quarta-feira, 19 de junho de 2024

Ninguém Fala do Coronel -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O coronel sul-africano Jan Breytenbach faleceu. Em Angola nem uma palavra escrita ou falada. Nada. Os sicários da UNITA deviam falar e muito. Porque ele treinou e criou as forças militares de Savimbi, em 1976, na Faixa de Caprivi. Também organizou o Batalhão Búfalo com restos do ELNA, braço armado da FNLA e do Esquadrão Chipenda. Antes da derrota do regime racista de Pretória no Triângulo do Tumpo, ele já se tinha afastado de tudo, porque descobriu que a Jamba era um centro de tráfico de diamantes, droga, marfim e madeiras preciosas. Membros do comando sul-africano estavam implicados nessas actividades criminosas. 

No dia em que foi anunciada a morte do coronel sul-africano Ian Breytenbach foi dada esta notícia em Luanda: “O Executivo, através do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, legalizou no Cartório Notarial da Loja dos Registos do Cazenga, a Fundação Jonas Malheiro Savimbi”. Fiz um compasso de espera. Primeiro para confirmar se é verdade. Depois esperei pelas reacções. Sim é verdade, temos a Fundação Jonas Maleiro Savimbi. Sim é verdade, nem um grito de revolta soou. Os familiares das suas vítimas ficaram em silêncio. Nem sequer parentes de mulheres e seus bebés queimados vivos na Jamba. 

Estão a imaginar a Fundação António de Oliveira Salazar em Portugal? Impossível. A Fundação Baltazar Rebelo de Sousa em Moçambique? Um escarro na cara de todos os moçambicanos. A Fundação Pol Pot no Camboja? Um hino de louvor ao assassino demente. A Fundação Adolf Hitler na Alemanha? Um atentado à Honra da Humanidade. Em Angola foi criada a Fundação Jonas Malheiro Savimbi, mais cruel do que Salazar e seus quadrilheiros, mais assassino que todos os assassinos, mais nazi do que todos os nazis. O longo braço da Lei vai castigar exemplarmente este crime de lesa Humanidade. Os criminosos não esperem perdões nem abraços. 

O coronel Breytenbach faleceu ontem mas os seus livros ficaram. E por eles soubemos da dimensão da traição de Jonas Savimbi e da UNITA. Ficámos a conhecer os crimes ambientais cometidos pelos invasores sul-africanos e a tropa do Galo Negro que servia de biombo aos agressores estrangeiros. Milhares de elefantes dizimados. Milhares de troncos de girassonde “exportados”. Toneladas de droga traficadas. Carradas de diamantes roubadas ao Povo Angolano. Ian Breytenbach escreveu tudo sobre “a guerra no paraíso” que devastou a savana africana no Sul de Angola e particularmente no Cuando Cubango.

O Coronel Ian Breytrenbach no seu livro “The Buffalo Soldiers  The Story of South Africa’s 32º Battalion 1975-1993” faz este relato impressionante sobre a fase final da Batalha do Cuito Cuanavale: 

“Um cínico oficial norte-americano, uma vez comentou comigo que a missão de um soldado de infantaria é aproximar-se do inimigo e morrer com ele. Bem, muitos soldados da UNITA morreram, naquele dia 23 de Março de 1988, mesmo antes de entrarem em contacto com as FAPLA. Os canhões de 23mm eliminaram os ocupantes dos tanques como palha, enquanto os estilhaços da artilharia e os obuses dos morteiros faziam grandes estragos. A potência de fogo das FAPLA era tal, que só se via fumo e poeira, ainda que o céu estivesse limpo de nuvens. Toda a potência defensiva das FAPLA foi dirigida contra o comando do Regimento do Presidente Steyn e contra uma UNITA já em fanicos”.

Sem o livro do coronel ontem falecido não tínhamos este relato.

