“Não fazia mais sentido estar ali”, na TSF
A rubrica mais longa da TSF terminou com a saída de Fernando Alves, um dos fundadores da rádio. Quis reformar-se quando Domingos de Andrade foi destituído. Agora terá tempo para ler e dormir.
Marta Leite Ferreira | Público| 29 de Setembro de 2023
Fernando Alves, fundador da TSF, reforma-se e põe ponto final a Sinais: “Não fazia mais sentido estar ali”
É o fim de uma carreira que começou, ainda na adolescência, em Benguela,
Angola, e, com ele, o ponto final da mais antiga rubrica da TSF. Fernando Alves,
jornalista e locutor e um dos fundadores da cooperativa que deu origem àquela
rádio, anunciou esta sexta-feira, 29 de Setembro, que se reformou e que o
episódio “O olhar perto do chão” seria o último do programa Sinais, no ar há
cerca de 30 anos. “Resta-me muito tempo para me sentar a ver passar os
tristes”, disse, em entrevista ao PÚBLICO, numa referência à história que
protagoniza o último episódio que conduziu na TSF: “É sentar-me a ver passar
pessoas que estão desligadas de tudo, estão ligadas aos telemóveis.”
Fernando Alves decidiu reformar-se quando percebeu “o que aí vinha” e “o que
está a instalar-se na TSF”: “Não me agrada e assusta-me muito.” Dono de uma das
vozes mais reconhecidas da rádio nacional, o locutor diz ter ficado agradado
com o “sangue novo” que Domingos de Andrade tinha levado para a redacção.
“Estava uma pasmaceira instalada, muitos momentos de terra queimada”, descreve
Fernando Alves, e o director da TSF trazia “novas águas”.
O anúncio da reforma de Fernando Alves surge poucos dias depois de os
trabalhadores da TSF terem estado em greve durante 24 horas, a 20 de Setembro, por
melhores condições salariais e “respeito” para com os jornalistas. Foi um
momento “encorajador”, na óptica do radialista, em que viu jornalistas jovens e
mais experientes unidos pela mesma causa, demonstrando que “aquela é uma
redacção que não se deixa pisar facilmente”. Mas está cansado, assume: “Não
fazia mais sentido estar ali. Já não tenho saúde nem idade para estar a aturar
o que penso que está a acontecer”.
Muitos livros para ler e preguiça para “preguiçar”
De agora em diante, vai “ocupar as horas, em grande medida, um pouco à maneira do vagabundo” protagonista da história que contou no episódio de quase três minutos a que deu voz esta sexta-feira: “Não penso sentar-me no chão, à porta de uma livraria. Mas procurarei, muitas vezes, bancos de jardim, à sombra. E assim me deixarei ficar, absorto, tomando notas para uma improvável emissão futura, feita de silêncios e de palavras elementares, assim me pouse no ombro a ave clandestina. Ambição chã”, escreveu na última edição de Sinais.
Fernando Alves escolheu falar de uma passagem que encontrou nas páginas 26 e 27 do livro Montevideu, de Enrique Villa-Matas. “Comecei a pensar nele no dia anterior. É uma crónica com três minutos, não tem grande trabalheira. O fio inicial é que custa”, confessou: “Pensei no episódio que retive no livro que estou a ler e que acho muito interessante.”
Naquela “ficção verdadeira”, o autor conta que, quando morava em Paris, Antonio Tabucchi (seu amigo e autor do livro Mulher de Porto Pim) se cruzava amiúde com um vagabundo que lia clássicos e fumava charutos cubanos à frente de uma livraria, sentado no chão. Um dia, depois de ter chegado à fala com o homem e de ter aceitado o convite para se sentar no chão ao seu lado, o vagabundo disse-lhe: “Estás a ver, amigo? Daqui uma pessoa pode vê-lo muito bem. Os homens passam e não são felizes.”
Fernando Alves acredita agora que também ele ficará “a ver passar os transeuntes com o seu ar triste, como só os vagabundos sabem detectá-lo”, escreveu no guião desta sexta-feira. Que transeuntes são esses? Os “milhares de autómatos desligados de tudo, estando ligados”, que compõem a sociedade actual, esclareceu numa entrevista por telefone.
“Penso que é um pouco aquilo que me resta agora, talvez sentar-me a ver passar pessoas que estão desligadas de tudo, estão ligadas aos telemóveis”, reflecte: “Uma pessoa vai à rua e só vê gente a caminhar com uma coisa na mão, correndo risco de esbarrar nos postes de electricidade. É muito estranho o que se vê nas ruas: as pessoas ligam-se de um modo que as desliga.”
Voltar à rádio, com novos episódios, é “improvável” — “não impossível”, confirmou ao PÚBLICO, embora assuma que não há planos, neste momento, para que isso aconteça. Por enquanto, tem muitos livros para ler e “muita preguiça para preguiçar”. “Não vou ficar a olhar para o tecto, não é da minha natureza.”
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