Tornou-se um delito de opinião
associar o nazi-banderismo ao nazismo hitleriano que lhe serviu de ovo.
O regime de Kiev ganhou estatuto de “democrático” e ai de quem se atreva a
dizer o contrário.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
“Nós libertámo-los… Eles nunca
nos perdoarão por isso” -- (Gueorgui Jukov, marechal
soviético, herói das batalhas de Leninegrado, Stalinegrado, Kursk e de
recuperação da Ucrânia, comandante das tropas da URSS que entraram em Berlim em
1945)
As palavras irónicas contidas
nesta frase do lendário marechal Jukov, a quem se devem vitórias heróicas e
decisivas, como as de Stalinegrado e Kursk, que proporcionaram a travagem da
ofensiva das tropas hitlerianas para leste e o princípio do fim do pesadelo
nazi, são de uma actualidade flagrante e certamente sentidas como insultuosas
por quem não consegue, não tenta ou não quer colocar-se fora do redil onde
vigora a opinião única sobre o que se passa no mundo. A qual omite, quando não
inverte, o papel determinante, insubstituível, decisivo da União Soviética no
esmagamento da Alemanha nazi.
Jukov e os seus camaradas que
comandaram o Exército Vermelho e o povo soviético na defesa do país, na
resistência às hordas invasoras – que pareciam imparáveis – e acabaram a
persegui-las até à rendição na capital alemã, libertando pelo caminho infernais
campos de morte, viraram o sentido da Segunda Guerra Mundial. Tornaram possível
que os países da frente ocidental fizessem a sua parte no arranque para a
vitória total.
Até então, devido à prioridade
dada por Hitler à frente leste, as elites dos aliados ocidentais foram moldando
as suas estratégias em função dos acontecimentos na Operação Barbarossa contra
a União Soviética; como hoje se percebe, no círculo dos poderes ocidentais
havia quem desejasse que os hitlerianos concretizassem aquilo que eles próprios
muito ambicionavam (e ambicionam) – a desagregação da União Soviética, da
Rússia. Um objectivo replicado através da História, acumulando insucessos desde
o séc. XIII, quando suecos e alemães esbarraram contra Alexandre Nevsky; ou em
1812, quando Napoleão bebeu champanhe em Moscovo e depois “foi a pé para
Paris”, recorrendo à imagem preciosa do major-general Agostinho Costa; e também
na primeira metade dos anos quarenta do século passado, quando os nazis
acabaram derrotados e perseguidos até Berlim.
No lado soviético ficaram 26
milhões de mortos (26 milhões, é possível imaginar a dimensão dessa
carnificina, duas vezes e meia a população de Portugal?), além da destruição de
grande parte de um país que ainda estava em construção. Nos territórios da
antiga União Soviética é praticamente raro ainda hoje encontrar uma pessoa que
não tenha perdido pelo menos um parente na tragédia. E nenhum país foi
amputado, nem de perto, de tantos dos seus cidadãos.
Por isso, passados que são quase
80 anos, os russos e alguns outros povos que estiveram integrados na União
celebram a vitória como nenhuns outros. Para eles não foi a “Segunda Guerra
Mundial” mas a Grande Guerra Pátria ou Patriótica. A derrota imposta ao nazismo
permitiu a sobrevivência das suas nações: não foi apenas uma guerra, foi um
combate existencial. Tal como hoje.
A consciência vívida dessa
memória torna compreensível que os russos se sintam acossados porque nos
últimos 25 anos têm vindo a ser cercados pelo maior aparelho militar mundial e
também, mais recentemente, pelo recrudescimento do nazi-fascismo nas suas
vizinhanças; ao mesmo tempo que, na Europa e na América do Norte, se manifestam
ainda com maior intensidade os sentimentos de russofobia, uma degeneração
xenófoba que nada tem de rigorosamente justificável à luz da nunca comprovada
ameaça militar ou económica por parte da Rússia.
As imensas riquezas naturais,
energéticas e de capacidades humanas do país, essas sim são cobiçadas pelas
oligarquias e respectivos serventuários políticos e militares do chamado
Ocidente global através de uma mistificação apresentada segundo contornos
indisfarçáveis de cruzada política, democrática e civilizacional. O assalto em
termos políticos e económicos ao espólio da União Soviética funcionou durante
os anos noventa do século passado por um período demasiado curto para
satisfazer as ganâncias imperiais, pelo que a opção militar começou a tornar-se
ostensiva e associada a intenções confessadas de mudar o regime político de
Moscovo e desmantelar o país em várias entidades “independentes”. Afinal, o
velho desígnio ocidental de extirpar o cancro russo mantém-se vivo apesar dos
seus vetustos oito séculos, desde a Idade Média aos tempos da “pós-verdade”.
Como previu o marechal Juvkov, limitando-se a ler a História, “nós
libertámo-los… Eles não nos perdoarão”. Podendo acrescentar-se, sem deturpar o
sentido do raciocínio, que “eles não desistirão”.
Em suma, os russos, tendo
presentes as suas entranhadas memórias, somaram dois e dois, sobretudo a partir
do momento em que os Estados Unidos e a União Europeia tomaram conta da Ucrânia, em 2014,
aplicando uma estratégia golpista para restauração operacional e do
protagonismo de correntes políticas e terroristas que historicamente
engendraram uma independência ucraniana à boleia da invasão nazi da União
Soviética. À aposta ocidental sub-reptícia no nazismo alemão para liquidar a
URSS sucede hoje a reactivação do nazi-banderismo de inspiração hitleriana como
tropa de choque para provocar uma guerra que culmine, desejam os seus mentores,
no desmembramento da Rússia. Uma continuação, afinal, do desmembramento da
União Soviética em 1991.
É fundamental perceber, para uma
leitura abrangente e objectiva do que está a acontecer nesta guerra entre a
NATO e a Rússia, que a reimplantação fronteiriça do nazismo – na Ucrânia e em
países bálticos – desperta as mais negras memórias entre os russos,
determinando inevitavelmente que se mobilizem, respondam e actuem. Não existem,
por isso, quaisquer dúvidas sobre quem provocou quem.
No entanto, tornou-se um delito
de opinião, um crime imperdoável, associar o nazi-banderismo, ao qual foi
outorgada pela NATO a missão de gerir nominalmente a Ucrânia, ao nazismo
hitleriano que lhe serviu de ovo; o regime de Kiev ganhou estatuto de
“democrático” e ai de quem se atreva a dizer o contrário.