Forem Encontrados”. E as fotos de Nito Alves, José Ban-Dúnem, Bakalof, Pedro Fortunato e Betinho. Foram mesmo amarrados. Outros com menos responsabilidades que estes foram linchados pelo povo em fúria. Os golpistas causaram uma tragédia com a sua irresponsabilidade e ambição desmedida. Mas também racismo e tribalismo.

O Estado Angolano não deve desculpas nem pedidos de perdão aos golpistas. Todas as mortes, até as deles, são da sua exclusiva responsabilidade. Só numa situação de loucura extrema alguém responsabiliza as vítimas de um golpe pelas suas consequências. Só por cegueira e espírito de vingança alguém responsabiliza o Estado pelos actos de golpistas contra o Estado. 

João Lourenço não pode estar atacado de cegueira nem exibir um espírito de vingança. Quando disse “pedimos desculpas públicas e perdão pelas execuções sumárias” estava a referir-se aos Comandantes do Estado-Maior Geral das FAPLA, ao ministro Saidy Mingas, ao diplomata Garcia Neto e ao oficial de inteligência do Ministério da Defesa, Hélder Neto. Pediu perdão pelos seus, os golpistas que os executaram. Mas foi exagerado fazê-lo no papel de Chefe de Estado. E esse exagero prestou-se a confusões e aproveitamentos dos restos e familiares dos golpistas.

Hoje o 27 de Maio foi comemorado oficiosamente. Nelson José, líder do Movimento da Juventude Angolana (MOJA) e Tito Cambanje jurista e docente, foram a Catete exaltar os golpistas mas também o Presidente da República por ter criado “os pressupostos para que voltemos a confiar em nós.” O autor das “reformas estruturais para gerar emprego e riqueza.”

O jurista adorador dos golpistas também elogiou o negócio das ossadas que corre “de forma idónea e criteriosa com todos os testes para se verificar se são ou não dos donos da nossa amada terra. Uma Iniciativa e magnanimidade do Presidente da República que olhou para Angola com sentido de estado. Só perdoando uns aos outros vamos criar condições para que a nossa terra possa ganhar níveis de desenvolvimentos sustentáveis”. Estás perdoado, Cambanje!

O Nelson José disse à cabeça que o Presidente da República “é um símbolo nacional e incentivamos o nosso querido presidente a prosseguir com a s suas acções. É o grande promotor do combate à corrupção e à impunidade, isto determina que o país avance. Essa visão do nosso presidente leva-nos a acreditar que estamos no caminho certo. Abriu portas para uma Angola melhor com o pedido de perdão. Perdoar é para estarmos todos unidos a combater os inimigos de Angola que mancham o nome do nosso Presidente.” Estás desculpado, Nelson José. Kanguimbu Ananás também esteve na festa mas como sobremesa. Já estava tudo bêbado e a arrotar quando ela foi servida. Ainda vai a ministra! 

O dia de hoje foi importantíssimo porque o ministro da Justiça, Marcy Lopes, divulgou números que atiram com todas e todos os aldrabões para a lixeira da História Contemporânea de Angola. Sua excelência revelou que até hoje os serviços oficiais receberam 4.234 pedidos de certidões de óbito de pessoas desaparecidas. Até hoje foram emitidas 2.787 “no âmbito do 27 de Maio”. E garantiu que “o processo corre de uma forma idónea e credível”. Anunciou que os descobridores e identificadores de ossadas agora vão para a Jamba e Huambo. Onde estão os familiares de 30, 40, 50, 100 mil mortos? Mentirosos desmentidos pelos números.

O golpista Silva Mateus confirma: “Estamos dentro do assunto. Está tudo a correr bem. Reiniciámos os trabalhos. Suspeições não afectam a seriedade dos trabalhos”. Cornélio Caley também falou: “ Estamos aqui para acalmar as almas das pessoas das famílias. O processo não é fácil”. A sério? Kiene!

*Jornalista

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