quarta-feira, 19 de junho de 2024

Portugal | Media livre de qualquer jornalismo

Fernanda Câncio* | Diário de Notícias | opinião

Uma poderosa empresa de media e respetivo diretor de ‘conteúdos’ foram condenados pela invenção de títulos sucessivos - incluindo manchetes -, imputando, sem qualquer base factual, crimes a uma determinada pessoa. Leu esta notícia em algum lado? Não. Deve ser porque é normal e não interessa a ninguém.

“Dos títulos referidos (… ) resulta, para qualquer cidadão médio/declaratário normal, a imputação (…) de condutas de comparticipação/conluio em situações de ocultação de dinheiro (…) e portanto a imputação (…) da comparticipação em ilícitos penais”; de um outro título “resulta, para qualquer cidadão médio (...), a imputação (…) de conduta de comparticipação na situação de falsificação (“farsa”) da autoria de um escrito.”

Este excerto pertence a um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de maio último, que condena a empresa Cofina (agora Medialivre) por difamação, assim como o ex-diretor do Correio da Manhã e da CMTV Octávio Ribeiro (agora um dos proprietários da Medialivre). A condenação deve-se, explica o tribunal, ao facto de as imputações contidas nos ditos títulos, um deles manchete e os restantes chamadas de primeira página do Correio da Manhã, serem “objetivamente suscetíveis de ofender a honra e consideração” da pessoa a que se referem, não estando sequer suportados nos artigos a que dizem respeito: “Tais títulos são excessivos e desproporcionados, não refletindo verdadeiramente a notícia, e como tal, não resultam de uma atuação de boa fé e de forma a transmitir uma informação exata e digna de crédito.”

Dito de outra forma: são títulos mentirosos, que falseiam até as “notícias” a que aludem. E, acrescento, mentem exatamente com o intuito de imputar atos criminosos ou reprováveis ao seu alvo – como, ao divulgar num longo “especial  informação”, com comentários sarcásticos, as imagens e som da inquirição da mesma pessoa, pelo Ministério Público, como testemunha de um processo, a quiseram apresentar, na perspectiva de "um cidadão médio normal", como suspeita e/ou arguida (ato pelo qual o acórdão citado também condena a Cofina/Medialivre e Octávio Ribeiro, diretor da CMTV à época).

Não, não se trata de “erros”, “lapsos” nem “más interpretações”. Poderíamos admitir tal hipótese se se tratasse de um caso. Impossível quando estamos perante uma série de títulos mentirosos, publicados em sequência, e tendo como alvo uma pessoa; não é um acaso, é uma deliberação, uma perseguição continuada.

O mesmo se poderia dizer sobre as “notícias” a que aludem os títulos, mas sigamos a decisão judicial, que só considera ilícitos os títulos e manchetes. Precisamente, a decisão judicial: experimente quem lê googlar em busca de uma notícia sobre ela. Encontrará apenas um (bom) artigo de opinião de Bárbara Reis, no Público, na sua newsletter sobre media. Não houve em Portugal um jornal, uma rádio, uma TV que considerasse ser de noticiar o facto de aquele que é sempre indicado como o diário mais lido no país ter sido, com o diretor à época, condenado por repetidos títulos que imputam, sem qualquer base factual, crimes a alguém.

E não é que os restantes media possam alegar desconhecimento: a revelação da existência do acórdão, e do pagamento da indemnização nele arbitrada, foi feita publicamente, na rede social Twitter, numa conta seguida por centenas, senão milhares, de jornalistas. Aliás, o acórdão foi quase de imediato colocado online pelo Tribunal da Relação, pelo que nem se poderia alegar que não havia acesso ao mesmo.

Foi mesmo desinteresse: os jornalistas, os jornais, as TV e as rádios não acham que se trate de um assunto que mereça perderem o seu tempo, apesar de estar em causa a absolura violação de todas as regras deontológicas da profissão e a absoluta evidência de que é possível uma empresa de media decidir – seja lá com que motivo – entrar em guerra com uma pessoa e empenhar-se em destruir a sua imagem pública construindo, durante anos, uma cadeia estridente de imputações falsas.

Que essa pessoa seja uma jornalista, alguém que – é suposto ser essa a essência do jornalismo – vive da sua credibilidade, também não pareceu relevante. Ou talvez seja: se calhar os jornalistas ficaram com medo de que lhes chamassem corporativos se noticiassem a condenação de pessoas com carteira de jornalista por, violando todas as regras da profissão, difamarem uma jornalista. Não temeram, claramente, a leitura contrária – de que preferem passar ao largo da condenação porque incidiu em pessoas com carteira de jornalista que violaram todas as regras da profissão e sobre uma empresa de media poderosíssima. Uma empresa de media que estando no mercado e beneficiando do sucesso populista e popular que a sua ausência de escrúpulos e de rigor granjeiam, poderá, quiçá, um dia vir a contratá-los – é chato arranjar inimigos poderosos, sobretudo quando não se preocupam com uma coisa chamada ética.