Sobre os últimos combates na Batalha do Cuito Cuanavale escreve: “Os comandantes perceberam que face à barragem de fogo das FAPLA e à intervenção dos MIG a derrota estava garantida. Só faltava saber a sua dimensão.  Se os artilheiros se puseram ao fresco, o mesmo não se pode dizer dos pobres soldados de infantaria da UNITA, que entraram em acção encavalitados nos tanques Oliphant e nos Ratels. Os seus mortos ficaram espalhados em grande número pelo campo de batalha”. (The Buffalo Soldiers The Story of South Africa’s 32º Battalion 1975-1993. Página 309).

Mais este relato: “O oficial de inteligência da UNITA, Caxito, forneceu estimativas incorrectas da situação geral. Ele baseou-se na opinião exagerada que Jonas Savimbi tinha de si mesmo, segundo a qual era o mestre da guerra de guerrilha no continente Africano. Se qualquer um dos seus generais ousasse apontar os pontos fracos da estratégia de guerra de Savimbi, isso era considerado um insulto imperdoável. Essa audácia era geralmente recompensada com uma bala na nuca.”

Ao coronel Breytenbach devemos este relato sobre o princípio do fim da aventura dos racistas de Pretória em Angola: “O dia 30 de Abril de 1988, marcou o início da ‘Operação Displace’, quando o comando mudou do coronel Fouché para o comandante Piet Nel, um célebre paraquedista, conhecido nos círculos castrenses como ‘Piet Graspol’ (Piet Tufo de Capim). Ele assumiu o comando de uma força que foi designada, erradamente, por 20º Grupo de Combate. A unidade devia ser designada por Grupo de Batalha 20. O grupo incluía o esquadrão antitanque do major Hannes Nortmann, uma companhia motorizada de fuzileiros do 32º Batalhão, duas secções de engenheiros e uma bateria G-5 de 155mm. A UNITA forneceu três batalhões para ocupar o sistema defensivo projectado para manter as FAPLA à distância e a retirada acontecer em boa ordem”. 

No dia 22 de Maio 2014 publiquei no Jornal de Angola uma reportagem baseada em informações reveladas no livro do coronel Ian Breytenbacxh com o título “Eden’s Exiles” e o subtítulo “One soldier’s fight for Paradise”. O oficial sul-africano fala de exilados do Éden e descreveu em centenas de páginas a luta de um soldado pelo paraíso. O paraíso era o Cuando Cubango, último reduto da savana virgem africana. O velho soldado descobriu que Savimbi era um peão dos sul-africanos no tráfico de diamantes e marfim (páginas 247 a 351). Mas também de madeiras preciosas, sobretudo Girassonde. E droga. 

Leiam o texto integral da reportagem: 

“O coronel Jan Breytenbach era um dos mais condecorados oficiais das Forças de Defesa e Segurança do regime de apartheid, que fez da África do Sul um imenso campo de concentração. O famoso Batalhão Búfalo foi criado e treinado por ele, na faixa de Caprivi.

Os cabos e “flechas” da UNITA passaram-lhe pelas mãos até serem promovidos a oficiais. Um dia ele descobriu que a guerra de Savimbi tinha apenas um fim: Roubar os diamantes de Angola, dizimar elefantes e rinocerontes para o contrabando de marfim e devastar o último reduto da savana africana, para roubar madeiras preciosas.

Jan Breytenbach publicou um livro onde denuncia aquele que deve ser o mais grave crime ambiental que alguma vez foi cometido no mundo. Isto ainda é pouco. A Jamba também era o centro de um esquema de tráfico de droga que vinha de Lusaka e era depois distribuída para toda a África e mercados da Europa, EUA e Oriente.

O tráfico de marfim foi denunciado alguns anos antes da publicação do livro de Breytenbach, pela Environmentand Animal Welfare que entregou um relatório inquietante à Comissão do Ambiente da Câmara dos Representantes dos EUA. O documento responsabiliza Savimbi e oficiais sul-africanos de alta patente por gravíssimos atentados ambientais no Cuando Cubango. Craig Van Note, da organização, foi chamado a depor e confirmou todo o conteúdo do relatório. 

