Byung-Chul Han. McLuhan. Marx. Deleuze… A partir destes autores, Bifo Berardi analisa sistema em mutação, que captura tempo e desejo, tornando-os matemática. O porvir exigirá respirar para reaver a dimensão poética da vida
Franco Berardi, em entrevista a Ruben
H. Rios, no Perfil |
Franco “Bifo” Berardi (1949) pode
muito bem ser caracterizado, embora em certa medida, como um filósofo, escritor
e crítico cultural de esquerda. Durante a década de 1970, mais precisamente até
1977, ele foi membro ativo da autonomia operária italiana, movimento marxista
libertário do qual também participou, entre outros, Antonio Negri. Nesses anos
de militância, Berardi fundou revistas, criou rádios alternativas e
canais de TV comunitários, até ser preso. Após a repressão ao movimento
autonomista, que levou à prisão de vários dos militantes (incluindo Negri,
acusado de participar no assassinato do deputado democrata-cristão Aldo Moro),
instalou-se em Paris, onde relacionou com Félix Guattari e Michel Foucault.
Durante a década de 80 morou
Formado em estética, atualmente professor de História Social dos Meios de Comunicação Social na Academia de Belas Artes de Brera (Milão), Berardi tem realizado a sua extensa produção teórica com uma colaboração permanente em meios alternativos, pelo menos desde que fundou a revista autonomista A/Traverso. Desde então, desenvolveu intenso pensamento crítico e estudou as transformações sociais e subjetivas causadas pelo desenvolvimento do capitalismo, particularmente sobre os efeitos dos meios de comunicação de massa no imaginário social. À sua maneira, na realidade, Berardi não deixou de ser um filósofo-militante (ou um filósofo-militante) desde a revolta dos anos 70.
Meio século contra o trabalho,
seu último livro publicado pela Tinta Limón, é uma compilação de textos que
abrangem de
Não é uma pergunta fácil de responder, porque me coloca na condição de procurar uma fórmula, uma palavra, qualquer frase, que possa definir uma constante (ou algumas constantes) na minha própria trajetória. Posso tentar embaralhar algumas chaves conceituais que serviram de guia, por exemplo, a palavra “transversalidade”, ou seja, um método de criação de mapas de subjetividade, que desliza continuamente da política para o inconsciente, para a estética. Em segundo lugar, a palavra “ironia”, que sempre me pareceu um antídoto ao dogmatismo e também uma linha de fuga existencial e política. Ao contrário do que afirma Shakespeare, a certa altura da minha vida ocorreu-me pensar que a maturidade é uma manifestação do infantilismo conformista. Passar da adolescência à velhice extrema pareceu-me, em certa medida, um método mais interessante do que o amadurecimento, ou seja, conformar-se à regra dominante, ao realismo que nos impede de imaginar.
As ideias de Félix Guattari influenciaram sua concepção de sujeito, ou melhor, de produção de subjetividade, o que não é a mesma coisa. No entanto, Guattari não conheceu a formidável desdobramento das tecnologias digitais hoje em dia.
Ele não conheceu, mas imaginou, segundo o método: “cartographier des contrades à venir” [mapeando os contrastes por vir]. O conceito de rizoma, central tanto no pensamento de Guattari quanto no de Deleuze, é uma descrição antecipada da rede telemática. Creio que deveríamos ler Guattari como um criador de conceitos que servem para antecipar o mundo futuro. Os conceitos que ele desenvolveu foram mais cartografias do processo do que projetos de libertação.
Byung-Chul Han refere-se ao neoliberalismo como uma psicopolítica. Somente o neoliberalismo é uma psicopolítica?
Tenho muito respeito pelo trabalho de Byung-Chul Han, embora ache que a tese de seu livro sobre psicopolítica seja discutível. É claro que o neoliberalismo implica psicopolítica, mas todo sistema socioeconômico, toda organização política, implica uma dimensão psicopolítica. A novidade da atuação psicopolítica do neoliberalismo é importante, e Han a analisa muito bem em seu livro sobre psicopolítica: efeitos da aceleração, sobrecarga, ansiedade, competição selvagem.
Recentemente, Élisabeth Roudinesco publicou um artigo sobre a crise da psicanálise na França. Chegou a hora da esquizoanálise?
—Sandor Ferenczi disse em 1919
que a psicanálise possui as ferramentas conceituais e terapêuticas para atuar
em condições de neurose individual, e que não possui as ferramentas conceituais
e terapêuticas para atuar em condições de psicose
E o marxismo? Acima de tudo, o economicismo marxista.
