quinta-feira, 20 de março de 2014

Angola: DE COMO O SOCIÓLOGO PAULO DE CARVALHO MUDOU A HISTÓRIA DO MUNDO



José Eduardo Agualusa – Folha 8, 15 março 2014

Leio e não acredito. En­tão volto a ler: “Quando as pessoas, e alguns polí­ticos, inclu­sivamente, dizem que em Angola vigora um sistema ditatorial, isso não é ver­dade”, sustentou Paulo de Carvalho, professor cate­drático da Faculdade de Ciências Sociais da Uni­versidade Agostinho Neto, em Luanda, numa confe­rência proferida a convite do Centro de Estudos Afri­canos do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políti­cas (ISCSP) de Lisboa, su­bordinada ao tema “Siste­ma democrático e direitos de cidadania em Angola”.

Para sustentar essa sua convicção, Paulo de Car­valho contou um episódio ocorrido há tempos na Fundação Mário Soares, em Lisboa, em que o jorna­lista e activista dos direitos humanos criticou o regime angolano, tendo-lhe o aca­démico respondido: “Se em Angola houvesse um sistema ditatorial, tu, meu amigo Rafael Marques, não estarias aqui a falar para nós, estaríamos nós a cho­rar na tua campa”.

A notícia é da agência Lusa e tem sido reproduzida em diversos meios de comuni­cação social desde a última quarta-feira. Vou partir do princípio que é verdade. Sendo verdade, o sociólo­go Paulo de Carvalho abriu campo – com a sua arro­jada linha de pensamento – para uma completa rein­terpretação da História da Humanidade. Senão, veja­mos: Agostinho Neto es­teve nas mãos de Salazar. Contudo Salazar não o ma­tou – logo, o regime salaza­rista foi uma democracia. Uma democracia exube­rante, diga-se, pois Salazar também poderia ter morto, entre tantos outras impor­tantes vozes contestárias, Álvaro Cunhal, Mário Soa­res, etc., etc.

Pinochet poderia ter man­dado matar Pablo Neruda (adiantando-se alguns dias ao tumor na próstata do qual, efectivamente, mor­reu o grande poeta). Con­tudo, não o fez. Logo, o seu regime foi uma democracia.

Dllma Roussef, actual pre­sidente do Brasil, foi presa, no início dos anos setenta, pelo regime militar que se instalou no seu país em 1964. Contudo, os militares não a mataram. Logo, esse mesmo regime militar foi uma democracia.

O assassinato dos jovens Isaías Cassule e Alves Ca­mulingue, em Maio de 2012, pelos Serviços de In­teligência e Segurança do Estado (SINSE), é um por­menor que não parece in­comodar o sociólogo Paulo de Carvalho. Segundo esta curiosa linha de pensa­mento, se um democrata consegue fazer ouvir a sua voz, sem ser morto, então existe democracia – isto mesmo que todas as outras vozes tenham sido silen­ciadas. Sim, Salazar ma­tou Humberto Delgado (e tantos outros). Porém não matou Mário Soares. En­tão o salazarismo foi uma democracia. Sim, Pinochet assassinou o cantor e com­positor Victor Jara. Porém, não assassinou Neruda. Logo, o regime de Pinochet foi uma democracia.

E a vergonha?! Não há ver­gonha?! Volto a ler a notí­cia da Lusa e sinto vergo­nha por ele, pelo sociólogo Paulo de Carvalho, sinto vergonha pelo Presidente José Eduardo dos Santos, sinto vergonha por toda essa gente que ousa apon­tar o dedo a um homem como Rafael Marques para lhe lembrar que ainda está vivo, que podia estar mor­to, mas que ainda está vivo, e que deve a vida ao espí­rito democrático de quem tem o poder para nos ma­tar – e não o faz.

Nas democracias não se aponta o dedo a quem discorda de nós para lem­brar que o pode fazer, que não morrerá por o estar fazendo. Nas democracias permitir que os outros dis­cordem não é um gesto de tolerância (ou de ternura) – é a própria essência do sis­tema. A qualidade de uma democracia mede-se pela diversidade de opiniões livremente expressas. E é por isso que em Angola não temos uma democra­cia.

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