José Eduardo
Agualusa – Folha 8, 15 março 2014
Leio e não
acredito. Então volto a ler: “Quando as pessoas, e alguns políticos, inclusivamente,
dizem que em Angola vigora um sistema ditatorial, isso não é verdade”,
sustentou Paulo de Carvalho, professor catedrático da Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade Agostinho Neto, em Luanda, numa conferência proferida
a convite do Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas (ISCSP) de Lisboa, subordinada ao tema “Sistema
democrático e direitos de cidadania em Angola”.
Para sustentar essa
sua convicção, Paulo de Carvalho contou um episódio ocorrido há tempos na
Fundação Mário Soares, em Lisboa, em que o jornalista e activista dos direitos
humanos criticou o regime angolano, tendo-lhe o académico respondido: “Se em
Angola houvesse um sistema ditatorial, tu, meu amigo Rafael Marques, não
estarias aqui a falar para nós, estaríamos nós a chorar na tua campa”.
A notícia é da
agência Lusa e tem sido reproduzida em diversos meios de comunicação social
desde a última quarta-feira. Vou partir do princípio que é verdade. Sendo
verdade, o sociólogo Paulo de Carvalho abriu campo – com a sua arrojada linha
de pensamento – para uma completa reinterpretação da História da Humanidade.
Senão, vejamos: Agostinho Neto esteve nas mãos de Salazar. Contudo Salazar
não o matou – logo, o regime salazarista foi uma democracia. Uma democracia
exuberante, diga-se, pois Salazar também poderia ter morto, entre tantos
outras importantes vozes contestárias, Álvaro Cunhal, Mário Soares, etc.,
etc.
Pinochet poderia
ter mandado matar Pablo Neruda (adiantando-se alguns dias ao tumor na próstata
do qual, efectivamente, morreu o grande poeta). Contudo, não o fez. Logo, o
seu regime foi uma democracia.
Dllma Roussef,
actual presidente do Brasil, foi presa, no início dos anos setenta, pelo
regime militar que se instalou no seu país em 1964. Contudo, os militares não a
mataram. Logo, esse mesmo regime militar foi uma democracia.
O assassinato dos
jovens Isaías Cassule e Alves Camulingue, em Maio de 2012, pelos Serviços de
Inteligência e Segurança do Estado (SINSE), é um pormenor que não parece incomodar
o sociólogo Paulo de Carvalho. Segundo esta curiosa linha de pensamento, se um
democrata consegue fazer ouvir a sua voz, sem ser morto, então existe
democracia – isto mesmo que todas as outras vozes tenham sido silenciadas.
Sim, Salazar matou Humberto Delgado (e tantos outros). Porém não matou Mário
Soares. Então o salazarismo foi uma democracia. Sim, Pinochet assassinou o cantor
e compositor Victor Jara. Porém, não assassinou Neruda. Logo, o regime de
Pinochet foi uma democracia.
E a vergonha?! Não
há vergonha?! Volto a ler a notícia da Lusa e sinto vergonha por ele, pelo
sociólogo Paulo de Carvalho, sinto vergonha pelo Presidente José Eduardo dos
Santos, sinto vergonha por toda essa gente que ousa apontar o dedo a um homem
como Rafael Marques para lhe lembrar que ainda está vivo, que podia estar morto,
mas que ainda está vivo, e que deve a vida ao espírito democrático de quem tem
o poder para nos matar – e não o faz.
Nas democracias não
se aponta o dedo a quem discorda de nós para lembrar que o pode fazer, que não
morrerá por o estar fazendo. Nas democracias permitir que os outros discordem
não é um gesto de tolerância (ou de ternura) – é a própria essência do sistema.
A qualidade de uma democracia mede-se pela diversidade de opiniões livremente
expressas. E é por isso que em Angola não temos uma democracia.
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