Rui Peralta, Luanda
I - De alguns anos
a esta parte que a América Latina é uma zona instável no mapa-mundo do
capitalismo. Região de grandes lutas sociais e anti-imperialistas e de
importantes mobilizações populares (Mas também uma área fértil em camaleões,
vira-casacas, lambe botas e oportunistas), nos inícios da década de 90, foi um
laboratório do neoliberalismo. A esquerda reformista burguesa latino-americana
aderia, deslumbrada, ao projecto neoliberal e a restante esquerda agonizava nos
pântanos criados pela sua estratégia. Existiam zonas de esperança, formadas
pelas guerrilhas em alguns países e Cuba, sobrevivendo no “período especial”
por entre as ruinas do socialismo real. A Revolução Sandinista capitulou e
alguns dos seus dirigentes (a nomenklatura sandinista) aderia alegremente ao
pensamento único, entrando, claro, pela porta esquerda, que o portão principal,
à direita, estava reservado para outros personagens, mais sinistros, mas menos
camaleónicos.
O projecto
neoliberal, com as suas reformas estruturais transformou a região num lamaçal
pantanoso e no início do século XXI a América Latina transforma-se num imenso
laboratório de alternativas ao neoliberalismo. Surgiram todo o tipo de forças,
assumindo as mais diversas formas, desde as descoordenadas, desorganizadas e
folclóricas, às forças com uma dinâmica específica, com uma postura
insurrecional como o Caracazo na Venezuela, fortemente reprimido, ou com uma
estrutura bem delineada como o zapatismo no México, para além das lutas pela
reapropriação dos recursos e as grandes mobilizações camponesas e mineiras, na
Bolívia, ou os Sem Terra no Brasil.
Em cinco anos, seis
presidentes viram-se derrotados por fortes movimentos populares de rua no Peru,
no Equador, na Bolívia e na Argentina e foram constituídos governos
provenientes destas resistências. Exceptuando a Venezuela, Bolívia e Equador
que realizaram reformas de grande envergadura e de forte acento
anti-imperialista, os restantes governos resultantes destas mobilizações
populares não assumiram uma ruptura com o capitalismo, optando por modelos
reformadores, pós neoliberais, de forte pendor nacional e popular,
reivindicando a soberania dos recursos estratégicos e optando por políticas
redistributivas, mas sem entrar em choque com a estrutura capitalista dos
monopólios globais generalizados.
II - Foi na
Venezuela, no Equador e na Bolívia que se realizaram os maiores avanços
populares no plano constitucional, devido às inovadoras assembleias
constituintes, o que permitiu a criação de novos espaços políticos
participativos, directos e mobilizadores. O Brasil optou pelo
social-liberalismo característico do capitalismo BRICS (grupo ao qual empresta
a inicial) e os restantes (a começar pela Argentina) seguiram atrás, preparando
uma área periférica ao capitalismo BRICS. O social-liberalismo caracteriza-se
pela política redistributiva (que com o tempo vai limitar-se á redistribuição
de migalhas, em nome de valores mais altos que sempre surgem nos discursos
desenvolvimentistas das elites nacionalistas) associada ao favorecimento dos
interesses das elites financeiras e do agronegócio. Neste sentido a esquerda
reformadora conseguiu algo que a direita não estava em condições de realizar e
que é uma política imprescindível no actual estágio capitalista na região:
gerir a pobreza através de uma renda mínima, sem tocar nas causas que geram a
miséria.
Nos países onde os
governos não foram implementados em consequência de fortes mobilizações
populares, continuam a dominar as oligarquias caducas, caso da Colômbia
(governada por uma nefasta narco-oligarquia) o México, as Honduras (desde o
golpe de Estado de 2009) e o Paraguai (desde o golpe palaciano de 2012). Existe
ainda um terceiro grupo, constituído pelo Chile e pelo Peru, onde imperam
governos dos monopólios, que prosseguem políticas neoliberais, mas governados
por novas camadas das respectivas burguesias nacionais, que procuram o seu
lugar ao sol na globalização capitalista.