Mas acrescentou este ponto: “As forças rebeldes angolanas da UNITA de Jonas Savimbi, apoiadas pela África do Sul, liquidaram 100.000 elefantes para ajudar a financiar a guerra”.

A Environmentand Animal Welfare explicou que o contrabando de marfim se fazia através da faixa de Caprivi num esquema montado por oficiais das Forças de Defesa e Segurança da África do Sul. O coronel Breytenbach foi directamente ao assunto: “Descobri que oficiais das SADF estavam implicados numa máfia que contrabandeava dentes de elefante e rinoceronte, diamantes, madeira e droga”. Os russos e cubanos afinal tinham tromba, brilhavam e alucinavam.

Elefantes e Rinocerontes

Breytenbach localiza a Jamba: “A sede de Savimbi estava num lugar chamado Jamba, um pequeno acampamento 15 quilómetros a sul do rio Luiana”. O velho coronel não o diz, mas convém esclarecer que Luiana era um posto administrativo da era colonial e existia apenas para marcar a soberania portuguesa.

Quando o MPLA lançou a guerra na Frente Leste, o posto de Luiana foi guarnecido com um pelotão do exército português. E foi construída uma pista onde aterravam os famosos aviões Nord Atlas popularmente conhecidos por “barriga de jinguba”. Também era base dos aviões de guerra rodesianos e sul-africanos mobilizados para as operações das tropas especiais portuguesas. Savimbi conheceu a zona através dos “flechas” da PIDE e dos pilotos de helicópteros sul-africanos que aterravam na sua pista, quando regressavam das operações na Frente Leste com comandos e paraquedistas. 

“Savimbi usava estas áreas como terreno privado de caça para si e seus amigos, especialmente políticos estrangeiros que podiam ajudá-lo na sua guerra contra o MPLA”, escreve o coronel Breytenbach. O paraíso começou a transformar-se num inferno para elefantes e rinocerontes. Mais de 90 por cento dos efectivos destas espécies foram dizimados. Estamos a falar dos raros “Cobiense”.  Mais uma denúncia do coronel Breytenbach: “Savimbi começou a disparar sobre estas duas espécies de forma organizada. As presas dos elefantes e os chifres dos rinocerontes foram armazenados na Jamba, enquanto ele foi procurando uma forna de exportar o saque para o Extremo Oriente, especialmente Hong Kong. Para isso foi necessário organizar a máfia”.

Sempre a Mentira

Fred Bridgeland, no seu livro “Savimbi: a chave para África”, escreveu que o chefe da UNITA tinha que pagar a ajuda sul-africana com diamantes e marfim. Uma mentira que o coronel Breytenbach não deixa passar ni seu livro “Eden’s Exiles” e o subtítulo One soldier’s fight for Paradise: “O apoio da inteligência militar a Savimbi, em 1986/1987, totalizou 400 milhões de rands. Sei também que com este dinheiro os sul-africanos compraram praticamente todo o combustível, material de guerra e o fardamento. O dinheiro para apoiar a UNITA saiu dos bolsos dos contribuintes sul-africanos”. Savimbi sempre foi um mentiroso compulsivo. E passou a doença aos seus homens.

Ninguém pense que Ian Breytenbach fala por despeito. Ele explica o que o moveu: “Sou a favor de uma guerra justa, mas tenho grande dificuldade em conciliar a justeza da guerra com a destruição do último reduto da savana africana”. Mais esta passagem do livro: “Destruíram a savana africana do Cuando Cubango a troco das precárias liberdades prometidas por Savimbi, que não é seguido por pelo menos 80 por cento dos angolanos. Na minha forma de pensar isto é totalmente desprezível e uma ofensa contra a Criação de Deus”.

O Cheiro do Contrabando

Savimbi conseguiu colocar o marfim em Hong Kong, os diamantes em Pretória ou na Europa e a madeira preciosa na Namíbia, através de um esquema mafioso que incluiu oficiais das Forças de Defesa e Segurança da África do Sul, os turistas da Jamba, os seus “embaixadores” e portugueses que fugiram de Angola no 25 de Abril de 1974, entre os quais agentes e inspectores da PIDE/DGS. O biólogo ManieGrobler, gestor de parques naturais da Namíbia, um dia foi ter com o coronel IanBreytenbach e deu-lhe conhecimento da existência de tráfico de dentes de elefante e chifres de rinoceronte, além de madeiras preciosas, sobretudo Girassonde. 

