Marcelo Badaró
Mattos* – Revista Rubra
Um dos mais
visíveis indicadores do recuo das lutas coletivas da classe trabalhadora
brasileira, a partir dos anos 1990, foi a diminuição do número de greves. Em
1989, no auge do ciclo de lutas sociais que marcou o fim da ditadura
empresarial-militar instalada em 1964, ocorreram cerca de 4000 greves no
Brasil. Nos anos seguintes este número foi caindo, até atingir 1228 greves em
1996, 525 em 2000 e 299, em 2005, num dos pontos mais baixos da curva (o menor
número foi de 298 em 2002). Para explicar tal declínio das mobilizações
organizadas dos trabalhadores, podemos elencar diversos fatores: o desemprego e
a precarização das relações de trabalho decorrentes do processo de
reestruturação produtiva que se acelera a partir da década de 1990; o
progressivo apassivamento da maioria da direção sindical mais combativa
(reunida em torno da Central Única dos Trabalhadores, a CUT), que ao longo dos
anos 1990 adere progressivamente a uma lógica conciliatória e amolda-se à ordem
do capital e à estrutura sindical oficial; e, já nos anos 2000, a incorporação de
dirigentes sindicais aos governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores,
acompanhada da transformação da CUT em braço sindical dos governos petistas e
de sua definitiva incorporação à estrutura sindical oficial. Explicar
detalhadamente cada um desses fatores demandaria mais espaço e tempo do que
dispomos aqui.
O que nos interessa
neste momento, porém, é assinalar uma inflexão. Depois de 446 greves
contabilizadas em 2010 e 554 em 2011, no ano de 2012 aconteceram 873 greves no
Brasil, segundo os estudos do DIEESE.
É o maior número registrado desde 1996 e revela um crescimento significativo
nos últimos anos do recurso à paralisação do trabalho, como arma para enfrentar
os baixos salários, a perda de direitos dos trabalhadores e as péssimas
condições de trabalho, geradoras de uma crescente onda de acidentes de
trabalho, especialmente em setores como o da Construção Civil, que se viu mais
aquecido com as grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e
dos “mega-eventos” (Copa do Mundo de Futebol e Olimpíadas). A relativa
estabilidade do nível de emprego (relativa porque os números oficiais
contabilizam 6 milhões de desempregados, mas também 62 milhões de brasileiras e
brasileiros em idade ativa que por alguma razão não buscam empregos) também
pode ajudar a explicar por que cresce o número de greves. Ainda não foram
divulgados os dados sobre as greves no ano de 2013, mas tudo indica que a
tendência ao crescimento se manterá.
Só o passar do
tempo poderá confirmar se estamos diante de um novo ciclo de crescimento das
lutas organizadas da classe trabalhadora no Brasil. Há, no entanto, algumas
características desse ciclo de greves que já nos apontam certas questões
centrais. Trato a seguir de duas delas e com isso salto também do exame geral
dos números de greves para o comentário específico, ainda que rápido, sobre
algumas paralisações mais significativas.
A primeira questão
diz respeito à relação estabelecida entre as ”jornadas de junho” de 2013 (as
manifestações multitudinárias das quais já tratei aqui) e as greves. Na época das
grandes manifestações de meados de 2013, uma das características mais
discutidas de seu perfil foi a rejeição aos partidos políticos e, em alguma
medida, às organizações sindicais. Quando as centrais sindicais tentaram
aproveitar o embalo das grandes passeatas para impulsionar dois dias nacionais
de luta unificada, o que se viu foram manifestações de escala muito reduzida e,
em grande medida, restringidas a dirigentes e funcionários dos aparatos
sindicais. De que relação se poderia tratar então? Indo um pouco além da
aparência dos acontecimentos, podemos perceber que as grandes demandas das
manifestações de meados de 2013 – pela redução do preço e melhoria da qualidade
do transporte coletivo, contra a violência policial, contra as corporações
empresariais de mídia, em defesa da saúde e da educação – estavam longe de ser
novidades. Trata-se de um conjunto de bandeiras assumidas e propagandeadas
pelos movimentos sociais que mantiveram uma perspectiva mais mobilizadora e
combativa, mesmo em meio à maré vazante de lutas dos anos 1990 e 2000. Em especial
a defesa de mais verbas e melhor qualidade para saúde e educação públicas teve
nos sindicatos de trabalhadores desses dois setores no serviço público
brasileiro seus principais propagadores. Em 2012, por exemplo, uma grande greve
dos trabalhadores da educação no serviço público federal atravessou mais de
três meses de enfrentamentos com o governo de Dilma Rousseff. Ou seja, lutas
sindicais, ainda que fragilizadas e fragmentadas, das duas décadas passadas
foram essenciais para manter em pauta a defesa desses direitos fundamentais.
