terça-feira, 8 de agosto de 2023

JMJ Portugal | TODOS, TODOS, TODOS?

Hábil líder político e bom comunicador, Francisco teve nesta ação de propaganda a inestimável ajuda dos media nacionais, quer na interminável cobertura quer na abordagem totalmente acrítica - num misto de ignorância, histeria e reverência - de tudo o que disse.

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

É bonito e é comovente, sem dúvida, uma imensa multidão a repetir, ao mote de um líder político-religioso, "todos, todos, todos", num manifesto de igualdade e inclusão. Não ouvi, só li as descrições, mas duvido muito que, pela TV ou presencialmente, essa promessa a tantas vozes não me levasse às lágrimas - afinal, vai direita àquilo que em qualquer ativista dos direitos humanos, ateu ou não, constitui o fulcro do sagrado: os outros, todos os outros, irmãos (Fratelli Tutti, como no título da terceira encíclica deste papa).

Acresce que, com o seu olhar compassivo e o seu discurso bem-humorado, contemporâneo, e as suas saídas mais ou menos revolucionárias, a puxar à sul-americana teologia da libertação - defesa da libertação dos oprimidos, "opção preferencial pelos pobres" -, Francisco entra fácil no coração. Como entra fácil no coração a ideia de um líder religioso que, contra toda uma história de crueldade e exclusão, quisesse revolucionar a sua igreja, transformando-a à imagem do mais fundamental e belo dos mandamentos, o amor.

Percebo assim que se queira gostar de tudo o que diz, que tanta gente de esquerda se encante com ele e, também e talvez sobretudo, o queira usar como bandeira. Que se queiram ignorar as fífias, as contradições, os passos em falso, a demagogia, a manipulação, a conversa mole, os pronunciamentos graves. As traições.

Percebo que seja assim para muitos (sobretudo porque, por falta de informação, não veem as contradições), e até para a generalidade dos ditos "comentadores" - afinal, a maioria não quer fazer-se antipática, e quem critica o papa, ainda para mais no meio de uma operação de marketing religioso apresentada como desígnio nacional, atrai inevitavelmente apodos como "odiento", "mata-frades", "radical" (quando não é muito pior). Portanto é normal, dizia (no sentido em que uma certa sonsice é normal) - exceto nos jornalistas. De jornalistas espera-se que não façam papel de propagandistas ou catequistas. Que contextualizem, que contraponham, que verifiquem. Que, sobretudo, façam perguntas.

Não é por acaso que, no voo de regresso a Roma, Francisco congratulou a jornalista alemã Emma Hirschbeck pela "coragem" de lhe fazer a pergunta óbvia: "Como explica a incoerência entre uma igreja aberta a todos, todos, todos, e uma igreja que não é igual para todos - onde nem todos têm os mesmos direitos, oportunidades, no sentido de que, por exemplo, mulheres e homossexuais não podem receber todos os sacramentos?"

Hirschbeck referia-se, claro, àquilo que o teólogo alemão Hans Kung apelidou de "difamação fundamental das mulheres", o papel humilhante e insultuoso ainda hoje a elas alocado na igreja da qual Francisco é monarca absoluto - desde logo por lhes estar vedado o sacerdócio (com a desculpa, formulada por João Paulo II, de que Jesus foi homem e portanto os seus representantes não podem ser mulheres). A jornalista aludia também ao Catecismo que, a parágrafos 2357 e 2359, classifica a homossexualidade como "depravação grave", só remediável pela "castidade", assim como à determinação vaticana de 2021, expressamente aprovada por Francisco, de que os casais de pessoas do mesmo sexo não podem ser alvo de bênção por padres católicos (uma determinação à qual bispos de vários países têm desobedecido) porque, e cito, a Igreja "não pode abençoar o pecado".

Pergunta evidente, a de Hirschbeck, como evidente deveria ter sido, nos media portugueses, a contextualização com informação básica sobre os ditames católicos (que a maioria das pessoas, católicos auto-identificados incluídos, desconhece), e a análise daquela proclamação de Francisco à luz da realidade da sua organização e daquilo que tem sido o seu discurso.

Um discurso que parece ter evoluído desde a sua entronização, em 2013, quando disse que a questão da ordenação das mulheres estava "encerrada", e desde 2010, quando, como bispo de Buenos Aires, se opôs à aprovação da lei que permitiu o casamento de pessoas do mesmo sexo, apelidando-a de "maquinação do diabo", e "destruição do plano de Deus". Uma evolução aparente que porém se contradiz quer nos ditames vaticanos de que é fonte de autoridade suprema quer nos seus próprios escritos, como na exortação apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do Amor, 2016)": "Não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família".

Em resposta à pergunta da jornalista alemã, Francisco asseverou que não há contradição, porque uma coisa é a Igreja acolher toda a gente, outra são as suas regras de funcionamento. Mas para exemplificar o acolhimento de "toda a gente", incluindo os homossexuais, não podia ser mais cruel na dicotomia: "Todos! Doentes e saudáveis, velhos e jovens, feios e bonitos... bons e maus!".

Bons e maus, doentes e saudáveis. A dicotomia na qual o papa inclui os homossexuais ressoa ainda mais lúgubre quando, como frisa o chileno Juan Carlos Cruz Chellew (que, sobrevivente de abuso, foi nomeado por Francisco, de quem é considerado próximo, para a Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores), nem os bispos católicos do Uganda nem o departamento vaticano das relações exteriores, o Dicastério para a Evangelização, se opuseram à lei daquele país conhecida como "matem os gays". Em vigor desde maio, a lei impõe penas para a homossexualidade que incluem a morte.

Aliás, explica Chellew num artigo publicado em junho, não é que as autoridades católicas ugandesas estejam todas caladas; quando falam é para, como no caso do bispo Sanctus Lino Wanok, dizer que a homossexualidade "não é humana" e é "o mesmo que a morte".

Sem apelar diretamente a Francisco, o ativista homossexual chileno não podia ser mais pungente na sua súplica: "É tempo de ouvirmos aqueles de quem se espera que guiem moralmente os seus milhões de seguidores. O silêncio é ensurdecedor; o custo pode ser a morte e a violação de direitos humanos básicos. É inaceitável. O mundo, e mais importante ainda, a comunidade LGBTQ+ do Uganda, espera que honrem o princípio cristão fundamental de amar o nosso vizinho."

Todos, todos, todos? Pois depende. As conversas que se têm no Parque Eduardo VII - ou "Colina do Encontro", como o crismaram para esta festa -, num país no qual a discriminação é proibida pela Constituição e a lei do casamento das pessoas do mesmo sexo fez 13 anos, não são as mesmas que se dirigem às multidões em África.

Quando em novembro de 2015 fez um tour por esse continente onde mais tem progredido, nas últimas décadas, o número de fiéis católicos, e apesar da crescente demonização dos homossexuais que ali se verificava (a homossexualidade é proibida em mais de 30 países africanos), Francisco não disse uma palavra sobre o assunto. E se já várias vezes, depois disso, declarou que "ser homossexual não é um crime - é um pecado, mas não um crime", sobre o Uganda, até hoje, nada.

"Quero ser claro convosco, que sois alérgicos às falsidades e a palavras vazias", disse Francisco aos jovens portugueses."Façam perguntas, perguntar é bom." Ninguém fez.

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