domingo, 31 de março de 2024

Angola | Boas Festas da Páscoa -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Primeiro as coisas boas. Aos crentes desejo uma boa Páscoa. Neste período aproveito para fazer biscates numa grande gráfica que fica com défice de pessoal. Dinheirinho para dar ao dente. Não sou crente e confesso-me um nadinha anticlerical. Meu avô Domingos José emigrou para os EUA com 14 anos. Já adulto juntou-se aos anarquistas de Chicago, quase todos italianos. A ala portuguesa inventou este hino com música de marcha marcial: “Trabalhador/Nunca entres na igreja/Os santos são de pau/Não têm valor/ Valor dá somente/A quem moureja”. Mourejar é trabalhar sem descanso!

O padre Samuel era capuchinho. Longas barbas, bata castanha, gestos afectuosos. Voz suave. Conheci-o na Missão do Negage em criança. Depois em Camabatela já eu era adolescente. E por fim encontrei-o na Missão de São Paulo em Luanda, já andava de repórter. Ele celebrava o casamento do meu amigo Damas, mecânico de motas, com a Noelma, a mais bela menina do território entre a Vila Clotilde e o Sambizanga. Depois da cerimónia vieram todos para a porta fazer a foto de família e eu juntei-me ao grupo. O sacerdote participou. Ficou felicíssimo quando viu que sobrevivi e cheguei a adulto. 

Segundo Acto. Algum tempo depois fui arrastado para uma tragédia amorosa. A Miss Maianga, antes de ser rainha de beleza foi minha namorada. Depois da coroa, casou com um capitão tropozoide. O bicho quando ia para o mato em operações militares, dava-lhe murros nos olhos para ela não sair de casa. Cansada de levar tantos bornos no belíssimo rosto, pediu-me socorro. Resgatei-a. Tinha acabado de receber dinheiro extra da publicidade redigida e fomos alugar uma casa no Bairro do Café. O senhorio pediu-nos o bilhete de identidade. O dela dizia casada e o meu estado civil era solteiro. O energúmeno recusou-nos o ninho de amor.

O padre Samuel vai salvar-nos. Fui à Missão de São Paulo e pedi-lhe uma certidão de casamento em nome dos dois. Ela tinha casado lá, era só mudar o nome do tropozoide para o meu. O bom capuchinho olhou-me como quem vê um desenterrado. Grande Pecado! Isso é grande pecado! Depois passou a mão em cruz à frente do meu rosto e disse: Estás perdoado meu filho! Foi o Zé Família, ateu e defensor da Independência Nacional, que me arranjou um bilhete de identidade onde estava escrito casado. Salvei a miss Maianga do capitão tropozoide, Mas desacreditei dos padres, mesmo os que admirava. (Cai o órgão e toca o pano)

Terceiro acto. Mais tarde recuperei a confiança no Clero. Fui ao Huambo tratar de assuntos familiares. O Luís Filipes Colaço pediu que lhe levasse para Luanda uma certidão narrativa completa de nascimento. O Zé Cunha Velho deu-me um contacto nos serviços. Mal cheguei ao bairro São João estoirou um tiroteio nutrido. Os sicários da UNITA tinham começado a matar quem não tinha cartão do movimento. E executaram todos os militantes e dirigentes locais do MPLA que não fugiram a tempo. Quando o tiroteio acalmou fui a correr ao cartório pedir a certidão do Colaço. Novos tiroteios. O meu parente Lotas avisou muito nervoso: Foge daqui que os kwachas foram procurar-te a casa da Mamã Rosa!

Nessa altura tripulava um Minika, carro japonês pequenino que só levava duas pessoas e deixava um rasto de fumo espeço, porque o motor era a dois tempos e eu punha muito óleo na gasolina. A governanta do senhor bispo era minha amiga. Fui pedir-lhe uma farda de padre porque temia encontrar postos de controlo dos sicários na estrada para Luanda. Ela arranjou-me um casaco preto com uma cruz na lapela e babete com coleira branca. 

Mas aquilo era pouco. Pedi à minha amiga uma daquelas batinas com muitos botões, para as meninas fogosas acalmarem enquanto desapertam tudo. Arranjou-me uma preta que dizia bem com as minhas longas barbas. Vesti logo ali o disfarce arranquei. Na Chipipa apanhei o primeiro posto de controlo dos kwachas. Os homens armados espreitaram para dentro do Minika e mandaram-me seguir. Na Cela foi pior. O posto de controlo era dos chipendistas, um tanto mais obscuros e brutais do que os kwachas. Mandaram-me sair do carro. Miraram e remiraram tudo. Depois chegou um chefe e disse desculpa senhor padre. Mandou-me seguir. Fiz as pazes com a Igreja.

