quarta-feira, 18 de junho de 2025

Angola | GENERAL KIANDA RECORDA A VIAGEM

 (Reportagem publicada em 13 de Junho 2014 no Jornal de Angola)

O dia em que Comandante em Chefe Foi à Cahama

ARTUR QUEIROZ*/ PEREIRA DINIS* e PAULINO DAMIÃO (fotos)

Ano de 1981. Dois batalhões escorraçavam as tropas da UNITA enviadas para o Cunene pelos sul-africanos. As operações desenrolavam-se entre Xangongo e Ondjiva. Um dia a aviação sul-africana atacou simultaneamente no Cuamato e na Môngua. As brigadas 11ª e 19ª tiveram que recuar e toda a área ficou nas mãos dos invasores. O General Kianda, na época chefe do estado-maior da Região Militar, com sede no Lubango, reconhece “grandes perdas” naquelas unidades mas recorda que quando os racistas de Pretória investiram contra a Segunda Brigada, na Cahama, “foram eles que recuaram porque despejamos muito ferro em cima deles”.

A Operação Protea estava em marcha e tinha como objectivo criar a Sul do Cuanza um “país” para Savimbi. Mas encontraram uma resistência inesperada. Passado o efeito surpresa, a11ª brigada, comandada pelo primeiro-tenente Dange, e a 19ª Brigada, comandada pelo primeiro-tenente Furtado, recompuseram-se reagiram aos invasores. A Segunda Brigada batia-se heroicamente na Cahama, nesta altura com o General Zumbi no comando das tropas. Os sul-africanos recuaram e a diplomacia entrou em campo. 

O ministro do Interior, Alexandre Rodrigues Quito e o ministro da Defesa, Pedro Maria Tonha Pedalé, foram a Lusaka onde tiveram conversações com Magnus Mallan, ministro da Defesa da África do Sul, e Pick Botha, ministro das Relações Exteriores. Daqui saiu uma comissão militar mista, que se instalou em Ondjiva. Ficou encarregada de desmilitarizar o Cunene: “Eles estavam a entreter-nos, na realidade preparavam as condições para investir contra o Cuando Cubango”, afirma o General Kianda. Os Generais Xavier, Pedro Sebastião e Kopelipa faziam parte da comissão, que no total tinha oito oficiais angolanos.

Os Mísseis Móveis

Em 1983, o General Kianda substituiu o General Foguetão no comando da Região Militar. A Operação Protea estava no auge. “Os invasores faziam permanentes golpes aéreos sobre as nossas posições mas também foi nessa época que recebemos mísseis anti aéreos móveis, antes apenas existiam posições fixas e aqueles mísseis de transportar às costas, os Flecha C2M. As novas armas ajudaram a mudar o rumo da guerra”, diz o General Kianda.

Os mísseis fixos estavam no Lubango, Namibe, Menongue e Matala. Depois vieram os mísseis com rodas, os “Osaka” e os “Quadrante”. A aviação sul-africana foi perdendo o domínio dos ares: “só bombardeavam a cinco mil metros de altitude e a essa distância não existia objectividade”. 

Em terra, os invasores começaram a ter importantes perdas. As tropas angolanas tinham o moral elevado e começavam a acreditar numa vitória militar. Em plenos combates e com o perigo à espreita em cada quilómetro da estrada entre o Lubango e a Cahama, o Comandante em Chefe decidiu ir visitar os heróicos combatentes que começavam a libertar o mundo do regime de apartheid.

Decisão Inabalável

“No dia 12 de Junho de 1984 o Comandante em Chefe telefonou-me. Disse que no dia seguinte queria ir à Cahama. Eu respondi que era muito perigoso, a força aérea sul-africana atacava permanentemente a estrada. Desaconselhei-o a ir. Mas a resposta não me deixou alternativa: “Eu já decidi e vou mesmo. Prepare tudo”. 

Face a uma “decisão inabalável”, o comandante da Região Militar reuniu os seus oficiais e começou a preparar a visita à Cahama. “Criámos um sistema defensivo entre a Chibia e a Cahama. Colocámos unidades emboscadas ao longo da estrada mas nas áreas interiores. Montámos um cordão de segurança o melhor possível. Fizemos tudo durante a noite. Era perigoso levar o Chefe de Estado para ali. Mas quando recebi o telefonema, o General Ndalu estava ao lado dele. Se o chefe do Estado-Maior General não conseguiu demover o Presidente da República, não era eu que ia insistir. Obedecemos”. 

