quarta-feira, 9 de julho de 2025

Mamãs Banidas e Interrompidas

Artur Queiroz*, Luanda >

O rectângulo de jogo estava esburacado por causa de umas bombitas despejadas sobre a Faixa de Gaza. As bancadas eram ruínas com alguns ferros retorcidos à vista. Mesmo assim não cabia uma mosca entre a assistência. O jogo era palpitante. Defrontavam-se o Khadamat Rafah, ostentando orgulhosamente o seu título de campeão na época passada, e o Shabab Khan Younes Sport Club, aspirante a campeão. Se ganhasse o jogo, seus atletas recebiam as faixas de campeões e a taça!

Os de Rafah tinham como arma secreta o goleador Habib. O clube de Khan Younes não tinha estrelas mas era apoiado pelos milhares de refugiados, que tinham no futebol o único escape de lazer. Mesmo assim o seu ponta-de-lança, Hassan Said, andava a ser namorado pelo Al Ahly, campeão egípcio. Fui ao jogo com meu amigo Khalil, adepto do Rafah. 

O jogo estava a correr mal aos campeões e meu amigo dizia “a luta do povo é invencível. Viva a Palestina livre”. Oxalá, respondia eu. Tudo empatado até que a cinco minutos do fim, Hassan Said marcou um golo de bandeira, igual ao do português Nuno Mendes. Um tiro de bazuca imparável. Demolidor. Os fascistas do Chega vão exigir a sua expulsão para a terra dos pais, se alguma vez regressar de Paris. Pretos fora! 

O jogo acabou e o herói de Khan Younes foi levado em ombros pelos refugiados. De repente veio o aviso: Os mercenários dos EUA e de Israel estão a distribuir comida! O irmão de Hassan Said, Ali, foi a casa, aparelhou o burrinho à carroça e os dois irmãos partiram par o local de distribuição. Quando chegaram ao destino, os nazis de Telavive dispararam rajadas sobre os dois manos. As balas desfizeram-lhes as cabeças.

Como os dois irmãos eram cristãos, os seus corpos foram velados na Capela das Desaparições. Gianni Infantino, chefe da Federação Internacional de Futebol (FIFA) compareceu e discursou: “Hoje o futebol mundial está de luto!” Eu não entrei na capela porque estou de relações cortadas com o dono da casa. Mas mesmo de fora ouvi o discurso. Fiquei comovido. Afinal a Humanidade não está tão rendida à sociedade do espectáculo e à hipocrisia como parece. 

As boas almas cristãs, os adeptos do futebol, os políticos portugueses, inclusive os deputados fascistas Mithá e Marcus, ficaram em choque porque dois jovens futebolistas morreram num acidente de viação, ao volante de um Lamborghini que custa mais de um milhão de euros. Intervalo. O Mithá vai ser recambiado para Moçambique. É metade preto, metade asiático e só um bocadinho lusitano. O Marcus vai para o Brasil guardar as costas ao Bolsonaro.

As boas almas também se curvaram ante a memória dos irmãos Hassan Said e Ali, baleados quando estavam às rédeas de um burrinho na carroça da família. Por isso sou como Aragon: Canto o Homem e as suas armas, ao serviço da Humanidade. Intervalo. As bombas dos nazis de Telavive acabam de destroçar meus Filhos em Rafah. Todos os dias me matam as Mamãs, os Filhos, os Irmãos. Sou mesmo vítima do imperialismo. Acreditem. Ma não me rendo à sociedade do epectáculo pornográfico, onde até os mortos garantem horas de emissões nas rádios e televisões, páginas de jornais.

A História de Portugal em África, do século XV ao século XX, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, filho de governador-geral fascista, tem coisas boas e coisas más. Eu, filho de preso político deportado, partilho estas memórias.  

No Bindo viviam alguns colonos, pequenos fazendeiros ou empregados das grandes roças. Serviam-se das mulheres negras como se fossem objectos de sua propriedade. Na época ninguém sabia o que era isso de interrupção voluntária da gravidez ou sexo protegido. Ninguém imagina as tragédias que vivi, jovem adolescente. As meninas solteiras se engravidavam eram banidas. Consideradas daninhas! Nunca mais amigavam. As matilhas de cães que eram utilizadas para caçar à rede, tinham mais cuidados e atenções. Tomavam milongos para interromper a gravidez mas muitas morriam com o tratamento.

As mulheres casadas eram usadas pelos colonos a torto e a direito. Se engravidavam, existia uma rede de solidariedade na aldeia. Outras mulheres seguiam as grávidas e quando nascia a criança, se fosse mestiça era imediatamente morta e enterrada!

Algumas Mamãs, corajosas e indomáveis, levavam a gravidez até ao fim. Depois iam entregar os filhos mestiços aos pais brancos. Eles próprios se encarregavam de matar os bebés recém-nascidos ou nos primeiros anos de vida. E nada lhes acontecia. Não existiam autoridades administrativas ou policiais. Não existiam tribunais. A Lei eram os assassinos e abusadores. Não existiam postos de saúde. Não existiam farmácias, só milongos tradicionais. O primogénito de um roceiro alemão, karkamano alto e loiro, matou três filhos mestiços! Não foi erro, foi desprezo pela vida humana e crueldade infinita.

Senhor Presidente Marcelo Rebelo de Sousa! O colonialismo tinha coisas muito boas. Claro que também tinha coisas más mas isso é para esquecer. Não podemos incomodar os fascistas do Governo Montenegro e seus sócios do partido Chega. Os brandos costumes ainda são o que eram. Os brancos são uma “raça superior”. O problema é que morrem como os outros quando levam tiros nos cornos ou no coração.

Da infância à adolescência assisti a violências inauditas sobre os angolanos. Acontece que os violentados eram meus vizinhos, meus irmãos, meus amigos. Não tenho culpa, foram os colonialistas que nos atiraram para a Kapopa e nos puseram a viver numa cubata de pau a pique. E o Velho Queiroz na época era importante. Já tinha carta de condução e automóvel quando a PIDE o prendeu com o carro cheio de explosivos adquiridos em Espanha aos camaradas libertários! 

No dia 15 de Março 1961 rebentou a Grande Insurreição no Norte de Angola, há tanto tempo esperada. Os colonos ficaram muito admirados porque os guerreiros da UPA mataram os colonos nas fazendas e pequenas vilas do interior, desde os Dembos à fronteira de Maquela do Zombo. Imitações suaves do que sofriam na pele, desde que o colonialismo triunfou.

Lourenço! Nepelako tjyange, sili.

Lourenço! Se pode ser, paga o que me pertence.

* Jornalista

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