quarta-feira, 4 de junho de 2025

Portugal | QUANDO DANÇAS COM O DIABO -- Fernanda Câncio

Então, dizem-nos, é para "normalizar" o racismo explícito, os apelos à violência e à morte, o insulto e a calúnia como modo de fazer política. Mais as constantes referências ao “antes do 25 de abril” como algo de mais desejável que o pós, ou seja, à ditadura e à miséria do Estado Novo como superiores à democracia e ao Estado Social. É só entregar a alma, não custa nada.

Fernanda Câncio, opinião | Diário de Notícias

No seu discurso após serem conhecidos os resultados do círculo da emigração, André Ventura disse várias coisas, mas uma delas ficou a retinir-me nos ouvidos: “Quero mudar a alma do país”.

É uma frase de “efeito”, na qual não é certo que tenha refletido — o discurso esteve, como é costume na pessoa, cheio de gongorismos, estultícias e absolutas contradições — mas que merece atenção. É que não é todos os dias que um líder político se refere à “alma” de um país, ou seja à sua essência, natureza, espírito, caráter, como necessitando de mudança. Geralmente os líderes políticos, e mais ainda os populistas como Ventura, fazem o contrário:  exaltam essa mesma alma (seja lá o que for) e assumem-se como os seus únicos intérpretes verdadeiros e fiéis, os seus arautos, oráculos, profetas. É aliás essa a definição do populismo; é a isso mesmo que este específico líder se refere quando proclama saber e dizer o que “as pessoas sentem”.

Ora se diz o que as pessoas sentem, o que significa que está “ligado”, conectado, à respetiva alma, por que haveria de querer mudá-la? Que defeitos lhe encontra? Que melhorias prognostica?  A afirmação é ainda mais inusitada quando quem a profere passa a vida a invocar a sua religiosidade — o que terá de implicar que a palavra tem para si um cunho sagrado, transcendente. Como haveria então um homem, por mais escolhido, ungido, venturoso que se considere, de mudar algo que é simultaneamente da ordem da imanência e da transcendência? Não é isto praticamente uma blasfémia, tanto religiosa como política?

Bom, dir-me-ão, nada disto é para levar a sério — no mesmo discurso, Ventura disse que as vitórias não servem para esfregar na cara dos derrotados, quando na noite das legislativas, dias antes, tinha iniciado o discurso nem mais nem menos assim: “Varremos do mapa a esquerda, ajustámos as contas com a história. Superámos o partido de Mário Soares, matámos o PCP de Álvaro Cunhal, varremos o BE do mapa”.  

Sucede que sim, o que Ventura diz é para levar a sério porque é para levar a sério, muito a sério, aquilo que está a acontecer. É para levar muito a sério aquilo que o Chega, ou seja André Ventura, quer fazer, e o que quer fazer é algo que está muito menos nos seus sucessivos programas — os quais, recorde-se, passaram do liberalismo motosserrista à la Milei (o ministério da Educação era para extinguir e as escolas para “dar” a quem as quisesse, na saúde instaurava-se o princípio do utilizador-pagador, o Código do Trabalho era para rasgar e o arrendamento para liberalizar ainda mais, etc) aos hinos ao Estado Social, mantendo sempre a ideia de cortar o mais possível os impostos e nunca explicando onde se vai buscar o dinheiro para o que se promete; ou seja, são não-importa-o-quê, apenas meios para um fim — e muito mais na sua praxis quotidiana. 

E essa praxis é a da degradação, da brutificação, do enaltecimento da violência, da humilhação e da ameaça. É a praxis em que o líder apelida de “bandidos” uma família negra num bairro pobre por ser negra e pobreexige uma medalha para um agente da PSP que matou um homem negro desarmado (Odair Moniz) à queima-roupa, calunia os imigrantes associando, sem qualquer fundamento factual (como o diretor da Polícia Judiciária fez questão de esclarecer), a imigração a insegurança e criminalidade, afixa cartazes em que faz equivaler os 50 anos da democracia — os únicos anos de democracia e liberdade política que este país conheceu — a “corrupção”. 

A praxis pela qual o líder parlamentar do partido afirmou na TV, após a morte de Odair Moniz, que “se a polícia atirasse mais a matar, o país estava em ordem”. 

A praxis em que o partido e o seu líder, que passam a vida a reclamar o direito à total liberdade de expressão, disparam processos contra comentadores, jornalistas e adversários políticos; Ventura pode chamar tudo a toda a gente, dizer que este e aquele deviam estar presos, mas ai de quem se lembre de o apelidar, a ele ou ao partido, de racista, xenófobo ou outra coisa qualquer das muitas que podem, com toda a propriedade, ser-lhes imputadas.

Deixa tudo isto de ser verdade, deixa tudo isto de ser um perigo, deixa tudo isto de ser infrequentável, inaceitável, deixa tudo isto de dever ser, sem quartel, combatido por todos os que defendem o Estado de direito, o primado da lei, os direitos humanos, porque esta pessoa e este partido conseguiram muitos votos? 

Trump ganhou as presidenciais americanas e teve até, ao contrário do que se passou em 2016, mais votos que a adversária. Isso significa que passa a ser uma pessoa respeitável? Que não constitui um perigo para os EUA e para o mundo? Que não é um autocrata que está metodicamente, mais a sua entusiástica trupe, a destruir a democracia americana? 

E, sim, podemos mesmo falar de Hitler e de como o seu partido de 1928 a 1932 passou, em eleições livres, de 2,63% dos votos para 33%, de como em 1933 entrou para um governo de coligação e no fim do ano já ilegalizara todos os outros partidos —  o resto sabemos todos (ou não, e se calhar é mesmo esse o problema). 

Quando oiço ou leio gente a perorar sobre a “necessidade de normalizar o Chega” por causa do milhão e trezentos e tal mil eleitores que nele votaram, gostaria de que me explicassem o que querem “normalizar”: o racismo explícito? Os apelos à violência e à morte? O insulto e a calúnia como modo de fazer política? As constantes referências ao “antes do 25 de abril” como algo de mais desejável que o pós, ou seja, à ditadura e à miséria do Estado Novo como superiores à democracia e ao Estado Social?

A ideia é o quê, que se continuarem a fazer de conta que isso não é o que distingue o Chega dos outros partidos, o Chega muda? 

Se dançares com o diabo, não mudas o diabo, ele muda-te a ti. E não é que não tenhamos sido avisados.

Ler FC em DN opinião:

Incansáveis no propósito de degradar Portugal

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