O que posso dizer é simples: sem Marx não consigo entender quase nada sobre o capitalismo contemporâneo. É claro que o capitalismo sofreu enormes mutações. Em qualquer caso, Marx não lida com o capitalismo do seu tempo, ele lida com o capitalismo como um processo de abstração ilimitada. O processo de abstração, a transformação do útil em valor, a submissão da atividade útil à acumulação do abstrato, tudo isso continua sendo o cerne da história que vivemos. Marx não tratou de estratégias políticas, nem escreveu receitas para os restaurantes do porvir. Marx descreveu o processo que continua se desenrolando, mas não abandonou o paradigma do crescimento. Esse era o seu limite. Podemos repetir Marx na era da possibilidade de extinção da civilização humana? Na era das alterações climáticas, da catástrofe psíquica que ocorre no horizonte da extinção? Claro que não. Marx é essencial para compreender como e por que chegamos a este ponto. O marxismo não serve para escapar às consequências do colapso psíquico e ambiental produzido pelo crescimento ilimitado. Tenha cuidado: sem Marx todo o discurso se torna uma lamentação moralista. Marx não pode ser esquecido.
Num dos artigos de Meio século contra o trabalho, aliás em vários, aparece a ideia de um colapso psíquico da economia. Significa isto, entre outras coisas, que o “homo economicus” vacila sob determinações liberais, neoliberais ou ordoliberais?
O homo economicus é uma invenção infeliz do pensamento burguês. Claro que os homens calculam, claro que existe um instinto de propriedade, claro que o mercado é um lugar onde circulam coisas úteis, claro que existe economia. Só que não existe apenas a economia, existe também o desejo, o corpo desejante. A economia pensava que o tempo pode ser calculado, identificado matematicamente, acumulado, intercambiado. Eu concordo. Isso pode acontecer, há uma dimensão econômica no tempo. Mas o tempo não é apenas matemática, é também vida. O tempo vivido de que fala Eugene Minkowski não pode ser reduzido ao cálculo. A economia é uma dimensão importante da cultura humana e da ação civilizatória. Está certo. Contudo, não pode tornar-se a esfera dominante, não pode reduzir o mundo da vida ao seu paradigma. Não deveria, mas infelizmente aconteceu. Os economistas, aqueles técnicos da redução matemática do tempo, procuraram reduzir todo o tempo humano à matemática. Assim começou a ditadura epistêmica que o neoliberalismo impôs através da força do Estado, através da violência militar. O economismo neoliberal é uma doença mental que nos impede de ver como o planeta está reduzido aos interesses do crescimento ilimitado, aos interesses de uma classe social obcecada pelo dinheiro.
Agora, em relação ao que você chama de “infosfera”, qual a diferença com o ciberespaço? O primeiro contém o segundo ou é o contrário?
É uma distinção bastante sutil, se você quiser. A infosfera é a esfera por onde circulam os signos que estimulam o cérebro, o ciberespaço é a forma pela qual o cérebro coletivo recebe e elabora os signos-estímulos. O conceito de ciberespaço, proposto pela primeira vez por William Gibson em seu romance Neuromance, refere-se a uma dinâmica de interação contínua entre o ambiente e a mente coletiva, uma dinâmica de mutação da subjetividade, enquanto a infosfera se refere apenas à dimensão “externa”, ao ambiente circundante. Posso usar também uma terceira palavra, “psicosfera”, para dizer como a evolução da infosfera pode produzir efeitos de mutação psíquica, exaustão, sofrimento e também de cura.
McLuhan disse, há muito tempo, que o cérebro foi ampliado com tecnologias elétricas. Na sua análise das patologias psíquicas do “ser digital”, por assim dizer, parece que você adere a essa teoria mas de forma negativa.
O pensamento de McLuhan constitui o pano de fundo essencial de toda reflexão contemporânea sobre o futuro da mídia e também, em certa medida, sobre o futuro da psicosfera. Em sua obra mais importante, Understanding Media, de 1964, McLuhan reconhece que a mudança na técnica de comunicação produz um efeito de mutação nas formas de elaboração mental. A eletricidade, e também a eletrônica, produziram uma extensão da operabilidade do cérebro, e não apenas uma extensão. Também uma mutação. McLuhan escreve que quando passamos do formato alfabético (sequencial) de comunicação para o formato eletrônico (instantâneo), a modalidade de pensamento passa da forma crítica (típica da modernidade) para uma forma neomítica (típica da pós-modernidade). Isso significa que não é apenas uma extensão, mas uma mutação. Se isso é bom ou ruim é outra questão. Não acredito que a mutação contemporânea possa ser definida univocamente como má. É uma mutação ambivalente que pode evoluir de uma forma e também de outra.
