José Manuel Pureza –
Diário de Notícias, opinião
Invariavelmente, os
países que vivem sob o jugo dos "doadores" inventam um país que caiba
nos impressos de autorização de despesa de quem tem o dinheiro. Inventam-se
democracias, inventa-se liberdade de expressão, inventa-se pluralismo
partidário, inventa-se desenvolvimento. E os doadores fingem acreditar em tudo
isso. Porque enquanto o fingimento valer, os negócios que mais lhes convêm
far-se-ão. Fingindo - e mantendo a mandar os seus homens de mão - os doadores
acumulam vantagens económicas e políticas. Fingindo - e prestando vassalagem
aos seus mandantes - as elites locais enriquecem à custa de povos exangues.
Em Portugal,
chegámos àquele tempo em que a satisfação dos delírios dos credores é tão
impossível que só mesmo a mentira mais retinta os pode servir. O Orçamento para
2014 é esse cínico exercício de mentira, em que ninguém acredita - nem a
troika, nem o Governo, nem as pessoas - que só serve para falar de um país a
fingir. Mas essa mentira disfarça a estratégia da verdade deste Orçamento:
enquanto o fingimento valer, o assalto a tudo o que é público e a punição dos
que o servem será sem limite.
A mentira deste
Orçamento é feita de muitas mentiras. Refiro três. A primeira é a de que a
diminuição da taxa de IRC para 23% determinará uma perda de receita fiscal de
70 milhões de euros. Sabendo que os cálculos da comissão que estudou esta
reforma apontam para uma perda de 220 milhões de euros, as contas do Orçamento
só seriam válidas se se pressupusesse que haverá um aumento dos lucros das
empresas tributáveis em IRC da ordem dos 600 milhões de euros, para o que teria
de haver um aumento fabuloso da produção e das vendas dessas empresas. Só
acredita quem quer. Segunda mentira: o Orçamento aponta para um arrecadamento
de 100 milhões de euros com a penalização das pensões de sobrevivência,
baseando-se na existência de 25 mil pessoas viúvas que acumulam pensões acima
dos dois mil euros. Os números não batem certo, por mais que se estique a taxa
de tributação da viuvez. Só acredita quem quer. Terceira mentira: o cenário
macroeconómico que serviu de base ao Orçamento prevê um crescimento do produto
na casa dos 0,8%, não obstante a previsão de queda de 2,8% no consumo público e
da manutenção do desemprego nuns dramáticos 17,7%. A isto acrescenta a invenção
iluminada do crescimento (!) do consumo privado, mesmo depois dos cortes
brutais nos salários e nas pensões. As exportações salvar-nos-ão, portanto. Só
acredita quem quer.
Mas a mãe de todas
as mentiras é a de que, cumprido este Orçamento, chegaremos enfim à redução
drástica do défice e da dívida. Nisto já só acredita quem não quiser ver a
realidade. Basta olhar para o caminho que fomos forçados a fazer: em 2012, o
défice era de 10 600 milhões de euros, as medidas de austeridade foram de 5300
milhões, o défice desceu para 9700 milhões. 5000 milhões de sacrifícios para
menos de 1000 milhões de abatimento do défice.
A confirmar estas
mentiras, há verdades fortes neste Orçamento. 82% dos cortes serão suportados
pelos funcionários públicos e pelos reformados, enquanto aos bancos e aos
monopólios energéticos "será pedido um contributo" (pontual, claro)
de 4% do ajustamento. Entretanto pagaremos 7200 milhões em juros da dívida e
aumentaremos para 1650 milhões os gastos em parcerias público-privado. Mais do
que o que gastamos em saúde e ensino. Onde estão afinal as gorduras?
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