Voltei a zangar-me mais tarde. O Rui Osório era chefe de Redacção do Jornal de Notícias, do Porto. Um profissional competentíssimo. Foi promovido a cónego e nessa altura lançaram o Crédito Jovem, muito bonificado. Eu vi nessa conjugação uma oportunidade de ganhar um dinheiro extra. Propus ao Rui vendermos a quem não era jovem, certificados atestando juventude de espírito. Ficou furioso. Falta de respeito! Pedi-lhe desculpa mas ele impôs uma penitência: Vais fazer uma reportagem sobre o Centenário do Padre Américo. 

Caprichei. Fiz sete reportagens publicadas de segunda-feira a domingo. A sétima era uma entrevista ao Padre Américo. Textos e frases suas que revelavam o seu pensamento revolucionário. Fiz perguntas que induziam as respostas. Um sucesso! 

O Padre Carlos, responsável da Casa do Gaiato e da Obra da Rua, foi ao jornal agradecer-me! E o Rui perdoou-me aquilo dos certificados da juventude de espírito. Se Deus existisse, os do Clero eram todos iguais ao Padre Américo, ao Cónego e jornalista Rui Osório, ao meu amigo Cónego Apolónio ou ao Papa Francisco. Não são. O confessor do Ventura do partido Chega, se nas próximas eleições portuguesas os nazis ganharem, marcha para a castração química. 

Último Acto. Senhor Presidente da República, corrupção é entregar uma licença à Africell e depois destruir a nacional Movicel. Desde o segundo ano do primeiro mandato de vossa excelência até hoje a operadora do Estado já perdeu um milhão e meio de clientes. Os trabalhadores não recebem os salários. A administração da empresa pública foi forçada a partilhar as suas infra-estruturas com a Africell. A Unitel aceitou partilhar mas exigiu um pagamento justo. Os norte-americanos recusaram pagar. Porque têm antenas de borla! À custa da Novicel já são a segunda operadora. E vai por aí acima. Corrupção grossa com a conivência do seu Executivo!  

A política das Reservas Fundiárias foi do melhor que se fez depois da Independência Nacional. Uma machadada na especulação imobiliária. Logo nasceram mafias para ocuparem os terrenos e inviabilizarem essas políticas. Aquele sujeito da organização Mãos Livres, que saltita entre a UNITA e os fundos públicos, foi o principal instigador das ocupações selvagens. O processo continua! Corrupção à vista de todos, camarada Presidente!

Corrupção é emitir licenças de exploração agrícola para as áreas de empresas que investem milhões e depois ficam de mãos a abanar. Milhares de pedras preciosas vão todos os dias para Kinshasa onde são vendidas esbulhando o Estado Angolano dos impostos. Corrupção é manter a Cooperativa Watacassossela operando em áreas que são coutos mineiros s de empresas diamantíferas legais. Corrupção é fechar os olhos a milhares de angolanos, congoleses, eritreus, senegaleses e de outras nacionalidades que diariamente roubam para os seus patrões, diamantes do Povo Angolano inviabilizando as explorações mineiras legais.

Corrupção, Presidente João Lourenço, é fecharem os olhos à entrada de 20.000 estrangeiros na Lunda Norte para roubarem os diamantes de Angola. Corrupção é expulsar 4.766 estrangeiros que se dedicavam ao garimpo ilegal mas deixar ficar outros tantos ou mais! Corrupção é permitir que durante mais de um ano, 456 cidadãos da República Democrática do Congo (RDC) vivam no município do Lucapa (onde há 290 sobas!) para roubarem os diamantes de Angola. Sim, foram expulsos, mas depois de muitos meses de esbulho ao serviço das mafias da Maquineta da Kamanga.

Ainda não sei bem se é corrupção mas cheira a esturro. A ENDIAMA vai passar a exigir “certificação das reservas nos projectos diamantíferos, para maior confiança dos investidores e dos reguladores”, disse o director de Operações e Participações Miguel Vemba. “A questão da obrigatoriedade de clarificação de reservas está intrinsecamente ligada à fiabilidade das mesmas. Esta medida visa garantir maior transparência e precisão na avaliação das reservas minerais, proporcionando uma base sólida para a tomada de decisões estratégicas no sector mineiro”. E a maquineta? Nada de nada.

Epílogo. No Dia Mundial do Teatro o Titular do Poder Executivo escreveu que "a preservação dos nossos valores culturais e a projecção da nossa identidade devem constituir objectivo permanente de todas as nossas acções”. João Lourenço concluiu a mensagem dirigindo uma palavra de apreço aos fazedores de teatro, a quem considerou "verdadeiros heróis que, em ambiente de muitas adversidades, fazem desta arte um instrumento eficaz para manter viva a consciência sobre nós mesmos”. Parabéns camarada Presidente! Soube isto por um texto do jornalista Bernardino Manje. Estás sempre na primeira linha!

Depois da Independência Nacional José Mena Abrantes lançou a primeira peça de teatro. Criou a primeira companhia teatral, Elinga Teatro. Fundou a primeira escola de artes cénicas nas velhas instalações do Colégio das Beiras. E este vosso criado publicou no Diário de Luanda a primeira crítica de teatro. Já mereço o meu pedaço de pão. Mas o sacana está cada vez mais duro de roer. 

* Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana