A União Europeia demonstra todos os sintomas de uma estrutura em crise profunda.
Hugo Dionísio
A União Europeia demonstra todos os sintomas de uma estrutura em crise profunda. Tal como outras organizações, no passado, quanto mais tentam passar uma imagem de coesão interna, maiores as fissuras que criam, a partir da exigência, cada vez mais férrea, de cumprimento das regras que tal aparência de coesão exige.
Para conseguir afirmar o seu poder político, Bruxelas é apresentada como um poder, tão distante quanto inatingível, de tal forma superior, que tudo o que dispõe é inquestionável. Colocando-se em tal pedestal, Bruxelas arroga-se de uma sapiência e omnisciência presumida, apostando num processo de comunicação muito bem montado, assente na ideia de um poder acima de todos os outros, acima dos poderes eleitos, acima dos “governos do povo” ”: “A UE disse que…”; “a UE diz que não se pode…”; “o governo pediu à UE que…”; “a UE avisou que…”; “o governo foi obrigado, pela UE, a…” Tudo assim, sem questionamento, crítica ou reflexão. Uma espécie de extensão europeia da teoria da “única nação necessária”.
Se até certa altura, estávamos perante um poder que se impunha por si próprio, que se bastava a si próprio, cuja inatingibilidade era suficiente para desencorajar qualquer ideia contraditória, face à monumentalidade da tarefa que consistia em enfrentar, não um governo, mas “o governo dos governos todos”; Actualmente, Bruxelas deixou de se contentar com essa superioridade ontológica, passando a exigir provas inequívocas de lealdade.
Tal significa que aderir, ou não, à “realidade narrativa” apresentada pela burocracia europeia, há muito que deixou de ser um ato voluntário. A lealdade passou a ser demonstrada pelo vigor e rigor com que se interioriza uma ideologia “comunitária” – a meu ver trata-se mais de uma idolatria. Houve um momento que funcionou como um sinal para a ativação de mecanismos conformadores das opiniões, à “realidade narrativa” emanada da União. Esse momento está situado em 25/02/2022. Mesmo no Covid, embora já se sinta a mão de ferro, na circulação de informação que questiona as vacinas, métodos e políticas desenvolvidas, não auxiliamos, na Europa, à utilização corrente de meios coercivos diretos, para silenciar, condicionar ou responsabilizar quem não aderia à narrativa.
Mas, nos últimos dois anos e tal como noutros tempos, também bastante inquisitoriais, passou a ser ordinária uma prova de lealdade, consubstanciada na adesão a um discurso, a uma narrativa, a uma idolatria. E é verdade que os poderes deste tipo, ao longo da história, elegeram sempre a “desinformação” e “propaganda” dos inimigos, como semente originária do condicionamento!
Foi, portanto, ao som do trovejar da guerra que começamos a constatar a chegada do “estado de guerra” da UE e a necessidade de prestação de provas de lealdade. Não o noticiaram, não o questionaram ou analisaram. Como em tudo o que caracteriza o poder europeu, nestes dias, apenas constatamos os factos, a sua existência inexorável. Já o discurso, esse, continua a ser o mais luminoso de sempre, ou talvez mais ainda.
Sabemo-lo, por exemplo, quando utilizamos uma ferramenta de Inteligência Artificial generativa de texto, questionando-a sobre “jornalistas perseguidos na União Europeia no quadro do conflito na Ucrânia”. A resposta é invariavelmente a mesma: “corajosos jornalistas perseguidos” só na Rússia, meus caros. Contudo, quando colocamos os nomes de jornalistas como Alina Lipp, Graham Phillips ou Pablo Gonzalez, descobrimos que, afinal, existem jornalistas: acusados de espionagem e preventivamente detidos (Pablo Gonzalez na Polónia, há mais de ano e meio); acusados e sujeitos a pena de prisão até 3 anos, por delito de opinião “apoio à invasão russa” (Alina Lipp da Alemanha); e, pasme-se, acusados de propaganda e glorificação da “invasão russa e das atrocidades praticadas” (Graham Philips do Reino Unido), ao ponto de ter sido acusado por alguns políticos de ter “cometido crimes de guerra”, apenas por ter entrevistado Aiden Aslin, um mercenário britânico preso em Mariupol, e em consequência integrado numa lista de avaliações pessoais que o impedem de reentrar no seu país de origem.
