domingo, 24 de março de 2013

A AMÉRICA LATINA E A NOVA CULTURA POLÍTICA (1)




Rui Peralta, Luanda

I - De alguns anos a esta parte que a América Latina é uma zona instável no mapa-mundo do capitalismo. Região de grandes lutas sociais e anti-imperialistas e de importantes mobilizações populares (Mas também uma área fértil em camaleões, vira-casacas, lambe botas e oportunistas), nos inícios da década de 90, foi um laboratório do neoliberalismo. A esquerda reformista burguesa latino-americana aderia, deslumbrada, ao projecto neoliberal e a restante esquerda agonizava nos pântanos criados pela sua estratégia. Existiam zonas de esperança, formadas pelas guerrilhas em alguns países e Cuba, sobrevivendo no “período especial” por entre as ruinas do socialismo real. A Revolução Sandinista capitulou e alguns dos seus dirigentes (a nomenklatura sandinista) aderia alegremente ao pensamento único, entrando, claro, pela porta esquerda, que o portão principal, à direita, estava reservado para outros personagens, mais sinistros, mas menos camaleónicos.

O projecto neoliberal, com as suas reformas estruturais transformou a região num lamaçal pantanoso e no início do século XXI a América Latina transforma-se num imenso laboratório de alternativas ao neoliberalismo. Surgiram todo o tipo de forças, assumindo as mais diversas formas, desde as descoordenadas, desorganizadas e folclóricas, às forças com uma dinâmica específica, com uma postura insurrecional como o Caracazo na Venezuela, fortemente reprimido, ou com uma estrutura bem delineada como o zapatismo no México, para além das lutas pela reapropriação dos recursos e as grandes mobilizações camponesas e mineiras, na Bolívia, ou os Sem Terra no Brasil.

Em cinco anos, seis presidentes viram-se derrotados por fortes movimentos populares de rua no Peru, no Equador, na Bolívia e na Argentina e foram constituídos governos provenientes destas resistências. Exceptuando a Venezuela, Bolívia e Equador que realizaram reformas de grande envergadura e de forte acento anti-imperialista, os restantes governos resultantes destas mobilizações populares não assumiram uma ruptura com o capitalismo, optando por modelos reformadores, pós neoliberais, de forte pendor nacional e popular, reivindicando a soberania dos recursos estratégicos e optando por políticas redistributivas, mas sem entrar em choque com a estrutura capitalista dos monopólios globais generalizados.

II - Foi na Venezuela, no Equador e na Bolívia que se realizaram os maiores avanços populares no plano constitucional, devido às inovadoras assembleias constituintes, o que permitiu a criação de novos espaços políticos participativos, directos e mobilizadores. O Brasil optou pelo social-liberalismo característico do capitalismo BRICS (grupo ao qual empresta a inicial) e os restantes (a começar pela Argentina) seguiram atrás, preparando uma área periférica ao capitalismo BRICS. O social-liberalismo caracteriza-se pela política redistributiva (que com o tempo vai limitar-se á redistribuição de migalhas, em nome de valores mais altos que sempre surgem nos discursos desenvolvimentistas das elites nacionalistas) associada ao favorecimento dos interesses das elites financeiras e do agronegócio. Neste sentido a esquerda reformadora conseguiu algo que a direita não estava em condições de realizar e que é uma política imprescindível no actual estágio capitalista na região: gerir a pobreza através de uma renda mínima, sem tocar nas causas que geram a miséria.

Nos países onde os governos não foram implementados em consequência de fortes mobilizações populares, continuam a dominar as oligarquias caducas, caso da Colômbia (governada por uma nefasta narco-oligarquia) o México, as Honduras (desde o golpe de Estado de 2009) e o Paraguai (desde o golpe palaciano de 2012). Existe ainda um terceiro grupo, constituído pelo Chile e pelo Peru, onde imperam governos dos monopólios, que prosseguem políticas neoliberais, mas governados por novas camadas das respectivas burguesias nacionais, que procuram o seu lugar ao sol na globalização capitalista.

De qualquer das formas esta é uma região que, apesar da crise capitalista internacional, as taxas de crescimento do PIB são admiradas pelo FMI e pelo Banco Mundial, não só pelo seu crescimento, mas também pelo seu longo período de crescimento. É evidente que trata-se de um crescimento desigual, não sustentável, com base no saque dos recursos naturais, na extracção de matérias-primas como o petróleo, gás, minério, etc. e com uma forte dependência em relação ao mercado mundial. Esta estratégia de acumulação, praticada pelas políticas desenvolvimentistas, é de um elevado custo social e ambiental.

