Lembrar o que se passou há 50 anos no Chile é inseparável de pensar o presente, o processo de revisão constitucional em curso, as limitações aos direitos que continuam a imperar por decorrerem de um sistema económico aplicado pelo golpe e que se mantém praticamente inalterado.
Sofia Lisboa | AbrilAbril
O processo transformador chileno,
conhecido como a «via chilena para o socialismo», com a chegada da Unidade
Popular ao poder pela via eleitoral, não conseguiu sobreviver para comemorar o
seu terceiro aniversário. Financiado e orquestrado pela CIA e precedido de um
bloqueio económico, o golpe fascista de 11 de Setembro de 1973 implementaria
uma ditadura militar liderada por Augusto Pinochet que iria durar 17 anos.
Salvador Allende, o presidente eleito, que achava possível construir o
socialismo pela via pacífica, morreu neste dia, há 50 anos, durante o ataque ao
Palácio
Na preparação do golpe, o poder económico promoveu uma campanha mediática contra o governo da UP, em conjunto com a paralisação da rede de transportes e a fuga de capitais.
Parte do Plano Condor, delineado pelos EUA como forma de controlar os países da América Central e do Sul, este golpe serviu para instalar um governo que implementava políticas de mercado livre na esfera económica, com recurso à violência e ao autoritarismo exercidos contra os trabalhadores. Foi uma das primeiras experiências neoliberais realizadas e só foi possível graças à repressão e perseguição de amplas camadas sociais, especialmente as envolvidas no processo político transformador dos anos anteriores. Este regime durou até 1990 e, como resultado, muitos milhares de pessoas foram mortas, presas e exiladas. As suas consequências continuam a fazer-se sentir no país até aos dias de hoje.
Ainda assim, não existe uma única memória social hegemónica, mas sim memórias contestadas – sobre o que e como lembrar este período – que ao longo do tempo podem ser modificadas e até invertidas na relação entre o que em tempos pode ter sido a memória dominante e as memórias alternativas, até então marginalizadas da esfera pública. No caso chileno, a memória social em torno da forma de processar e reinterpretar o golpe militar e as suas consequências mudou ao longo de cinquenta anos, de acordo com as circunstâncias históricas, o cenário político, a situação económica e social, os debates historiográficos e os actores sociais em jogo, sem excluir o debate sobre o projecto de nação a ser construído.
Durante a década de 1970 e até aos primeiros anos da década seguinte, o governo militar conseguiu impor à sociedade chilena – através da repressão, da desarticulação política e do controlo dos meios de comunicação social – uma narrativa hegemónica: o golpe militar fora um acto «indispensável» para salvar o país do «caos» em que o governo da Unidade Popular o tinha mergulhado, e para evitar que o comunismo se instalasse no Chile.
Ao mesmo tempo, de forma inicialmente dispersa e fracturada, abrigadas primeiro na memória individual ou em grupos isolados, as memórias de resistência, alternativas e transgressoras, de vítimas e opositores da ditadura, começaram a criar vasos comunicantes, traduzindo-se, entre outros exemplos, nas acções dos familiares dos detidos-desaparecidos que se acorrentaram ao antigo edifício do Congresso ou realizaram protestos com fotografias das vítimas, no bordado das arpilleras ou na criação de redes culturais clandestinas.
Em 1983, no auge da ditadura
militar, após a aprovação da Constituição de
No entanto, a crise económica que afectou gravemente a recém-desregulamentada economia chilena traduziu-se em mobilizações sociais e protestos violentos que favoreceram a visibilização de memórias dissidentes, a que se acrescentou mais tarde uma repressão mais selectiva, mas igualmente mortífera. No conjunto, estes factores permitiram uma relativa mudança de opinião pública, e contribuíram para a vitória do «Não» no plebiscito de 1988 e para a transição para um regime político democrático.
A partir de 1990, ao mesmo tempo que vários grupos de direitos humanos realizavam importantes mobilizações e lutas quotidianas para divulgar o horror da ditadura militar e para exigir «Verdade e Justiça», os depoimentos das vítimas e seus familiares sintetizados, por exemplo, no Relatório Oficial da Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação em 1991, bem como na publicação de investigações histórico-sociológicas, estudos sobre as consequências da repressão, memórias, investigação jornalística, testemunhos sobre as experiências prisionais de presos políticos, e documentários, entre outros materiais, foram documentando as violações dos direitos humanos e reforçaram a memória da repressão, dando voz à memória de grupos e indivíduos que não encontravam espaço na sociedade nem na memória ditatorial hegemónica, nem tão pouco na memória de transição.