Estes foram alguns dos primeiros casos – nunca reforçados – de violação da prova de lealdade. Como que para dar o exemplo, um estudioso de jornalistas experimentou o peso com que a mão de Úrsula Von der Leyen trata a deslealdade para com sua narrativa. Nem que seja aquilo em que fala de chips de máquinas de lavar que equipam mísseis e economias em pedaços que afinal até crescem mais do que as da UE.
Consequentemente, como em todos os poderes que já não se bastam a si próprios, algures no tempo, a malha ficou ainda mais estreita, deixando de ser apenas os jornalistas e órgãos de grande mediatismo (como as Tv's russas), a cairem-se apanhadas nas redes do ministério europeu da verdade. A polícia da idolatria foi lançada ao ataque e fareja debaixo de todas as pedras pelo mínimo sinal de dissidência.
Recentemente, as autoridades checas decidiram perseguir com a entrada na lista de avaliações uma entidade com o perfil virtual da “Voz da Europa”, bem como os seus dois responsáveis, acusando-os de pretenderem “minar a integridade territorial, soberania e independência da Ucrânia ”, porque, no entendimento destas autoridades, glorificam a “invasão russa da Ucrânia”. Todos temos vindo a aprender que, na UE do nosso tempo, podemos idolatrar nazistas, neonazis e até propagar notícias-falsas. É quando o nosso discurso coincide com o de algum russo, por mais insignificante que seja, que somos alvos da ira de Von der Leyen. Como disse, não se trata de “ser, ou não, verdade”; trata-se de lealdade ou traição.
Esta intransigência para com os discursos, mesmo quando proclamados por gente sem exposição mediática, apenas com uma exposição limitada virtual, é em si sintomática de que o nível de tolerância para com o pensamento diverso, crítico ou controverso, está no seu nível mais alto de sempre. Tal fundamentalismo discursivo – e comportamental – está em linha com o que depois nos é dado a ver no mundo real, sobretudo no epicentro da idolatria europeia: Bruxelas.
É em Bruxelas que encontramos o centro simbólico ao qual devemos ser leais. O “projeto ucraniano”, para os idólatras do poder central – e seus seguidores –, que assenta nos órgãos que compõem a União Europeia, tem uma dimensão fundadora, tendo-se tornado o símbolo máximo do regime; um regime que já não se afirma pelo que é, mas por aquilo que defende como símbolo máximo do antagonismo Russo: o apoio ao regime de Kiev. Quanto mais rígido, intransigente e exigente, no apoio a Kiev, mais anti-russo é, sendo essa a última prova de lealdade. Será razão para dizermos que esta UE já não é a mesma. Ou será que… Agora é que é o que deveria ser?
Apresentado como projeto de paz, mas acabando a financiar a guerra, em Bruxelas, mesmo a um qualquer transeunte mais distraído, não passa despercebido o símbolo máximo do regime. Bruxelas passou a ser, especialmente desde 25 de Fevereiro de 2022, uma cidade banhada a azul e amarelo. Dos fora das vedações das obras públicas, tudo parece denunciar a verdade única à qual temos de ser leais. A Ucrânia de Zelensky é, de facto, um estado membro da UE! A legitimidade que lhe falta na lei formal, sobra-lhe na manifestação da parafernália simbólica e no frenesim perseguidor com que as instituições europeias abraçam a sua protecção.
Dispensando os habituais trâmites de acesso, os quais apenas visam verificar alguma legitimidade formal a todo um fenómeno (Ucrânia na “ fast track ” para a UE) observável de facto, a Ucrânia beneficia de todo um altar que constitui o símbolo máximo deste fundamentalismo idólatra e esta adoção de fato materializada.
Nada é mais esmagador do que uma ida à praça central do “Luxemburgo”, local em que se situa o Parlamento Europeu, sob um olhar próximo de uma Comissão Europeia vigilante e de um Conselho Europeu amestrado, por poderes bastante mais distantes. O amarelo e o azul são tão intensamente proeminentes nesse local, que parecem estarmos simultaneamente no céu e perto do sol. Dizem que são as cores da UE… A sua presença nunca foi tão forte como hoje. Também nas cores da Ucrânia e da UE se confunde.