III  - Os modelos desenvolvimentistas orientados, essencialmente, para a exportação, comportam um desperdício de recursos naturais, tornam-se reféns tecnológicos dos monopólios generalizados e tornam-se dependentes das flutuações dos preços das matérias-primas nos mercados mundiais. Ainda que os preços elevados das matérias-primas, nos últimos anos, tenham permitido aos países latino-americanos superarem a crise, após 2008, este factor tem levado a que estes países voltem a focar o seu interesse nas matérias-primas não transformadas o que os torna bastante vulneráveis a uma futura alteração dos preços nos mercados.

No actual contexto da globalização capitalista, este é um modelo que reforça a divisão internacional de trabalho assimétrica entre o Norte, que preserva localmente os seus recursos naturais e o Sul. Mas é também a nível ambiental que esta estratégia é contraproducente, levando á destruição dos ecossistemas e da biodiversidade nos países do Sul e á preservação dos ecossistemas nos países do Norte.

No entanto, se for feita uma comparação entre a actual situação e a vivida no período de 70 a 90 do século passado, existiram muitas transformações sociais e politicas. Se os anos 80 foram caracterizados pela explosão das dívidas externas, os anos 90 revelaram-se um período de implementações das políticas do FMI, dos ajustes estruturais, de continuação das políticas do Consenso de Washington, das privatizações e destruição do sector público e dos serviços sociais. Foi o período do neoliberalismo duro, no auge do seu domínio ideológico, logo seguido da sua crise na América do Sul, embora permaneça (e reforçado!) em países como a Colômbia, o México e grande parte da América Central.

Estos períodos sucederam a ditaduras (como o Chile) e os países sofreram com o choque liberal, a doutrina dos Chicago Boys e o seu capitalismo do desastre. As esquerdas derrotadas e o movimento operário fortemente reprimido levou á aceitação, sem grande resistência, do novo modelo de acumulação, gerador de profundas desigualdades sociais.

IV - Para compreender a actual realidade latino americana há que ter em conta a temporalidade específica da região e a sua integração no sistema-mundo. Esta é uma América composta pelos elementos culturais europeus do sul, pelas nações indígenas e pelo elemento africano e uma realidade atravessada pelas lutas de resistência anticolonial das nações indígenas, pelas lutas contra a escravatura, pelas lutas de libertação nacional, as lutas anti-imperialistas, pelo elemento anarquista, importado pelos latinos da europa, pelos grandes movimentos revolucionários do seculo XX, como a revolução mexicana de 1910, a Revolução Cubana, a Revolução Sandinista, as lutas guerrilheiras, até às actuais premissas do socialismo do século XXI. Esta diversidade cultural e vivência social geraram uma pluridimensionalidade que tornou o mundo latino-americano num vasto terreno de ensaio para a construção das alternativas actuais, como o socialismo do seculo XXI, os fóruns sociais mundiais de Porto Alegre (embora excessivamente folclóricos e pouco produtivos), os neozapatistas, os direitos da natureza, o Estado Plurinacional, as autonomias indígenas, a recuperação histórica de Bolivar, etc.

Um traço comum a todas as mobilizações sociais ocorridas nesta região desde o seculo XX é o Poder Popular. Esta noção é representativa de uma dinâmica que abrange os períodos de crise revolucionária, mas também as realidades comunitárias, as lutas de bairro, fábrica ou território.

O Poder Popular na América Latina é responsável pelas novas formas de apropriações colectivas, opostas às forças dominantes. É um autêntico factor de ruptura que questiona a organização de trabalho (e o trabalho), as hierarquias sociais e os mecanismos do domínio (social, sexual ou racial). A diversidade destas experiencias, desta praxis, esboça a construção de novos mundos possíveis e está presente na Comuna de Oxaca, nas lutas feministas mexicanas contra a violência e o patriarcado, no controlo operário na Venezuela, nas empresas recuperadas na Argentina, nos conselhos comunais dos bairros populares de Caracas, nas lutas dos sem tecto no Uruguai e dos Sem Terra no Brasil, no projecto neozapatista mexicano, mas também nos projectos emancipadores da Venezuela, Equador e Bolívia, na Revolução Cubana, nas guerrilhas da Colômbia ou nos simples experimentos comunitários agroecológicos realizados neste país.

É esta noção de Poder Popular que está imanente nas lutas das comunidades mapuches no Chile, pela sua sobrevivência e pela recuperação dos seus territórios, na auto-organização camponesa nas Honduras, nos refeitórios comunitários e autogeridos de Buenos Aires, e nas grandes assembleias e ocupações estudantis dos últimos tempos.

