Humilhado
pelo centro de poder europeu, resta ao país escolher a aventura democrática que
José Saramago previu. Haverá, para tanto, forças e vontade?
Boaventura
de Sousa Santos – Outras Palavras - Imagem: Nuno Madeira, Mar Português
No
período pós-25 de Abril de 1974,
a mistificação política nunca atingiu os níveis que hoje
atinge. Mistificação consiste em fazer alguém acreditar numa mentira. A mentira
é que o processo da troika terminou com êxito, que Portugal tem hoje melhores
condições para se desenvolver como país europeu e que a reforma do Estado
proposta garante a criação de uma sociedade mais equitativa.
Que
o sucesso da troika seja o outro lado da hecatombe social que se abate sobre os
portugueses empobrecidos; que as novas condições de desenvolvimento sejam as
típicas de um país subdesenvolvido (emigração, trabalho e velhice sem direitos)
que tínhamos deixado de ser; que a reforma do Estado proposta seja aquela que
os países latino-americanos rejeitaram nos últimos 15 anos precisamente para
construir sociedades mais equitativas — nada disso é relevante para a
mídia ou entra no discurso político. No momento em que o país vive um
momento político idêntico ao do Verão quente de 1975, só que de sentido
político oposto, o Partido Socialista (PS), sem a coragem de então, pede que
seja tornado público o conteúdo da carta de intenções com que se concluem os
trabalhos da troika. Não se trata de enfrentar a mentira com a verdade, mas
antes de certificar que a mentira é verdadeira. Com razão, o primeiro ministro
Passos Coelho responde que a carta não contém nada de novo nem de
extraordinário. Basta consultar a letter of intent da Irlanda de 29
de Novembro de 2013. A
carta é a expressão do compromisso do país a aceitar como verdades as mentiras
que acima referi e de agir em conformidade nas próximas décadas.
Para
entender a força da mistificação em curso é preciso situar o atual momento no
contexto histórico mais amplo. Talvez por durante séculos ser uma entidade
frágil face ao Império Otomano, a Europa sempre foi muito ciosa dos seus
centros, que idolatrou, e desdenhosa das periferias, que demonizou. No início
do seculo XIX, o chanceler da Áustria, Metternich, proferiu uma frase
famosa — “Asien beginnt an der Landstrasse” — a Ásia começa na Landstrasse, que
era então uma rua dos subúrbios de Viena. Aí viviam os emigrantes dos Balcãs
que, obviamente para os austríacos, não eram europeus.
Para
entender isto é necessário recuar alguns séculos mais e observar a relativa
rigidez histórica das relações entre centros e periferias dentro da Europa. Um
centro mediterrânico que não durou muito mais do que século e meio (século XVI
e metade do século XVII) foi suplantado por um outro que acabou durando muito
mais e tendo um muito maior impacto estrutural. Este último foi um centro com
raízes na Liga Hanseática dos séculos XII e XIII, um centro virado para o
Atlântico Norte, para o mar do Norte e o Báltico, e englobando as cidades do
Norte da Itália, França, Países Baixos e, no século XIX, Alemanha. Um centro
sempre rodeado de periferias: no Norte, os países nórdicos; no Sul, a Península
Ibérica; no Sudeste, os Balcãs; no Oriente, territórios considerados feudais (o
Império Otomano e a Rússia semieuropeizada desde Pedro, o Grande). Ao fim de
cinco séculos, só as periferias do Norte tiveram acesso ao Centro, o mesmo
Centro que é hoje o coração da União Europeia.