Na sua opinião, e desculpe a sinceridade, a mente social ou coletiva da “aldeia global”, regressando à utopia de McLuhan, é bastante louca?
Em primeiro lugar, se me permitem, o que é hoje a aldeia global? Em segundo lugar, o que significa “louco”? A definição de McLuhan nos anos 60 foi uma intuição muito perspicaz que se referia essencialmente à dimensão infosférica. A aldeia global foi, para McLuhan, o efeito da partilha de informações, de imagens, da participação num continuum semiótico. Esta intuição é concretizada hoje através da rede global. Mas quando falamos de mente coletiva estamos falando dos efeitos que a comunicação global instantânea pode produzir (e produz) na atividade cognitiva, no pensamento, na emocionalidade de milhares de milhões de seres humanos. Deste ponto de vista, os efeitos não são lineares. Pelo contrário, a unificação produzida pela desterritorialização da infosfera produziu efeitos de pânico e desorientação, que por sua vez desencadearam movimentos de reterritorialização reacionária. O problema da identidade (a obsessão identitária, o desejo de comunidade em toda a sua ambiguidade) é aqui apresentado como um dos fatores da onda regressiva e reacionária que enfrentamos em todas as partes do mundo.
Num escrito de 2004 você diz que a história do século XX é a história do conflito e da aliança de três figuras: o sábio, o guerreiro e o comerciante. Você não esqueceu o artista? Ou a arte está morta?
Nesse texto trato metaforicamente das diferentes figuras do capitalismo moderno, entendido do ponto de vista da captura do conhecimento. O produtor de conhecimento (o homem sábio) encontra-se numa situação difícil entre a exploração econômica (o comerciante) e a submissão militar (o guerreiro). O artista (prefiro dizer poeta, esclareço) está situado numa outra dimensão, não pertence ao ciclo de produção-exploração-submissão. Pertence a outro campo, o campo da cura, da terapia. Quando a subsunção capitalista da linguagem e do conhecimento sufocou a vida mental, o poeta (o artista, se preferirem dizer assim) é a figura que permite uma reativação da respiração. A distinção entre “artista” e “poeta” pode parecer minuciosa, mas posso me explicar. A palavra “arte”, em sua história moderna, foi muitas vezes identificada com mercado. A poesia não.
Há quem acredite que você é um pensador pessimista, não sei bem por quê. Você consegue pensar em alguma ideia que explique esse efeito?
No meu caso, nunca entendi realmente o que significam as palavras “pessimista” e “otimista”. Posso entender a distinção entre feliz e infeliz, entre alegre e deprimido. Agora, o que significa a palavra “pessimista”? Alguém que profetiza desgraças? Cassandra profetizou infortúnios e ela tinha razão em profetizá-los, pois suas profecias sempre se cumpriam. Os troianos não a ouviram e disseram: aquela senhorita é muito pessimista, nós não a ouvimos. Como sabemos, o cavalo entrou na cidade de Troia e a profecia tão má se tornou realidade. E por que ninguém deu ouvidos às profecias de Cassandra? Porque Cassandra estava triste, ela chorou e gritou, e todos pensaram que ela estava deprimida. Ninguém escuta o deprimido, consideram-no um cara meio maluco, alguém que tem que ir ao psiquiatra. Interessa-me muito a figura do profeta, alguém que diz o que está inscrito no presente como tendência. Porém, não gosto da figura do profeta triste. O profeta tem que ser irônico e possivelmente um cara alegre. Pessimista, otimista, não importa. O que importa é que não devemos deprimir os leitores, temos que dizer aos leitores: o mundo pode estar desabando, mas quero viver feliz, quero que os meus amigos vivam felizes, quero que todos vivam felizes, apesar do colapso.
*Franco Berardi, mais conhecido por Bifo, é um filósofo, escritor e agitador cultural italiano. Oriundo do movimento operaísta, foi professor secundário em Bolonha e sempre se interessou sobre a relação entre o movimento social anticapitalista e a comunicação independente.
Foto: David F. Sabadell/El Salto
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