Pedro
Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
Haverá
quem pense que as disputas acaloradas em torno da Constituição da República só
acontecem em Portugal, mas não é verdade! A Constituição americana
transformou-se também no centro da luta política e ambas são hoje pretexto para
as mais truculentas polémicas e ferozes acusações. Dir-se-ia que tudo não passa
de uma improvável coincidência. De facto, enquanto a jovem Constituição
portuguesa não conta mais de 38 anos, a velha Constituição dos Estados Unidos
da América já ultrapassou os 226! Uma distância imensa separa os dois textos
constitucionais: o Oceano Atlântico e dois séculos de história que
revolucionaram o Mundo. Porém, enquanto nos Estados Unidos é a Direita
neoconservadora e pseudoliberal do Partido Republicano - sobretudo o "tea
party" - que invoca a Lei Fundamental para denunciar as políticas do
Governo de Barak Obama, em Portugal é o Governo neoconservador e pseudoliberal
de uma coligação de Direita que a denuncia como obstáculo ilegítimo às suas
políticas.
Em
ambos os casos, embora com finalidades táticas distintas, a Constituição foi
previamente desqualificada e reduzida à dimensão "daquilo que os juízes
dizem dela". Por outras palavras, a Lei Fundamental que outrora se
entendia como expressão máxima dos valores e aspirações da respetiva comunidade
e, por isso mesmo, se reconhecia como "norma das normas", fonte de
inspiração e orientação vinculativa e atual de todos os órgãos de soberania -
poder legislativo, poder executivo e poder judicial - transformou-se em mera
limitação externa da política e da administração pública, cujo sentido é fixado
conforme a "interpretação" que a autoridade judicial dela fizer, no
quadro litigioso em que é chamada a intervir. Assim, enquanto em Portugal se
ouviram as vozes dos que reclamavam a extinção do Tribunal Constitucional ou a
reciclagem dos juízes, nos Estados Unidos, a pretexto da garantia das
liberdades individuais da 1.ª emenda - liberdade de religião, de expressão, de
contratar - combate-se os sindicatos e destrói-se a negociação coletiva,
degradando as condições de trabalho e a dignidade dos trabalhadores. Não tardou
a reação contra esta apropriação negativa e enviesada do texto original da
Constituição do século XVIII, instrumentalizado como fundamento para atacar o
Serviço Nacional de Saúde, a Segurança Social, as restrições ao financiamento
dos partidos e todas as iniciativas legislativas que visam combater as
crescentes desigualdades sociais e a aniquilação da classe média. A denúncia
ecoa nos órgãos de Comunicação Social, instando as forças progressistas a que
reivindiquem sem demora a Constituição (EJ Dionne - "It"s time for
progressives to reclaim the Constitution" - The Washington Post, 6 de
julho de 2014). Aos "Direitos, Liberdade, e Garantias" inscritos na
1.ª emenda, ainda no século XVIII, iria seguir-se o alargamento do direito de
voto - com o presidente Andrew Jackson (1829/1937) - e, depois da guerra civil
e da abolição do esclavagismo, a adoção da 14.ª emenda (1868) iria incorporar
na Constituição o princípio da Igualdade e a proibição da discriminação. Já no
século XX, foi a vez da "New Deal", lançada pelo presidente Franklin
Roosevelt para salvar o país da ruína generalizada em consequência da
"Grande Recessão" (1929/32).
Num
artigo intitulado "A Constituição anti-oligárquica", Joseph Fishkin e
William Forbath ("The anti-oligarchy Constitution," - Boston
University Law Review", maio, 2014, pp. 671/697) afirmam que "a
extrema concentração do poder económico e político destrói a igualdade de
oportunidades e a igualdade dos cidadãos". Denunciam "o poder e os
privilégios excessivos concedidos à aristocracia endinheirada" e
socorrem-se de Roosevelt - que afirmou a necessidade de uma "ordem
constitucional económica" capaz de promover os direitos económicos e
sociais - para com ele concluírem que a consequência inevitável do abandono do
controlo económico e financeiro às mãos de uns poucos, "acarretará a
destruição dos fundamentos da nossa forma de governo". O neoconservadorismo
pseudoliberal - na América e na Europa - está apostado na destruição das
grandes conquistas civilizacionais das democracias modernas. A sua clara matriz
ideológica dispensa-o das preocupações de coerência doutrinal. São os novos
bárbaros.
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