Este
dualismo está mais arraigado na cultura europeia do que se poderia pensar e
pode bem explicar algumas das dificuldades no modo como está a ser abordada a
atual crise. O que parece ser só um problema financeiro e econômico é também um
problema cultural e sócio-psicológico. Um exemplo poderá ajudar. Entre o século
XV e o século XIX são muitos os relatos de viajantes e comerciantes do
Norte da Europa sobre os portugueses e espanhóis e as condições de vida
prevalecentes no Sul da Europa. O mais surpreendente nesses relatos é que
atribuem aos portugueses e espanhóis as mesmas características que, na mesma
época, os colonizadores portugueses e espanhóis atribuíam aos povos “primitivos”
e “selvagens” das suas colônias. Eis algumas citações do século XVIII: “O
português é mandrião, nada industrioso, não aproveita as riquezas da sua terra,
nem sabe fazer vender as das suas colônias”; “os portugueses são altos,
bem-parecidos e robustos, na sua maior parte muito morenos, o que resulta do
clima e ainda mais do cruzamento com negros”. Ou seja, a miscigenação, que os
portugueses consideravam o sinal benevolente da sua colonização, virava-se
contra eles por via do preconceito colonial e racista. Quando hoje lemos na
imprensa alemã notícias e comentários sobre os países do Sul da Europa, é fácil
verificar que o preconceito colonial e racista ainda está bem presente.
No
caso específico de Portugal, o seu estatuto de país periférico na Europa teve
até agora três fases. O momento europeu de rejeição (1890-1930) foi
concomitante com a partilha de África no final do século XIX (Conferência de
Berlim, 1884-85, o Ultimato Inglês, em 1890), tendo pretendido tornar claro que
Portugal era um país sem qualquer poder para influenciar o momento imperialista
da Europa, mesmo sendo detentor do maior e mais antigo império colonial.
Portugal era o centro de um império integrado noutro muito maior, de que o
Império Português era apenas uma periferia. O segundo momento pareceu ter um
sinal contrário. Ocorreu no final do século XX, tendo como precedente a
Revolução do 25 de Abril de 1974 e, como início, a adesão à então Comunidade
Econômica Europeia em 1986, hoje União Europeia (1974/1986-2011). Foi um
momento exaltante para as elites portuguesas e para os portugueses que
nelas confiaram.
Portugal
tinha sido finalmente aceito pela Europa depois de séculos de rejeição e agora,
em pleno fim da história, era só esperar pela convergência total com o Centro
desenvolvido da Europa. E o movimento de convergência pareceu ser real até
2000. Digo “pareceu”, porque dados fiáveis do Deutsche Bank (Discussion Paper
N.º 28/2013) mostram que nos últimos 40 anos não houve nenhuma significativa
convergência de rendimentos no interior da UE, ainda que sejam identificáveis
algumas variações. Depois de 2000,
a ignorância militante dos nossos governantes e a
insidiosa penetração do neoliberalismo no coração das instituições europeias
fizeram com que as correntes subterrâneas da história voltassem à superfície.
O
terceiro momento europeu, iniciado com a vinda da troika e concluído com a sua
saída (2011-Maio de 2013), pareceu ser de início um novo momento europeu de
rejeição disfarçada de aceitação, mas acabou por ser o momento de rendição com
prisão preventiva e saídas precárias. Do Deutsche Bank ao FMI, os relatórios
são unânimes em mostrar que Portugal, longe de convergir, vai continuar a
divergir da Europa desenvolvida. Ou seja, o objetivo da integração na UE
fracassou, um fracasso que, com doses brutais de mistificação, se apresenta como
êxito. Depois da Guerra do Vietnã, nunca uma derrota se disfarçou tão bem de
vitória. Dado o seu novo estatuto, Portugal, para não estorvar, tem de ser
mantido dentro, mas do lado de fora, e vigiado.
Portugal
sai da Europa seguro pela trela curta do euro e do tratado orçamentário. Não
pode ir muito longe. Arranjará um lugarzito na soleira da porta da Europa, um
país sem-abrigo por onde passarão regularmente as carrinhos da sopa
humanitária. É digno de nós, como portugueses e como europeus, que não haja
alternativas a este estado das coisas? Claro que não. Estará o atual sistema
político-partidário em condições de explorar essas alternativas? Claro que não.
Como em democracia há sempre alternativas, o regime atual é democrático? Claro
que não. Haverá então alternativas democráticas, quer a nível nacional, quer a
nível europeu, a este regime autoritário? Claro que sim. Para isso, é
necessário que a jangada de pedra, tão premonitória, se afaste o suficiente
para romper com a trela ou para forçar que ela seja refeita de modo a dar mais
margem de liberdade ao movimento da jangada. Não esqueçamos que os cães são os
melhores amigos dos homens. O cão de Saramago, Constante, no momento crucial de
ter de decidir, optou pela Península Ibérica.
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