De qualquer das
formas esta é uma região que, apesar da crise capitalista internacional, as
taxas de crescimento do PIB são admiradas pelo FMI e pelo Banco Mundial, não só
pelo seu crescimento, mas também pelo seu longo período de crescimento. É
evidente que trata-se de um crescimento desigual, não sustentável, com base no
saque dos recursos naturais, na extracção de matérias-primas como o petróleo,
gás, minério, etc. e com uma forte dependência em relação ao mercado mundial.
Esta estratégia de acumulação, praticada pelas políticas desenvolvimentistas, é
de um elevado custo social e ambiental.
III - Os modelos desenvolvimentistas orientados,
essencialmente, para a exportação, comportam um desperdício de recursos
naturais, tornam-se reféns tecnológicos dos monopólios generalizados e
tornam-se dependentes das flutuações dos preços das matérias-primas nos
mercados mundiais. Ainda que os preços elevados das matérias-primas, nos
últimos anos, tenham permitido aos países latino-americanos superarem a crise,
após 2008, este factor tem levado a que estes países voltem a focar o seu
interesse nas matérias-primas não transformadas o que os torna bastante
vulneráveis a uma futura alteração dos preços nos mercados.
No actual contexto
da globalização capitalista, este é um modelo que reforça a divisão
internacional de trabalho assimétrica entre o Norte, que preserva localmente os
seus recursos naturais e o Sul. Mas é também a nível ambiental que esta
estratégia é contraproducente, levando á destruição dos ecossistemas e da
biodiversidade nos países do Sul e á preservação dos ecossistemas nos países do
Norte.
No entanto, se for
feita uma comparação entre a actual situação e a vivida no período de 70 a 90
do século passado, existiram muitas transformações sociais e politicas. Se os
anos 80 foram caracterizados pela explosão das dívidas externas, os anos 90
revelaram-se um período de implementações das políticas do FMI, dos ajustes
estruturais, de continuação das políticas do Consenso de Washington, das
privatizações e destruição do sector público e dos serviços sociais. Foi o
período do neoliberalismo duro, no auge do seu domínio ideológico, logo seguido
da sua crise na América do Sul, embora permaneça (e reforçado!) em países como
a Colômbia, o México e grande parte da América Central.
Estos períodos
sucederam a ditaduras (como o Chile) e os países sofreram com o choque liberal,
a doutrina dos Chicago Boys e o seu capitalismo do desastre. As esquerdas
derrotadas e o movimento operário fortemente reprimido levou á aceitação, sem
grande resistência, do novo modelo de acumulação, gerador de profundas
desigualdades sociais.
IV - Para
compreender a actual realidade latino americana há que ter em conta a
temporalidade específica da região e a sua integração no sistema-mundo. Esta é
uma América composta pelos elementos culturais europeus do sul, pelas nações
indígenas e pelo elemento africano e uma realidade atravessada pelas lutas de
resistência anticolonial das nações indígenas, pelas lutas contra a
escravatura, pelas lutas de libertação nacional, as lutas anti-imperialistas, pelo
elemento anarquista, importado pelos latinos da europa, pelos grandes
movimentos revolucionários do seculo XX, como a revolução mexicana de 1910, a
Revolução Cubana, a Revolução Sandinista, as lutas guerrilheiras, até às
actuais premissas do socialismo do século XXI. Esta diversidade cultural e
vivência social geraram uma pluridimensionalidade que tornou o mundo
latino-americano num vasto terreno de ensaio para a construção das alternativas
actuais, como o socialismo do seculo XXI, os fóruns sociais mundiais de Porto
Alegre (embora excessivamente folclóricos e pouco produtivos), os
neozapatistas, os direitos da natureza, o Estado Plurinacional, as autonomias
indígenas, a recuperação histórica de Bolivar, etc.
Um traço comum a
todas as mobilizações sociais ocorridas nesta região desde o seculo XX é o
Poder Popular. Esta noção é representativa de uma dinâmica que abrange os
períodos de crise revolucionária, mas também as realidades comunitárias, as
lutas de bairro, fábrica ou território.