Embora, desde 1990, se tenham registado esforços governamentais para esclarecer a natureza dos crimes cometidos pelo regime militar e uma série de actos simbólicos e rituais públicos tenham sido destinados a reconhecer que parte da história recente envolveu um período prolongado de sofrimento colectivo, cuja memória – especialmente a dos que sofreram as suas consequências devastadoras – merecia ser aliviada, os esforços institucionais dos governos da Concertação, embora meritórios, revelaram-se insuficientes.
A vontade política (que se trata de uma opção) era a de dar prioridade à governabilidade democrática, ainda que «branqueando» a memória traumática do golpe militar e os seus objectivos, bem como olhar para o futuro de forma a manter no essencial as medidas económicas iniciadas pelo governo militar, circunscrevendo a participação social aos limites estreitos e legalmente estabelecidos pelo governo.
A terça-feira, 11 de Setembro de 1973, é um marco na história do país, um momento em que a vida de milhares de chilenos mudou para sempre. O institucionalismo foi atacado e o Estado de direito foi ferido de morte. A ocupação militar deu lugar à criação da Junta de Governo que, após o encerramento do Congresso Nacional, exerceu autoridade absoluta no país. Durante a ditadura, milhares de chilenos e chilenas foram perseguidos, privados da sua liberdade, exilados, exonerados, torturados, executados ou feitos desaparecer. Os organismos de segurança semearam o medo e exerceram o controlo sobre os cidadãos através do terror, da vigilância permanente, das listas negras e da censura. A repressão massiva – mais de 40 mil vítimas de execuções, desaparecimentos e torturas, segundo os relatórios das Comissões da Verdade e Reconciliação e de Prisão Política e Tortura, Rettig e Valech – teve um enorme impacto e foi objecto de condenação e solidariedade internacional.
A violência interna ultrapassou
as fronteiras e registaram-se uma série de atentados no estrangeiro, como os
assassinatos de Orlando Letelier e Ronni Moffitt em Washington, do general
Carlos Prats e da sua mulher Sofía Cuthbert
Mas este terrorismo organizado foi utilizado com um objectivo: conseguir travar a revolução democrática chilena e a restauração grande-burguesa e imperialista. O 11 de Setembro e o fascismo chileno converteram-se num dos expoentes conspirativos do imperialismo norte-americano na América do Sul, nos anos de 1970 e 1980. O plano arquitectado por Kissinger – que receberia o Nobel da Paz a pretexto do seu contributo para o cessar-fogo na guerra do Vietname desatada pelos EUA – tinha precisamente como núcleo ideológico o anticomunismo, funcionando como instrumento subversivo e de terrorismo de Estado com vista a salvaguardar o domínio incontestado dos EUA na região. O exemplo do sistema político e económico de Allende não podia ser bem sucedido. Por sua vez, a ditadura chilena torna-se a montra da aplicação da cartilha do neoliberalismo, seguindo os preceitos da escola de Chicago de Milton Friedman. Têm lugar as privatizações dos sectores estratégicos, a rigidez monetarista e a financeirização da economia, a desresponsabilização social e desregulamentação do papel do Estado que se reflectem na dinâmica de precarização das relações laborais, resultando na super-concentração da riqueza, no aumento das desigualdades sociais e no empobrecimento de largas camadas da população.
Cinquenta anos depois, com a Constituição de Pinochet ainda em vigor e com as direitas a liderar o processo de revisão constitucional ansiado por muitos, a desilusão e frustração reinam. O que está em causa no Chile continua a ser a forma como se compreende o passado, como se mobiliza e se constrói a unidade em torno do que dele se pode retirar, como se trava a sua «higienização» e equiparação (e rejeição) de dois períodos incomparáveis – o de Allende e o de Pinochet –, para organizar um futuro que responda às necessidades da maioria.
Imagens: Sofia Lisboa
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