Rafael, na foto,
que vive drama humano de brancos e negros, tem o poder de mobilizar sentimentos
humanitários que só aos brancos é dado arregimentar. Rafael Nunes é branco
demais (disseram bonito demais) para ser mendigo.
A tragédia
cotidiana nas ruas expõe o valor desigual da moeda do racismo para negros e
brancos. É sua essência rediviva
Eis que o novo hit
das redes sociais é um mendigo-gato de olhos azuis. As moças querem levá-lo
para casa, dar leitinho na boca, banhá-lo e passar talco. Semelhante ao que
ocorre com os moços presos, com penas longas a cumprir, quando arranjam
casamento de dentro da penitenciária. Descolam mulheres fidelíssimas, que
zelarão pelo nome que o detento lhes dá, e elas, em troca, lhes darão filhos
depois das visitas íntimas, que elas mesmas se encarregarão de sustentar.
Há pouco tempo,
Renato Rocha, ex-baixista do Legião Urbana, foi descoberto na condição de
mendigo nas ruas do Rio de Janeiro. Ele foi famoso, teve algum dinheiro,
frequentou badaladas festas de embalo, teve milhares de fãs, deve ainda tê-los,
foi belo. Não me lembro de que alguém tenha querido levá-lo para casa, dar
leitinho na boquinha e coisa e tal. Parece que preto mendigo, mesmo famoso, é
um preto só.
As famílias de
Renato Rocha e de Rafael Nunes, este o nome do mendigo caucasiano de Curitiba,
têm em comum, além do fato de serem trabalhadoras, desprovidas de lastro
econômico hereditário, como os demais membros do Legião, por exemplo, o fato de
terem oferecido apoio aos dois filhos desgarrados da orientação familiar que um
dia tiveram. Renato e Rafael, por sua vez, como diversos moradores de rua,
afirmam-na como um espaço de liberdade, de fuga das normas sociais que os
oprimem, além de serem usuários de drogas. Existe nestas opções, quando assim
se configuram, realmente, um drama humano pouco acessível a nós, mortais de
vidinha organizada e previsível.
Um dia, encontrei
um homem branco, caucasiano, em um galpão de seleção de material reciclável.
Perguntei qual era a história dele. Havia sido empresário, me contaram. Faliu,
perdeu tudo e abandonou a família, envergonhado. Antes disso, tomara o cuidado
de passar a casa onde vivia com a família para o nome de um amigo-irmão sem
vínculo de parentesco. Evitou assim, que fosse penhorada junto com os outros
bens para pagar dívidas, garantiu a segurança da família que, grata, um dia o
reencontrou. Foram as filhas que contaram a história à assistente social e aos
poucos tentavam se reaproximar. Ele, arredio, mal cumprimentava as pessoas,
apenas selecionava o lixo e nas horas vagas, lia todas as revistas e livros com
os quais se deparava. Só aceitara conversar com a filha mais nova.
Já Urinólia, moça
negra, trabalhadora do mesmo local, viera da Maioba, interior do Maranhão,
trazida por uma família da região de Higienópolis para trabalhar na casa deles
como faz-tudo e mais um pouco. Ao fim do primeiro mês de trabalho, enquanto
dormia, o adolescente da casa masturbou-se em cima dela. A moça acordou, gritou
assustada e naquele momento mesmo foi expulsa da casa pelos patrões. Vagou dois
dias pelas ruas da cidade, bebendo restos de líquidos encontrados no caminho,
até lembrar-se que tinha fome e passar a vasculhar o lixo. Depois de uma semana
andando a esmo, comendo comida das lixeiras de restaurantes e procurando lugar
seco para dormir, encontrou um pessoal catando latas e papelão. Perguntou se
podia juntar-se a eles, foi aceita de braços abertos. Sentiu-se mais protegida,
dormiam debaixo das carroças, tinham um cachorro como guardião, até que
fundaram uma cooperativa e hoje ela mora num quarto de pensão, enquanto
constrói a própria casa num mutirão de habitações populares.
Mas Rafael, além de
viver um drama humano de brancos e negros, tem o poder de mobilizar sentimentos
humanitários que só aos brancos é dado arregimentar. Refiro-me ao sentimento
massivamente manifesto de que algo está fora da ordem na hierarquia da gente
que vale muito e da gente que nada vale. Rafael Nunes é branco demais (disseram
bonito demais) para ser mendigo.
O
outro lado da moeda é Madalena, negra, transsexual, eleita vereadora em
Piracicaba, interior de São Paulo, ameaçada de morte caso assuma a vaga
conquistada na eleição deste ano. Uma mulher negra que além de um pênis e um
rosto marcado pela vida, tem um corpo negro anti-modelo que não a habilita a
desfilar em passarelas ou posar nua para revistas masculinas, como fez Roberta
Close, lembram-se? Transexual branca, objeto de desejo de muitos homens
socialmente heterossexuais, bem postos e moralmente conservadores, durante os
anos 80. Se Roberta, Madalena fosse, tudo se resolveria pelo fetiche, mas uma
preta transexual é inaceitável, como também impronunciáveis deveriam ter sido
os gritos de auto-defesa de Urinólia. Madalena é preta demais, para ousar ser
uma transexual legisladora numa câmara do interior paulistano.
Aqui, enquanto ouço
as cordas sublimes do Ponteio afro para violoncelo, do querido Di Ganzá, apuro
a motivação racial desses dramas todos. A tragédia cotidiana nas ruas expõe o
valor desigual da moeda do racismo para negros e brancos. É sua essência
rediviva.
Por Cidinha da
Silva, em seu sítio
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1 comentário:
Mulher negra com pênis? Putz, deve ser hemafrodita !!!
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