Na manhã seguinte, o Comandante em Chefe chegou ao Lubango e de imediato seguiu em direcção à Cahama: “Partimos numa coluna militar de 15 viaturas onde estava integrada a defesa imediata do Presidente José Eduardo dos Santos. Chegámos ao destino, eram nove da manhã do dia 13 de Junho de 1984.”

Quando os sul-africanos souberam que o Comandante em Chefe esteve na Cahama com as tropas, ficaram tão desmoralizados que se retiraram para junto da fronteira e nunca mais voltaram a bombardear a região.

Conversas com Soldados

Na Cahama o Comandante em Chefe entrou no “bunker” do comandante Zumbi, que lhe fez uma exposição da situação militar. Depois andou de trincheira em trincheira a cumprimentar os soldados e a dar-lhes ânimo para prosseguirem os combates contra os invasores estrangeiros e seus aliados internos.

“Os oficiais da Segunda Brigada formaram para receber cumprimentos do Comandante em Chefe, que os cumprimentou um a um. Às 16h00 regressámos ao Lubango. No dia seguinte de manhã, o Presidente da República participou num comício no Lubango, onde disse aos milhares de angolanos ali presentes que as FAPLA estavam a derrotar os sul-africanos. Foi o delírio. Do Lubango partimos para o Namibe e só depois a comitiva do Comandante em Chefe regressou a Luanda”, recorda o General Kianda.

Quem veio de Luanda com o Presidente da República? O General Kianda responde: “Estava com ele o chefe do Estado-Maior General das FAPLA, General Ndalu, o General Zé Maria e o jornalista Aldemiro Vaz da Conceição. Penso que estavam outros membros do seu gabinete, mas já não me recordo”. 

E quem do comando da Região Militar acompanhou a visita do Comandante em Chefe à Cahama? Neste ponto, o General Kianda não tem lapsos de memória: “Eu fui à frente. Se ficasse para trás e acontecesse alguma coisa, até podiam pensar que estava a colaborar com o inimigo!” Mas outro oficial também foi à frente: “o General Kopelipa foi comigo, nessa altura ele era o comandante da Força Aérea da Região Militar. Nós os dois tínhamos a obrigação de defender o Comandante em Chefe por terra e pelo ar”.

O Presidente José Eduardo dos Santos tomou a “decisão inabalável” de visitar as tropas que estavam a derrotar os racistas sul-africanos no Cunene. Foi ali que o mundo começou a libertar-se do mais grave crime que alguma vez se abateu sobre a Humanidade: o regime de apartheid da África do Sul.

O guerrilheiro que venceu o Maiombe

Salviano de Jesus Sequeira juntou-se à guerrilha do MPLA em 1968. Alguns anos depois comandava um grupo de guerrilheiros que entrou em combate com as tropas do exército colonial português. Mas o inimigo era muito forte e os combatentes tiveram que recuar. O comandante Kianda andou 21 dias perdido no Maiombe. Até então, nunca ninguém tinha sobrevivido mais do que uma semana na floresta cerrada.

Comia coconotes e bebia água das folhas das árvores. Um dia encontrou uma bananeira e cortou um cacho de bananas ainda verdes. Carregou-o às costas e os frutos entretanto amadureceram. Já no fim da odisseia encontrou uma horta, perto de uma aldeia congolesa. Ficou lá um dia a banquetear-se com tomates e laranjas. Tinha sobrevivido.

Há quem pense que o seu nome de guerra vem daquele “ki anda” muito. Mas vem mesmo de kianda, a mítica sereia de Luanda. Quando nasceu, no Sambizanga, o mais luandense dos bairros da capital, tinha a cabeça muito grande. E logo a sua avó materna sentenciou: “foste concebido pela sereia”. Desde então, todos os anos a família punha a toalha branca em cima da mesa, repleta de comida: “Como o dinheiro não dava para mais, as garrafas eram de vinho abafado e também havia aguardente. Para me dar sorte. Aos 13 anos recusei o meter a mesa”. 

O General Kianda recusou o “meter a mesa” mas para toda a vida e para História vai ficar ligado à sereia. 

* Jornalistas 


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