Orlando Castro (*)
A entrevista que a
SIC fez ao presidente José Eduardo dos Santos bateu aos pontos, quase por KO,
aquela que a RTP protagonizou no início do ano passado quando, em Luanda,
transmitiu uma igual operação de lavagem do regime a que chamou, com toda a
propriedade, “Reencontro”.
No caso da RTP,
recorde-se, a jornalista encarregue de dirigir a lavandaria, Fátima Campos
Ferreira, tinha junto a si o então ministro que a tutelava, Miguel Relvas, bem
como o próprio presidente da empresa. Compreende-se, embora não se aceite, a
forma subserviente e nada profissional como, do ponto de vista jornalístico,
aquelas entrevistas foram feitas. Já do ponto de vista da propaganda tratou-se,
é claro, de uma obra-prima da bajulação lusa.
Quando se julgava
que o descrédito de alguns jornalistas reabilitados pela barriga tinha
atingido todos os limites, eis que a SIC formata Henrique Cymerman para mostrar
que o comércio de jornalismo pode muito bem, e de forma rentável,
transformar-se numa lavandaria ao serviço dos superiores interesses dos donos
dos operários, jornalistas no caso, e dos donos dos donos.
Assim, Eduardo dos
Santos disse o que quis (assim estava pré-estabelecido), sem contraditório
porque, na verdade, o lavandeiro estava ali apenas como figura decorativa.
Sendo pouco mais do que um monólogo presidencial, mostrou que no mundo da
comunicação, seja em Portugal ou em Angola, há valores (em dólares ou em euros)
que falam muito mais alto do que a razão e a verdade.
Eduardo dos Santos,
que para não falhar no programa de lavagem até levou “coisas” escritas, falou
na existência de 35% a 36% de pobres no país. Henrique Cymerman acenou a sua
concordância, os assessores do presidente sorriram e Pinto Balsemão terá feito
outros cálculos.
Se em vez de
Henrique Cymerman lá tivesse estado um jornalista, hipótese obviamente
académica e delirante, teria perguntado qual era a percentagem de angolanos que
vivem (isto é como quem diz) abaixo do limiar da pobreza. Todos somados andam
perto dos 60%. Mas não. Uma pergunta desse tipo seria um crime de lesa regime e
de terríveis consequências financeiras para o grupo a que pertence a SIC.
Na tentativa, com
rabo de fora, de dar um ar de jornalismo à encomenda, Henrique Cymerman deu ao
presidente a possibilidade explicar algo que em Angola é residual - a
corrupção. Eduardo dos Santos disse que o país não é incólume a algo que é
transversal no mundo, para além de ser – claro – uma pesada herança do regime
colonial.
Em abono da sua
tese, perante o subserviente e sonolento comportamento do entrevistador,
Eduardo dos Santos até explicou que o país tem um Tribunal de Contas que audita
o que se passa no Estado. Esqueceu-se de dizer, e Henrique Cymerman não estava
lá para isso, que é o presidente quem escolhe e nomeia o Vice-Presidente, todos
os juízes do Tribunal Constitucional, todos os juízes do Supremo Tribunal,
todos os juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da Republica, o Chefe
de Estado Maior das Forças Armadas e os Chefes do Estado Maior dos seus
diversos ramos destas.
Melhor do que isto
não se conhece. Nem mesmo Jean-Bédel Bokassa, Idi Amin Dada ou Mobutu Sese Seko
fizerem algo de semelhante.
Com uma subtileza
digna de quem merece o Prémio Nobel da Paz, Eduardo dos Santos mostrou a sua
benemérita e atávica capacidade para ser um reconciliador nato quando, com todo
o propósito, se referiu a Jonas Savimbi, por sinal fundador do principal
partido da oposição.
Melhor ainda foi,
reconheça-se, a escolha do seu político de referência. E, como todos sabem,
sendo Nelson Mandela um político menor, a escolha foi para Lula da Silva, por
sinal um impoluto político, diapasão do escândalo do Mensalão, um processo de
compra de votos de deputados.
Interessante foi a
análise superior, nem outra coisa seria de esperar, que Eduardo dos Santos fez
de algo que mais uma vez é inventado pelas forças da reacção, a instabilidade
social. E isto é, disse o presidente, algo que não existe já que quando se
juntam, em Luanda, 300 jovens frustrados numa manifestação isso não é
instabilidade. E tanto não é que as forças policiais entram logo em acção com
tudo o que têm para os pôr a andar, muitas vezes prendendo, ferindo e até
matando.
Foi pena que
Henrique Cymerman não tenha pedido a Eduardo dos Santos, que quer ser – segundo
disse – recordado como um bom patriota, que contasse uma das suas típicas e
patenteadas anedotas. Teria ficado bem ouvir o presidente dizer que "o
Estado vai continuar a criar condições para que a imprensa seja cada vez mais
forte, plural e isenta, responsável e independente".
Por último,
parabéns à SIC e ao grupo a que pertence por, no meio de tantas adversidades
económicas, financeiras e sociais, ter apostado numa, embora subtil, mudança de
rumo empresarial. De facto, reconheça-se, as lavandarias estão a ser um sucesso.
De resto,
lamenta-se que tenham metido na máquina de lavar, provavelmente num programa de
reciclagem, todos aqueles que sabem que se o jornalista não procura saber o que
se passa é um imbecil, e que se sabe e se cala é um criminoso.
(*) Artigo
publicado na edição de ontem (8 junho) do Jornal “Folha 8”
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