Fernanda Câncio* | Diário de Notícias | opinião
Um criminoso nazi na TV a falar de “invasão islâmica”, cartazes anti-semitas numa manif pela habitação, o outdoor de um partido em chamas em nome da “luta contra o fascismo”. Em que ano estamos exatamente, neste ano em que comemoramos cinco décadas de 25 de Abril?
Na noite de 27 de fevereiro de 1933, alguém pegou fogo ao edifício do parlamento alemão, então denominado Reichstag. Nem tinha passado um mês desde que Hitler fora nomeado chanceler, após o partido nazi ser o mais votado (sim, nunca é de mais lembrar: foi o mais votado nas duas eleições parlamentares de 1932). O incêndio, que consumiu o imóvel, deu a Hitler a desculpa perfeita: no dia seguinte, a pretexto de uma alegada insurreição comunista e - imagine-se - da defesa da democracia, um decreto “para a proteção do povo e do Estado” acabava com a liberdade de reunião e de imprensa e permitia a prisão arbitrária de milhares de pessoas. Começava o pesadelo nazi, que só terminaria com a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial.
Esta fábula terrível veio-me à mente quando esta segunda-feira vi no Twitter o vídeo de um outdoor partidário a arder e o alegado comunicado reivindicando a ação como “antifascista”: “Anti-fascistas anti-racistas pegam fogo a propaganda do Chega”. Numa página denominada “Federação Anarquista”, explica-se que o outdoor, na Alameda, em Lisboa, foi incendiado por quem considera que “o fascismo continua vivo” e que “os partidos e a democracia parlamentar são cúmplices desse crescimento, validando-o e alimentando-o com cada medida que torna as nossas vidas cada vez mais precárias. (…) Já há demasiado tempo vemos caras de fascistas no espaço público, em outdoors pela cidade fora. Como anti-fascistas e anti-racistas, não toleraremos este tipo de propaganda. Vamo-nos continuar a organizar com todas as ferramentas que temos ao nosso dispor na luta diária contra o fascismo.”
Infelizmente o comunicado não explica como é que deitar fogo a um outdoor e partilhar o vídeo, permitindo ao partido em causa mais tempo de antena e o aprofundar da senda de vitimização, de radicalização e de ódio que são todo o seu programa, pode combater o fascismo.
Em verdade, a primeira coisa que ocorre perante a estultícia infantilóide do comunicado e da “ação” pirómana é que, se o partido do outdoor é o evidente beneficiado por ambos, pode muito bem ser o responsável. Como tanta gente comentou no Twitter, se não foi a pedido ou por obra de gente do Chega, parece.
Mas a gravidade desta ação, a ser perpetrada, como pretende o citado comunicado, por quem se proclama de esquerda, vai para além do claro proveito oferecido ao partido de extrema-direita; demonstra que quem assim se propõe combater o fascismo não se dá conta de ter, precisamente, encenado o próprio fascismo.
Para perceber a essência fascista do gesto que incendiou o outdoor bastará reparar que é o exato tipo de ação que esperamos de fascistas: violência, transformação de adversários em “inimigos”, destruição simbólica (ou não tão simbólica) do “inimigo”, tentativa de silenciamento por meio de ameaça.
Não podemos ao mesmo tempo escandalizar-nos com as figuras que os membros do Chega fazem no parlamento, em afronta deliberada das respetivas regras - que é, afinal, uma afronta essencial à ideia da democracia - tentando impedir toda a gente de falar, insultando, pateando, intimidando, e achar que os mesmos métodos de brutos devem ser usados contra eles. Ou bem que estão errados e são eticamente inadmissíveis ou bem que, se servirem para os calar, estarmos dispostos a usá-los - e aí, que nos distinguirá deles?
Isto não significa, obviamente, que a democracia não tem direito a legítima defesa contra quem queira destruí-la. Mas, sob pena de destruir a democracia, essa defesa tem de ser levada a cabo com armas democráticas, jamais autocráticas. As armas da lei e da Constituição - que por vezes nos parecem tão paradoxais.
Sim, os paradoxos da democracia são inúmeros. E a sua maturidade, aquela em que, 50 anos após o derrube da ditadura, deveremos querer viver, confronta-nos tanto com as suas insuficiências e imperfeições como com a sua grandeza - a de acreditar tanto em si que permite a existência e o discurso dos que a ameaçam.
Sim, a democracia é este regime em que podemos ter de, em nome do direito constitucional à liberdade de expressão e reunião, em nome da recusa da censura e da repressão, admitir uma manifestação de fascistas e racistas. Porque, é preciso dizê-lo uma e outra vez, ser fascista e racista não é crime nem ilegal - o que é ilegal e crime é a violência e o apelo à violência.
O mesmo regime que permite a um criminoso - porque condenado nos tribunais por múltiplos crimes, pelos quais aliás passou mais de 11 anos preso - nazi passear-se nas ruas do país tatuado de suásticas até aos mindinhos e ser, em plena luz do dia e numa esquina qualquer, entrevistado na TV a desfiar mentiras sortidas e teorias racistas como a da “invasão islâmica”. É obsceno, é revoltante, mas não é ilegal.
Como são obscenos, revoltantes mas, creio, não ilegais os cartazes antissemitas ostentados na manifestação de sábado no Porto pelo direito à habitação, contra os quais, e bem, se insurgiu Francisco Assis, associando-os à retórica nazi e atribuindo-os a “umaextrema-esquerda imbecil e semianalfabeta” que, acusa, em “nada se diferenciada extrema-direita que quer promover manifestações anti-islâmicas”.
Perguntemos então: como se combatem, em democracia, o fascismo e o racismo? Como se combate alguém que, como o cadastrado nazi Mário Machado, exibe uma carreira de décadas de crimes violentos mas insiste em apresentar-se como uma vítima inocente de “campanhas da extrema-esquerda e dos media”?
Desde logo, não o tratando, como
fez, incrivelmente, a SIC no Jornal da Noite deste domingo, e já tinha feito a TVI em 2019, como um mero emissor de “opiniões polémicas”;
desde logo não lhe oferecendo tempo de antena para (como sucedeu na SIC)
vomitar o seu discurso de ódio, colocando-lhe como contraponto entrevistas de
imigrantes que dizem querer apenas viver
Não: um discurso como o de Mário Machado, mesmo quando não atinge a gravidade do crime, não pode passar sem desconstrução, sem efetivo contraditório; não pode ser irresponsavelmente apresentado como mais uma opinião, ou, quiçá, como “uma curiosidade”. Quem queira, alegando o direito à informação, pôr um microfone à frente da boca deste nazi tem de - lá está - saber informar, apresentando-o pelo que é. Lembrar as suas inúmeras condenações, as vezes em que foram encontradas armas de fogo, sem licença, na sua posse; perguntar por que motivo esconde, ante as câmaras, as tatuagens nazis. E tem de se perguntar se, mesmo fazendo tudo isso, quer ainda assim dar-lhe um palanque - para que efeito? Também o faria com um terrorista islâmico que, numa esquina da cidade, defendesse um califado em Portugal?
Não, em democracia não se lança fogo a cartazes. Não se combate o fascismo com fascismo. Não se matam, nem sequer simbolicamente, fascistas. Mas porra, não os tragam ao colo, pode ser?
Nota: Texto alterado às 13.30 para situar os cartazes antissemitas referidos na manifestação no Porto e não, como estava escrito, em Lisboa.
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