Mas estes poderes populares são globalizados, já interagem à escala planetária, sendo visíveis os seus elementos nos chamados indignados, no povo das praças¸ no occupy e em todas as mobilizações e resistências vividas no mundo do capital, desde as movimentações surgidas no município de Wukan, no Sul da China, até ás das Puerta del Sol, em Madrid, passando pela praça Sintagma em Moscovo e às ocupações de rua em Wall Street, Londres e Telavive. Em todos eles está presente esta praxis desenvolvida na América Latina, inclusive no ciberespaço, nas novas frentes abertas pela ciberguerrilhas, que englobam os mais diversos movimentos, como os Anonymus, contra os monopólios generalizados e contra o Big Brother, que aos poucos e de forma subtil, o capitalismo introduz no quotidiano dos indivíduos e das comunidades, em nome da segurança.

V - É evidente que os processos latino-americanos são específicos e obviamente diferenciados dos restantes, à escala planetária. Mas pelo facto de serem projectos colocados em práctica, pelo facto de terem adquirido as lições inerentes á sua experimentação, ou seja, pelo facto de serem praxis, assumiram uma exposição e uma ampliação que ultrapassou as suas fronteiras, tornaram-se exemplos, não pelas suas especificidades, mas pelos resultados obtidos. Não são modelos (muitos destas movimentações só são possíveis pela especificidade da região e das suas dinâmicas sociais), mas são exemplos de vontade e de autonomia.

Os movimentos latino-americanos têm histórias, bases sociais e reivindicativas, muito díspares, Uns são movimentos urbanos, outros rurais. Alguns são de classe, outros ultrapassam essa fronteira, em torno de interesses comuns. Todos eles são de uma forte mobilização colectiva. Podem-se, inclusive, identificar alguns movimentos que nos últimos vinte anos têm representado um papel preponderante nesta nebulosa de estruturas: o movimento indígena, na região andina, os movimentos e sindicatos camponeses (sendo o mais emblemático os Sem Terra no Brasil) os movimentos de mulheres, os sindicatos operários e os trabalhadores da função pública, os movimentos da juventude (sejam movimentos de caracter estudantil, sejam de jovens trabalhadores ou de jovens desempregados) e as associações ambientais e movimentos ecológicos.

VI - Estamos, portanto, perante um sujeito pluridimensional, Não que a dimensão de classe esteja ausente (pelo contrário ela é central e os assalariados jogam um papel essencial neste ciclo). Mesmo na questão indígena, ela é fulcral. A introdução pelo movimento indígena do conceito de colonização do poder (a colonialidade) aprofundou a estratégia dos movimentos. Despojados ou ameaçados de expropriação, temendo pelas suas terras e pelo seu trabalho e condição de vida, as comunidades indígenas encontraram nestes movimentos uma identificação politica com os sem tecto, os Sem Terra, os sem trabalho. Esta identificação torna-se mais sentida nas assembleias, onde o contacto entre os movimentos é feito de forma aberta e as questões são discutidas frente-a-frente. Estas mobilizações caracterizam-se pela horizontalidade das estruturas organizativas e pela discussão de territórios de luta (o que até agora era apenas discutido ao nível das estruturas dirigentes, por razões estratégicas, ficando as bases, que melhor conheciam o terreno de luta, afastadas desta decisão).

O fenómeno da localização dos movimentos sociais e da potencialização do espaço local como base territorial de sociabilidade, mas também como centro de reivindicações e de acção (o caso das lutas contra as expropriações de terra, das lutas em defesa do ecossistema, das lutas pela habitação, contra o encerramento de fábricas, etc.), é um fenómeno que surge de forma ascendente na última década. Constroem-se espaços de luta, zonas autónomas, territórios alternativos, decididos de forma directa pelos participantes nas acções.

Estas práticas situadas e circunscritas a um espaço específico levantam a questão dos limites destas mobilizações em obterem resultados num espaço mais amplo, como o espaço nacional. Ora, o conjunto destes processos obriga a repensar estratégias, instrumentos e tácticas para um processo emancipador no século XXI.

Fontes
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F.Gaudichaud; Poderes populares en América Latina: pistas estratégicas y experiencias recientes; www.contretemps.eu

1 comentário:

Anónimo disse...

José Serra ganhou indenização de R$ 1.000 por danos morais pelo "oportunismo eleitoral" do livro "A Privataria Tucana", de Amaury Ribeiro Júnior. O autor e a editora Geração Editorial foram condenados pelo juiz André Pasquale Scavone, da 10ª Vara Cível, em sentença publicada em 1º de março. Fonte: Folha.com

A pergunta que nenhum lulo petista soube responder até agora: Se tudo que foi relatado no livro de Amaury Ribeiro Junior fosse verdade, por que, em dez anos de dominação lulo petista, o Ministério da Justiça não moveu nenhuma ação ou fez alguma denuncia com base no que o livro aponta?

Conivência?

Agora ficou claramente provado, em juízo, que o objetivo do livro foi e é meramente eleitoreiro, escrito para enganar os mal informados seguidores do deus Lula.

Ou o Brasil acaba com o PT ou o PT acaba com o Brasil!

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