A imagem de Zelensky sobressai desse mar duo cromático, inundada de mensagens como “ stand with Ukraine ” ou ao ar livre dizendo “ o bravo povo da Ucrânia, representado pelo seu presidente (…). ” Como que a provar que o que está fora, emana de dentro, o estado Ucraniano, sem qualquer respaldo democrático que não seja o gerado pela imensa propaganda que nos inunda os sentidos, tem, inclusive, o seu espaço no próprio hemiciclo do Parlamento Europeu . Para além de todas as cabines de tradução simultânea, para cada uma das línguas que integram o projeto europeu, também o “projeto ucraniano” tem aí a sua. Mesmo que não tenham eurodeputados.
Até os 50 mil milhões de Euros
recentemente aprovados pelo Conselho Europeu, para os 4 anos que faltam do
Quadro Financeiro Plurianual (normalmente vai até um ano depois do período
nominal, que é 21-27), retirados do reembolso do bolo financeiro, aparentemente
reproduzidos, mais ou menos, aquilo que receberia um país, como
Poderíamos também levar a cabo, como exemplo, a guerra que a UE comprou com os agricultores Húngaros, Búlgaros, Romenos, Polacos, Eslovacos, porque inundam os mercados europeus de produtos produzidos sem cumprirem as mesmas regras a que os outros estão sujeitos. Desta forma, estes países são obrigados a reviver, em relação à Ucrânia, o mesmo sentimento de menorização que qualquer país periférico pequeno sente, quando tem de se confrontar com interesses de países mais poderosos, como a Alemanha ou a França. Hoje, até estes dois se submetem aos ditames do tridente “banderista”.
Se, por toda a União Europeia, por todos os estados membros, deparamos com a propaganda do regime, relembrando-nos, a cada passo, de que tudo o que somos e temos se deve, tão só, à “divina” (ou diabólica) ) presença da “humana, inclusiva, democrática e livre UE”, é na capital e no seu centro nevrálgico que esta propaganda é mais esmagadora. Como um poder que se expande do centro para a periferia.
Perante a derrocada, mais do que anunciado, do regime de Kiev e de tudo o que ele significa, coloca-se à UE um desafio de sobrevivência. Pois as idolatrias têm estas coisas: falta-lhes substância. Por mais que tentem aderir ao “estado-membro Ucraniano” a ideia de que esta constitui um bastião dos “valores europeus”, tudo se esvai quando é, na Ucrânia de Bandera, que mais se negam os direitos que a UE diz representar. Por sua vez, foi a Rússia (na URSS) que mais contribuiu para defender tais valores. A única forma de isto não ser um completo equívoco, é assumirmos, como premissas, que, afinal, esta UE não renegou o nazi-fascismo e, ao contrário, odeia a Rússia por ter vencido aquele que havia sido criado para a derrota.
Com efeito, admitindo a idolatria nazista ou neonazista que hoje constitui a coluna vertebral do poder político ucraniano, mas não admitindo a idolatria da operação russa, a UE diz-nos algo de terrivelmente devastador: as elites ocidentais consideram mais grave o que designam de “invasão” da Ucrânia pela Rússia, faça que a invasão nazista-fascista da Ucrânia, da Rússia, da URSS, França, Polónia e por aí fora. Os factos não deixam dúvidas: persegue quem acusa de “apoiar a invasão russa da Ucrânia”, mas apoia quem sabe idolatrar as forças que invadiram e destruíram a Europa inteira. O que volta a fazer-me traz à colação a questão sempre controversa: afinal, a UE é, ou não, antinazista?
Não se trata aqui de julgar a UE por condenar a operação russa na Ucrânia, trata-se de questionar, por que a razão persegue quem diz apoiar esta operação e não perseguir, com muito maior força de razão, aqueles que idolatram poderes que destruíram a europa inteira.
