quarta-feira, 26 de março de 2014

NO REINO DA UNIPOLARIDADE



José Goulão – Jornal de Angola, opinião

Estendeu-se por um quarto de século o período de unipolaridade – e impunidade – na cena mundial proporcionado pela queda do Muro de Berlim e a implosão da União Soviética Muros conservaram-se, outros reforçaram-se, alguns nasceram e crescem desde que, violando a Carta das Nações Unidas, os Estados Unidos cometeram a primeira invasão do Iraque, em 1990, à frente de um rebanho de nações submissas.

Mas esta semana a situação alterou-se qualitativamente.

Pela primeira vez nos últimos 25 alguém disse “basta!” ao império e seus servidores, sendo que estes não sabem o que fazer entre ameaçar grosso e sancionar fininho – é arriscado apertar muito a economia dos outros porque no estado em que está a própria o efeito de boomerang pode ser devastador.

Durante as últimas duas décadas e meia o império inventou e cultivou inimigos de que se foi servindo e com os quais foi colaborando à medida da estratégia que tem como único fim fazer guerras para dividir e ocupar – directamente ou por interpostos gendarmes – de modo a reinar e explorar à vontade. Da cartola dos inimigos, alguns dos quais também às vezes bons amigos, foram saindo Bin Laden, os talibãs, Saddam Hussein, o terrorismo islâmico em geral, as mil e uma caras da Al Qaeda, os ayatollahs do Irão, Bachar Assad, Muammar Khaddafi, Milosevic... a lista podia ser alongada mas não vale a pena.

Agora a coisa fia mais fino. Da sepultura da União Soviética, restaurados que estão os ademanes czaristas num sistema bem mais monárquico do que muitas monarquias que dizem sê-lo, surge o primeiro inimigo que efectivamente o é. Não aquele que se usa na propaganda para justificar o expansionismo aqui ou ali, conforme as conveniências de recursos e riquezas naturais, mas o que resolveu dizer “parem aí, porque daí para cá mandamos nós”. E o império unipolar estacou perante uma alteração de fronteiras feita por outrem que não ele. Que atrevimento!

Aumentaram os riscos de as guerras regionalizadas se irem fundindo numa única de vastidões imprevisíveis? Provavelmente. Mas apesar de os que se definem como faróis da democracia terem proporcionado o regresso de nazis ao governo de um país europeu, reflictamos de modo a que os paralelismos não se fiquem na década de trinta do século passado.

A situação económica mundial já o vinha indiciando, mas as crises síria e ucraniana revelam que a alteração da relação de forças entre as facções mundiais de poder entrou pelos campos geoestratégico e militar.

A existência de um regime económico dominante planetário, num estado supremo  de arbitrariedade, não esbate as contradições, pelo contrário agudiza-as num nundo onde a bolha especulativa asfixia a produção de verdadeira riqueza, onde os espaços de recursos naturais, de fontes de energia e alimentares, de mão de obra barata ou mesmo escrava não coincidem com os de grande consumo, tradição exportadora e poderio político imperial – colonial ou neocolonial.

Não estamos perante um conflito ideológico entre sistemas sociais que se opõem. O capitalismo reina com poder absoluto no mundo mas os interesses cada vez mais antagónicos, letais até, corroem-no por dentro. O monstro já não tem apenas uma cabeça. Há exactamente um século, numa fase bem mais recuada do capitalismo, a Primeira Guerra Mundial foi travada entre impérios que transformaram as suas disputas de interesses na chacina de milhões de seres humanos, já derrotados à partida porque entre eles não existiam motivos de conflito, antes razões de convergência contra os que, um de um lado e de outro, os mandavam matar-se. 

Lembrem-se disto.

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