O velho coronel estava nas altas esferas militares da África do Sul mas nada sabia: “Perguntou-me se eu tinha conhecimento da existência de marfim com o valor de muitos milhões de rands, num aeródromo de Caprivi. Eu não tinha conhecimento de um valor tão grande. Mas Manie Grobler foi informado por um piloto civil que ia buscar o marfim para a Inteligência Militar”.

Ian Breytenbach investigou e descobriu que o marfim pertencia aos “stocks” da UNITA e saía da região numa pista em Bwabwata. ManieGrobler uns dias depois foi ameaçado de ser saneado se voltasse a falar de marfim, madeira e diamantes.“Comecei a fazer perguntas e a juntar factos. A imagem que gradualmente começou a surgir era muito feia e inacreditável. Nem no meu pior pesadelo eu podia ter imaginado que oficiais da SADF se tinham envolvido em algo digno da máfia”.

Mafiosos Matam

O padrinho da máfia era um comerciante português, Arlindo Manuel Maia, dono de uma empresa de transportes em Joanesburgo e com “filial” no Rundu. Outro mafioso era José Francisco Lopes, comerciante no Rundu e tido como multimilionário. 

“A inteligência sul-africana criou uma organização, a InterFrama, para transportar material de guerra para a UNITA. No regresso os camiões traziam madeira e marfim”, escreve Breytenbach. Milhões de toneladas de madeira foram roubados de Angola durante a guerra.
“As árvores eram derrubadas em Angola e serradas em tábuas numa serração pertencente à InterFrama, em Bwabwata, no ocidente de Caprivi”, escreve o coronel.

O marfim era vendido a um comerciante de Hong Kong perito em violar as sanções que foram impostas ao regime de apartheid da África do Sul.

Tráfico de Droga

A Lei do Segredo de Estado de Pretória protegia estes negócios. Mas Savimbi e os seus cabos tornaram-se demasiado ambiciosos. Acrescentaram ao contrabando de marfim, diamantes e madeira, o tráfico de droga.

Ian Breytenbach escreve no seu livro “Eden’s Exiles” e o subtítulo One soldier’s fight for Paradise: “Um comerciante português em Katima, Zâmbia, começou a canalizar para a Jamba droga que vinha de Lusaka”. Em breve o negócio da droga atingiu níveis “industriais”. A Jamba era o armazém central do tráfico. Começa a perceber-se tanta alucinação de Savimbi e dos seus cabos. Os paraísos artificiais têm o condão de eliminar as diferenças entre a verdade e a mentira.

A Jamba tinha um sinaleiro para disfarçar a verdade: Era o centro nevrálgico do tráfico de marfim, diamantes, madeiras preciosas e droga! Hoje a direcção da UNITA engana os angolanos dizendo que Savimbi protegia os elefantes e a natureza.  Milhões de árvores foram derrubadas nas savanas do Cuando Cubango para traficar madeira. Uma catástrofe ambiental sem precedentes e que ficou sem castigo”.

O responsável por todos estes crimes hediondos, Jonas Malheiro Savimbi, é patrono de uma Fundação em Angola. Ele lutou contra a Independência Nacional ao lado dos colonialistas. Na Guerra da Transição lutou ao lado dos independentistas brancos para atrelar Angola à constelação da África do Sul racista. Lutou contra o Povo Angolano ao lado dos racistas de Pretória na Guerra pela Soberania Nacional e a Integridade Territorial. Matou dirigentes da UNITA. Fez de mulheres escravas sexuais. Algumas foram mortas. Queimou vivas dezenas de mulheres e crianças na Jamba. Agora, graças ao Presidente João Lourenço é patrono de uma fundação. Os amigos são para as ocasiões.

* Jornalista

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