Temos pois de concluir que isto que a Cofina/Medialivre fez, isto que Octávio Ribeiro, o todo-poderoso ex-director do CM e da CMTV, fez não é realmente grave, não põe realmente em causa a credibilidade do jornalismo como um todo, nem demonstra realmente como o chamado “quarto poder” pode ser usado com intuitos mafiosos – os de “matar” alguém sem mais motivo que o de embirrar ou de, até, evidenciar que ali se pode tudo.

E pode. Ou não assistíssemos ao silêncio sepulcral de praticamente toda a “classe jornalística”, como de quase toda a “classe política”, parte da qual, de resto, sob o epíteto de “senadores”, com relevo para o ex-PM António Costa, o ex-presidente do PSD Rui Rio e o ex-ministro das Finanças e ex-Presidente da Câmara de Lisboa Fernando Medina, marchou feliz para o mais novo produto da Cofina/Medialivre, o canal Now, de modo a com a respetiva presença abençoar (até lá têm um cardeal, de resto) e branquear aquele pestilento cadastro. Dizem eles, os “senadores” –  ali alcandorados a “conselheiros” para, num “grupo de reflexão”, ajudarem a refletir sobre “as decisões estratégicas” do Now – , que quem está “à frente” daquilo os convenceu de que vai ser Now, for something completely different.

Ou seja, no CM e na CMTV a empresa vai continuar a fazer aquilo com que se habituou a fazer fortuna – violar as regras do jornalismo e da ética, cometendo inclusive crimes – e no Now vai ser de uma pureza comovente, um exemplo de rigor, uma força do bem.

E, se for preciso, ainda lhes ouviremos, como ouvimos dos trolls no Twitter, que afinal nem há assim tanta diferença entre o que a CMTV e o CM fazem e o que os outros canais e jornais fazem, porque “todos mentem”.

Como jornalista, nunca aceitarei essa desculpa – por mais que tantas vezes critique aquilo que considero mau jornalismo, distingo bem o mau jornalismo daquilo que, sob as vestes de jornalismo, é apenas maldade premeditada, sem desculpa.  

Sei que o silêncio generalizado a que aludo neste texto é mau jornalismo, cobardia, ignorância e mesmo preconceito –  o alvo das mentiras do CM e da CMTV merece, pensam tantos, e sobretudo não merece que alguém se atravesse (porque é nisso que tantos pensam, em quem é o alvo/vítima e não nos princípios, na defesa do jornalismo, na defesa da profissão) –, não um conluio de má fé. É achar que não tem interesse público aquilo que não lhes interessa publicitar.

Discordo, e não porque o alvo da Cofina/Medialivre neste caso fui eu. Discordo porque houve, há e por este andar haverá muitos outros alvos – muitos deles sem os meios para processar ou sequer voz pública – deste tipo de calúnia, deste tipo de decisão “editorial” (que aqui chegou ao cúmulo de inventar, colocando-a entre aspas sobre uma foto minha, uma frase-manchete alegadamente recolhida em escutas judiciais e que nunca existiu – tanto que nem está no artigo que suporta tal título de capa).

Discordo porque não deve haver poderes insindicáveis, absolutos e irresponsabilizáveis, sejam eles de que género forem, poderes que, como sucede com o manda-chuva da Cofina/Medialivre Octávio Ribeiro, chegam agora (Now) ao despautério e desvergonha de, em recurso “extraordinário” da sua condenação, requerer ao Supremo Tribunal que conceda que ele, como diretor, e os diretores em geral, não pode ser responsabilizado por manchetes e títulos de capa – os quais, toda a gente nos media sabe, são sempre decididos pelos diretores –, pela divulgação de conteúdos ilegais como vídeos de inquirições do MP ou qualquer outro “conteúdo” que dê problemas.

O que Octávio Ribeiro quer é que a culpa seja sempre de quem assina ou dá o nome, dos proletários como Tânia Laranjo (também condenada neste processo). O que Octávio Ribeiro quer é que o mandante, quem autoriza e arquiteta, o autor moral e material dos ilícitos e crimes, o que mais lucra e goza com eles, fique a salvo da lei e dos tribunais, protegido pelos inexpugnáveis muros de um poder absoluto. Isto também não interessa a ninguém?

Nota: Além do processo referido neste texto, corre nos tribunais um anterior contra a Cofina/Correio da Manhã/CMTV, Octávio Ribeiro e outros funcionários da empresa, o qual teve condenação em primeira instância e aguarda resultado de recurso na Relação. Processo sobre o qual o Correio da Manhã, em título de artigo assinado em abril de 2021 por uma das rés, garantia: "Fernanda Câncio perde em tribunal processo contra a Cofina". Para logo no início do artigo refutar a afirmação anterior: "O Tribunal da Relação mandou repetir o julgamento do processo que Fernanda Câncio interpôs em 2016 contra a Cofina (...) e vários dos seus jornalistas". Um processo ganha-se ou perde-se quando há trânsito em julgado; se há repetição de julgamento, é porque o processo não acabou e ninguém ganhou ou perdeu - como quem fez aquele título sabe muito bem. Mas, lá está, é a Cofina, now Medialivre.

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