O Poder Popular na
América Latina é responsável pelas novas formas de apropriações colectivas,
opostas às forças dominantes. É um autêntico factor de ruptura que questiona a
organização de trabalho (e o trabalho), as hierarquias sociais e os mecanismos
do domínio (social, sexual ou racial). A diversidade destas experiencias, desta
praxis, esboça a construção de novos mundos possíveis e está presente na Comuna
de Oxaca, nas lutas feministas mexicanas contra a violência e o patriarcado, no
controlo operário na Venezuela, nas empresas recuperadas na Argentina, nos
conselhos comunais dos bairros populares de Caracas, nas lutas dos sem tecto no
Uruguai e dos Sem Terra no Brasil, no projecto neozapatista mexicano, mas
também nos projectos emancipadores da Venezuela, Equador e Bolívia, na
Revolução Cubana, nas guerrilhas da Colômbia ou nos simples experimentos
comunitários agroecológicos realizados neste país.
É esta noção de
Poder Popular que está imanente nas lutas das comunidades mapuches no Chile,
pela sua sobrevivência e pela recuperação dos seus territórios, na
auto-organização camponesa nas Honduras, nos refeitórios comunitários e
autogeridos de Buenos Aires, e nas grandes assembleias e ocupações estudantis
dos últimos tempos.
Mas estes poderes
populares são globalizados, já interagem à escala planetária, sendo visíveis os
seus elementos nos chamados indignados, no povo das praças¸ no occupy e em
todas as mobilizações e resistências vividas no mundo do capital, desde as
movimentações surgidas no município de Wukan, no Sul da China, até ás das
Puerta del Sol, em Madrid, passando pela praça Sintagma em Moscovo e às
ocupações de rua em Wall Street, Londres e Telavive. Em todos eles está
presente esta praxis desenvolvida na América Latina, inclusive no ciberespaço,
nas novas frentes abertas pela ciberguerrilhas, que englobam os mais diversos
movimentos, como os Anonymus, contra os monopólios generalizados e contra o Big
Brother, que aos poucos e de forma subtil, o capitalismo introduz no quotidiano
dos indivíduos e das comunidades, em nome da segurança.
V - É evidente que
os processos latino-americanos são específicos e obviamente diferenciados dos
restantes, à escala planetária. Mas pelo facto de serem projectos colocados em
práctica, pelo facto de terem adquirido as lições inerentes á sua
experimentação, ou seja, pelo facto de serem praxis, assumiram uma exposição e
uma ampliação que ultrapassou as suas fronteiras, tornaram-se exemplos, não
pelas suas especificidades, mas pelos resultados obtidos. Não são modelos
(muitos destas movimentações só são possíveis pela especificidade da região e
das suas dinâmicas sociais), mas são exemplos de vontade e de autonomia.
Os movimentos
latino-americanos têm histórias, bases sociais e reivindicativas, muito
díspares, Uns são movimentos urbanos, outros rurais. Alguns são de classe,
outros ultrapassam essa fronteira, em torno de interesses comuns. Todos eles
são de uma forte mobilização colectiva. Podem-se, inclusive, identificar alguns
movimentos que nos últimos vinte anos têm representado um papel preponderante
nesta nebulosa de estruturas: o movimento indígena, na região andina, os
movimentos e sindicatos camponeses (sendo o mais emblemático os Sem Terra no
Brasil) os movimentos de mulheres, os sindicatos operários e os trabalhadores
da função pública, os movimentos da juventude (sejam movimentos de caracter
estudantil, sejam de jovens trabalhadores ou de jovens desempregados) e as
associações ambientais e movimentos ecológicos.
VI - Estamos,
portanto, perante um sujeito pluridimensional, Não que a dimensão de classe
esteja ausente (pelo contrário ela é central e os assalariados jogam um papel
essencial neste ciclo). Mesmo na questão indígena, ela é fulcral. A introdução
pelo movimento indígena do conceito de colonização do poder (a colonialidade)
aprofundou a estratégia dos movimentos. Despojados ou ameaçados de
expropriação, temendo pelas suas terras e pelo seu trabalho e condição de vida,
as comunidades indígenas encontraram nestes movimentos uma identificação
politica com os sem tecto, os Sem Terra, os sem trabalho. Esta identificação
torna-se mais sentida nas assembleias, onde o contacto entre os movimentos é
feito de forma aberta e as questões são discutidas frente-a-frente. Estas
mobilizações caracterizam-se pela horizontalidade das estruturas organizativas
e pela discussão de territórios de luta (o que até agora era apenas discutido
ao nível das estruturas dirigentes, por razões estratégicas, ficando as bases,
que melhor conheciam o terreno de luta, afastadas desta decisão).