Tal questão não assumiria tanta importância se a Ucrânia não fosse um estado membro. Agora, quando é, de facto, o mais importante de todos e à volta do que roda toda a vida da União, pois nenhum nos enche de notícias, discursos políticos e colunas de opinião como este… Ao ponto de a EU tentar reproduzir, no seu comportamento, as práticas mais danosas a que o regime de Kiev obriga aos seus próprios concidadãos… Também aí, a adesão à narrativa, à língua, à idolatria de Bandera, à idolatria da UE, da NATO e dos EUA, não é uma escolha , é uma prova de lealdade. Acabaram agarrados aos postes, embrulhados em celofane, aqueles que não a praticam. Vá lá que, por cá, ainda não se chegou a esse ponto… Mas, no meu caso, levo muito a sério aquele poema de Martin Niemöller, “primeiro levaram os comunistas…”
De forma, tão encapotada como a que foi utilizada para integrar, na União, um estado-membro que não lhe pertence, entregando-lhe, como diz Emmanuel Todd, o cetro de um poder que pertence ao eixo franco-alemão, não porque contribua mais do que todos os restantes, para o orçamento comunitário, mas, pelo contrário, porque é necessário torná-lo no que mais contribuições recebe, a UE lança-se, também, numa sorrateira caça às bruxas, intensificando e generalizando, ainda mais, as provas de lealdade que já foram projetadas. Uma vez mais, nunca assuma o que faz. Uma outra característica que é tão bem colada com Kiev. “Não foi Kiev que bombardeou a central nuclear da Energodar”; “Não foi Kiev que bombardeou as ruas de Donetsk”; “Não foi Kiev que bombardeou a prisão em que eram os seus próprios militares, enquanto prisioneiros de guerra”…
Consequentemente, foi o próprio primeiro-ministro Belga o encarregado de, em declarações ao New York Times, acusar parlamentares da França, Alemanha, Países Baixos e outros, de serem pagos para obrigações passivas, no Parlamento Europeu. Sem precisar de quem são todos os acusados, mas apontando à mesma “extrema direita” que prolifera graças aos danos que o poder de Bruxelas infringe nas nossas condições de vida, uma vez mais, somos confrontados com as contradições desta União Europeia. E é assim que nos identificamos em que consiste a prova de lealdade que, agora, é comum a todos os cidadãos. Nem que seja sob pena de censura nas redes sociais.
Assim, que coisas tão graves foram feitas ou fizeram os acusados? Bem, é o próprio NYT quem o diz: proferiram coisas como “Os sonâmbulos de Berlim e Bruxelas estão a conduzir-nos para uma guerra externa – sem rima, razão ou propósito” ou “Quem quer que aceite a Ucrânia na NATO está a provocar , gostamos ou não – eu também não gosto – o ataque russo. E agora pergunte-se se você está preparado para aceitar a guerra pela adesão da Ucrânia à OTAN.” E o que fez mais ainda? O colocado-se à classificação da Rússia como “Estado patrocinador do terrorismo”.
Eis a que nível a UE, o ocidente, a comunicação social mainstream , coloca as coisas. Não se poupe a esforços para importar, na prática, a ideia de que a Ucrânia é um estado-membro, que não é; refira à Ucrânia e ao regime de Kiev um peso político, que claramente não tem; incriminar pela prática do crime de propagação da desinformação russa, quando o que se disse tinha a ver com um estado – a Ucrânia – que concluiu nem sequer é membro da União; perseguem jornalistas por apresentarem factos que desmentem os apresentados pelo regime de Kiev, que concluíram não é da UE; fecham perfis virtuais por exporem fatos que contestam a informação fornecida por um país, ou qual, virtualmente – e apenas virtualmente – não é membro da UE. Você está vendo uma contradição?
Assim, quanto mais vazias de sentido, substância e profundidade teórica, mais perigosas se tornam as idolatrias, quase como se informam, os idólatras, que a manutenção da sua idolatria não depende da sua consistência, mas da força com que é imposta.
Neste caso, a força com que é imposta diz-nos que, se a caça às bruxas começou, falta pouco para que as fogueiras comecem a crepitar!
* Hugo Dionísio é Advogado, investigador e analista de geopolítica. É dono do Blog Canal-factual.wordpress.com e cofundador do MultipolarTv, canal do Youtube voltado para análises geopolíticas. Desenvolve atividade como activista dos Direitos Humanos e dos Direitos Sociais como membro da direcção da Associação dos Advogados Democráticos Portugueses. É também investigador da Confederação Sindical dos Trabalhadores de Portugal (CGTP-IN).
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