Por outro lado, as manifestações de 2013 impulsionaram greves e táticas de
lutas dos sindicatos mais combativos. Em vários estados do país, sindicatos de
profissionais da educação fizeram greves no segundo semestre de 2013. No Rio de
Janeiro, a greve foi longa, enfrentou a intransigência dos governos estadual e
municipal, mas gerou uma nova onda de passeatas multitudinárias em seu apoio,
chegando a reunir novamente cerca de 100 mil pessoas nas ruas do Centro da
cidade em outubro.
Muitos dos manifestantes de junho foram às ruas novamente
concretizar a palavra de ordem da defesa da educação, consubstanciando-a em
apoio ativo à luta dos trabalhadores do setor. A mesma tática de levar a greve
para a rua, na forma de grandes manifestações foi empregada pelos trabalhadores
da limpeza urbana do Rio de Janeiro (os garis), que em pleno carnaval carioca
deste 2014 paralisaram suas atividades para garantir melhorias salariais e de
condições de trabalho. Apesar do incômodo com o acúmulo de lixo nas calçadas e
ruas, em plena festa carnavalesca, a maioria da população da cidade apoiou a
greve e quando, em 7 de março, os garis fizeram sua maior manifestação pelo
Centro da cidade foram fortemente aplaudidos e receberam muitas adesões em seu
protesto. Imediatamente após essa demonstração de força, a Prefeitura do Rio de
Janeiro, que havia classificado a greve como “motim” e mobilizara escoltas
policiais para forçar os garis a trabalharem, chamou os líderes da greve para
negociar e a paralisação se encerrou com ganhos substantivos para os
trabalhadores.
Uma segunda questão
central a discutir é a da relação entre estas greves e os sindicatos. Embora
continue a existir um setor combativo do movimento sindical, que se mobiliza e
comanda greves e apesar de até mesmo a burocracia mais acomodada em alguns momentos
ser obrigada a convocar paralisações do trabalho, o que chama a atenção em
muitos desses movimentos grevistas recentes é que eles se fazem à margem das, e
muitas vezes contra as, direções sindicais. Foi o que aconteceu na greve dos
garis, em que a direção sindical, encastelada há décadas no sindicato de
trabalhadores da limpeza urbana e sempre disposta a colaborar com os governos e
a frear mobilizações, não só se posicionou contra a greve, como tentou
evitá-la, boicotando a assembleia dos trabalhadores que iria deflagrá-la e
anunciando acordos com a municipalidade que nunca foram discutidos pela
categoria. Mesmo na greve dos profissionais da educação do segundo semestre de
2013, dirigida pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (SEPE),
cuja composição é majoritariamente de militantes da esquerda mais combativa,
houve uma nítida tensão entre o posicionamento da direção (mostrando disposição
para negociar acordos que pusessem fim à greve, ainda que sem maiores garantias
de conquistas) e uma parcela expressiva das bases, mais radicalizada. Um último
exemplo, também muito significativo, é o das greves dos operários da construção
civil nos canteiros de obras do Complexo Petroquímico do Estado do Rio de
Janeiro (Comperj). Duas delas ocorreram em 2013 e uma terceira, de maiores
dimensões, atravessou mais de 40 dias nos meses de fevereiro e março de 2014.
Novamente aí a direção do sindicato local colocou-se contrária à greve e buscou
“negociar” com as construtoras à revelia dos 28 mil grevistas, que por mais de
uma vez mantiveram a paralisação dos trabalhos após anúncios de acordo e fim de
greve por parte dos dirigentes sindicais. Os protestos dos trabalhadores em
greve envolveram fechamento de estradas e incêndio de ônibus e logo no início
do movimento, na madrugada de 6 de fevereiro, dois trabalhadores foram feridos
à tiros. Várias declarações de envolvidos no protesto acusaram “seguranças”
contratados pelo sindicato como responsáveis pelos disparos.
Enfim, entre outras
questões importantes postas por essas greves, parece ser fundamental
compreender que uma nova onda de mobilizações grevistas, que possa recolocar a
classe trabalhadora organizada no centro do debate político nacional,
dependerá: por um lado, da capacidade das bases sindicais e dos dirigentes mais
combativos de alargarem as lutas, através de mobilizações de massas, que
envolvam os setores mais precarizados e menos organizados da classe
trabalhadora, que demonstraram seu potencial de descontentamento em junho de
2013; por outro lado, de uma renovação do panorama sindical brasileiro, com a
substituição de burocracias esclerosadas pela colaboração de classes por novas
lideranças surgidas das greves que se enfrentam com esses burocratas. Somente
com o fortalecimento de um polo sindical combativo, que estabeleça os laços
necessários entre as frações mais formalizadas e as mais precarizadas da classe
e se disponha a romper com os métodos e as armadilhas da estrutura sindical
oficial, poderemos estar à altura do desafio.
*Professor titular
de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense e nos últimos 25 anos tem
estudado e participado dos movimentos da classe trabalhadora brasileira
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