Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Em mais uma reação
ao "Manifesto dos 70", que tão nervoso deixou o governo, Passos
Coelho disse que ele revela "uma concepção infantil, nem sequer é
política, da Europa". Infantil porquê? "Estão a falar de uma Europa
que não existe, nem existirá e ainda bem, porque ninguém aceitaria uma Europa
em que uns poupam para que outros possam gastar". Repare-se que Passos não
apela a um suposto realismo. Ele diz que ainda bem que a tal Europa não existe.
E explica que essa Europa que felizmente não existe é aquela em que uns poupam
e outros gastam. A dicotomia não é entre credores e devedores, centro e
periferia, economias mais e menos desenvolvidas. Nada disso. Ele remete-nos
para distinções éticas. Uns são poupados, outros gastadores. Eles vítimas
pacientes, nós abusadores infantilizados.
Podia discutir a
infantilidade (devolve-se o epíteto) deste ponto de vista. Mas isso
obrigar-me-ia a descer o nível intelectual do debate até à imbecilidade. Não
consigo. Poderia mostrar, através de quase todos os dados fundamentais, como
este preconceito racista (estou a medir as palavras) é contrariado por quase
todos os factos. Mas isso só faria sentido se estivesse a discutir com alguém
que não conhece a realidade do País. O preconceito perdoa-se ao ignorante.
Podia indignar-me com a utilização de estereótipos como arma política. Mas isso
só faria sentido se estivesse a debater com um qualquer político estrangeiro e
me visse obrigado a defender o bom nome de Portugal. Na realidade, tal como
disse Constança Cunha e Sá, apenas
um líder de um partido de extrema-direita do norte da Europa teria o desplante
de fazer este tipo de simplificação das relações entre Estados membros da União
Europeia e lançar este anátema sobre os países periféricos. Acontece que esta
frase é do primeiro-ministro de Portugal. É ele, e não Angela Merkel ou mesmo
Marine Le Pen, que se encarrega de alimentar o preconceito contra os
portugueses.
Indigna-me a
insensibilidade social de Passos Coelho, que muitas vezes se evidencia na
frieza com que fala do "ajustamento interno" (que, traduzido para a
vida prática, corresponde ao engrossar do exército novos pobres vindos da
classe média, que deixaram de poder comer peixe e carne ou de aquecer a casa).
Mas poucas coisas me deixam mais perplexo do que o seu deslumbramento
provinciano. Um sentimento comum em muitos portugueses, que se traduz nos
elogios ao que se faz "lá fora" e à autoflagelação por coisas que
"só neste País" acontecem. Um complexo de inferioridade que é
responsável por muitos dos erros que cometemos no passado recente, a começar
pela falta de sentido critico que mantivemos em todo o processo da nossa
integração europeia. Mas como Passos Coelho a coisa chega a um ponto que roça o
racismo contra nós próprios. Se isso seria incómodo em qualquer cidadão, num
primeiro-ministro de um país em crise, deprimido e intervencionado por
instituições externas, é assustador. Como pode o governo negociar com outros
Estados e instituições externas se o homem que o dirige é o primeiro a produzir
o argumentário e a reproduzir os preconceitos que são usados contra o seu
próprio povo?
No passado, quando
Portugal ainda tinha um Império, usava-se um termo para os mestiços
assimilados, que supostamente queriam ser considerados "civilizados".
Eram os "calcinhas". Apesar da ter várias leituras, conforme quem a
usava, a expressão era geralmente pejorativa e carregada de preconceito. O
africano podia fazer o esforço para se vestir como o branco, falar como o
branco e até pensar como o branco. Podia também ser mais instruído que o colono
vindo das berças. Aos olhos do branco, nunca seria um deles. Um "preto de
calcinhas", mas um "preto". É uma coisa que o nosso
"calcinhas" um dia perceberá sobre si próprio e o papel que decidiu
desempenhar nesta Europa em crise: que se pode esforçar para repetir o que os
líderes das Nações que ele considera "civilizadas" pensam sobre esta
"piolheira" e a excelente opinião que têm - e ainda bem para eles -
sobre os seus próprio Países. Pode até dizer o que apenas o alemão mais
preconceituoso pensa de nós. Será sempre apenas e só "the nice guy",
como lhe chamou Angela Merkel quando o conheceu. Um "tuga" que
gostaria de não o ser e que vive deslumbrado pelo seu próprio
"colono".
Sem comentários:
Enviar um comentário