quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Não, Presidente Marcelo. Não aprendemos

Caro leitor,

A angústia é um sentimento que dá para tudo e, enquanto assisti angustiada às imagens do país rural em chamas (eu sei que agora não convém dizer 'rural', mas é o que é), veio-me à cabeça Eduardo Oliveira e Sousa. É normal que o nome não lhe diga nada, mas dou-lhe uma ajuda. Oliveira e Sousa foi o primeiro candidato a deputado da AD em Santarém, foi dirigente da Confederação dos Agricultores, consta que candidato a ministro da Agricultura (é na Agricultura que o atual Governo pôs a gestão da floresta), mas após ter-se espalhado com a conversa das “falsas alterações climáticas”, Montenegro riscou-o do mapa e nunca mais foi ouvido. Graças a Deus!

A revolta também é um sentimento que dá para tudo e, enquanto revivi revoltada as imagens que todos achávamos irrepetíveis, vieram-me à cabeça António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa. Eles foram a dupla que no rescaldo da tragédia de 2017 se atravessou por mexer a fundo no combate aos fogos e na gestão da floresta. Mas ao contrário do que o Presidente da República nos vem agora dizer - que “aprendemos” com a experiência - não aprendemos nada do que é essencial.

O meu título desta semana até esteve para ser ‘O Estado a gozar com quem trabalha, take two’, já que à vergonha de Alcoentre se seguiu o colapso de 60 mil hectares de floresta em três dias. Mas mudei de ideias, porque o Presidente Marcelo é uma figura central quando a conversa é fogos, pelo simples facto de ter escolhido ser figura central há sete anos. Foi ele o primeiro a saltar para o terreno, foi ele que deu fotos únicas (chegou ao “Times”) abraçado às populações em sofrimento, foi ele que despediu a ministra da Administração Interna, que abanou o Governo, que puxou pelo primeiro-ministro e que chegou a sinalizar não se recandidatar se nada de estrutural fosse feito nesta frente.

António Costa mexeu-se, mudou a Proteção Civil, criou estruturas e equipas novas, reforçou meios de combate aos incêndios, garantiu os Canadair europeus, decretou a obrigatoriedade dos proprietários rurais cortarem o mato à volta das casas (se fosse para levar a sério, seria sempre em maio, lembram-se?), legislou sobre multas, mas não resultou. Porquê? Porque mais meios de combate não evitam mais fogos.

A floresta continua a arder, ardem casas, ardem indústrias, morrem pessoas em cenários dantescos, há autoestradas que só fecham após duas horas de carros às cegas acelerarem em fuga entre bermas em chamas, o horror de mais de 100 pessoas a morrerem sem comunicações é irrepetível porque algo foi feito, mas o essencial está na mesma. Foi penoso ver Eduardo Cabrita na TV a puxar pelos galões de não ter havido tragédias destas consigo na Administração Interna. Como se mexer no cuidado dos espaços rurais, coisa que há décadas se sabe ser o único caminho seguro, tivesse acontecido. Como se uma nova política florestal tivesse saído do discurso. Como se não houvesse um problema estrutural de planeamento e como se a revolução anunciada em 2017 para desencalhar e articular Estado central, autarquias e sobretudo privados que são o grosso dos proprietários dos terrenos, tivesse chegado a acontecer.

Marcelo Rebelo de Sousa sabe que não foi assim. O Presidente tem sempre entrelinhas quando fala e há uma frase a reter no que ele disse no fim do conselho de ministros, onde não se percebe se foi dar apoio a Luis Montenegro ou se foi receber apoio dele. "É bom que o primeiro-ministro e o Presidente da Repúblicanão tenham dito que a realidade mudava de um momento para o outro". Marcelo tem a fervilhar na cabeça a memória de há sete anos, sabe que nunca tudo poderia mudar de um momento para o outro, mas também sabe que não mudar o essencial numa década é de menos. O Presidente mudou radicalmente de registo de Pedrógão para Lisboa (desta vez ficou por cá), porque sabe que o balanço é pobre, que o tempo perdido é criminoso e que só cheira a fumo e a tarde demais.

Por falar em criminosos, Luis Montenegro é que continua uma caixinha de surpresas. Foi rápido e eficaz a apagar o fogo político, com garantias de apoios a pessoas, empresas e municípios, criou equipas multidisciplinares, pediu ajuda à Europa e assumiu a calamidade. Mas sobretudo desviou o foco, prometeu "ir atrás" dos criminosos e dos "interesses que sobrevoam" os incêndios florestais, e assim mesmo, sem dizer o que sabe, lançou a ideia de que a culpa é de terceiros. Terá provas, mas sobre a mistura explosiva que são as alterações climáticas a que Eduardo Oliveira e Sousa não dá confiança, somadas ao abandono do território, aos contínuos florestais imensos, aos matos que crescem indiscriminadamente e às soluções que sucessivas administrações públicas têm adiado, nem uma palavra.

Não seria o dia para isso, quando há que acudir a emergências. Mas se já há conclusões fechadas sobre a origem criminosa dos fogos, queremos saber o que pensa o sucessor de António Costa de tudo o resto, seja sobre impor à séria a limpeza das matas aos particulares (não é simpático), sobre financiá-los para o efeito (custa dinheiro), ou sobre mudar políticas públicas de planeamento do território (mexe com interesses e perdeu-se tanto tempo que demora décadas).

De Marcelo, Montenegro recebeu solidariedade estratégica e da oposição um respeitoso silêncio. O Presidente passou de ator principal a compagnon de route e o PS sabe que tendo governado sete anos depois de Pedrógão e estando a AD no posto há cinco meses, a conversa não lhe convém. Os outros devem estar à espera do rescaldo.

No Ministério das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento vai ter que fazer contas - entre indemnizações, apoios, bombeiros, os excel vão mexer - mas por incrível que pareça o Orçamento de Estado sai dos incêndios mais amparado. Se já ninguém queria eleições, caro leitor, imagine agora. As rentrées políticas podem ter excitado alguns políticos, mas a rentrée climática puxou-os à terra. Governem, deixem governar, resolvam problemas e deixem-se de fitas.

Até para a semana

Sem comentários:

Mais lidas da semana