O fenómeno da localização
dos movimentos sociais e da potencialização do espaço local como base
territorial de sociabilidade, mas também como centro de reivindicações e de
acção (o caso das lutas contra as expropriações de terra, das lutas em defesa
do ecossistema, das lutas pela habitação, contra o encerramento de fábricas,
etc.), é um fenómeno que surge de forma ascendente na última década.
Constroem-se espaços de luta, zonas autónomas, territórios alternativos,
decididos de forma directa pelos participantes nas acções.
Estas práticas
situadas e circunscritas a um espaço específico levantam a questão dos limites
destas mobilizações em obterem resultados num espaço mais amplo, como o espaço
nacional. Ora, o conjunto destes processos obriga a repensar estratégias,
instrumentos e tácticas para um processo emancipador no século XXI.
Fontes
De indignaciones y
alternativas, 2011, http://www.alainet.org.
América latina: las
izquierdas en las transiciones políticas, 2012, http://www.alainet.org.
C. Algranati, J.
Seoane , E. Taddei; América latina. Balance de una década de luchas y cambios;
2011, www.cetri.be
J. M. Antentas y E.
Vivas , Resistencias Globales. De Seattle a la crisis de Wall Street , Ed.
Popular, Madrid, 2009.
J. Baschet,
L’étincelle zapatiste. Insurrection indienne et résistance planétaire Paris,
Denoël, 2002.
I. Fremeaux et J.
Jordan, Les sentiers de l’Utopie Paris, Zones, 2010.
R. Herrera, Les
avancées révolutionnaires en Amérique latine. Des transitions socialistes au
XXI° siècle ? Parangon, Lyon, 2011.
G. de Gracia,
L’horizon argentin. Petite histoire des voies empruntées par le pouvoir
populaire (1860-2001) Editions CNT-RP, Paris, 2009.
R. Neuville,
Typologie d’expériences autogestionnaires en Amérique latine et indienne et
leur rapport au pouvoir
Movimientos
socioambientales en América Latina, 2012 www.clacso.org.ar.
J. Petras, H.
Veltmeyer, Autogestión de trabajadores en una perspectiva histórica , Ed. Topia
-LaMaza, Buenos Aires, 2002.
G. Pleyers,
Alter-globalization. Becoming actors in the global age, Polity Press,Cambridge,
2011.
C. Ventura, Brève
histoire contemporaine des mouvements sociaux en Amérique latine 2012, www.medelu.org
R. Zibechi,
Disperser le pouvoir : les mouvements comme pouvoirs anti-étatiques L'Esprit
frappeur, Paris, 2009.
Coup d’Etat au
Paraguay, 23/06/2012, www.monde-diplomatique.fr.
La valise
diplomatique, 28/06/2010, www.monde-diplomatique.fr.
N. Klein, La Stratégie
du choc , Actes Sud, París 2008.
Menos
desigualdades, ¿más justicia social?, 2012, www.nuso.org.
S. Halimi,
"Quelle societé future ? Dernières nouvelles de l’Utopie », Le Monde
Diplomatique, Paris, Aout 2006.
F.Gaudichaud;
Poderes populares en América Latina: pistas estratégicas y experiencias
recientes; www.contretemps.eu
1 comentário:
José Serra ganhou indenização de R$ 1.000 por danos morais pelo "oportunismo eleitoral" do livro "A Privataria Tucana", de Amaury Ribeiro Júnior. O autor e a editora Geração Editorial foram condenados pelo juiz André Pasquale Scavone, da 10ª Vara Cível, em sentença publicada em 1º de março. Fonte: Folha.com
A pergunta que nenhum lulo petista soube responder até agora: Se tudo que foi relatado no livro de Amaury Ribeiro Junior fosse verdade, por que, em dez anos de dominação lulo petista, o Ministério da Justiça não moveu nenhuma ação ou fez alguma denuncia com base no que o livro aponta?
Conivência?
Agora ficou claramente provado, em juízo, que o objetivo do livro foi e é meramente eleitoreiro, escrito para enganar os mal informados seguidores do deus Lula.
Ou o Brasil acaba com o PT ou o PT acaba com o Brasil!
Enviar um comentário