sexta-feira, 11 de julho de 2014

Portugal: OS NOVOS BÁRBAROS



Pedro Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião

Haverá quem pense que as disputas acaloradas em torno da Constituição da República só acontecem em Portugal, mas não é verdade! A Constituição americana transformou-se também no centro da luta política e ambas são hoje pretexto para as mais truculentas polémicas e ferozes acusações. Dir-se-ia que tudo não passa de uma improvável coincidência. De facto, enquanto a jovem Constituição portuguesa não conta mais de 38 anos, a velha Constituição dos Estados Unidos da América já ultrapassou os 226! Uma distância imensa separa os dois textos constitucionais: o Oceano Atlântico e dois séculos de história que revolucionaram o Mundo. Porém, enquanto nos Estados Unidos é a Direita neoconservadora e pseudoliberal do Partido Republicano - sobretudo o "tea party" - que invoca a Lei Fundamental para denunciar as políticas do Governo de Barak Obama, em Portugal é o Governo neoconservador e pseudoliberal de uma coligação de Direita que a denuncia como obstáculo ilegítimo às suas políticas.

Em ambos os casos, embora com finalidades táticas distintas, a Constituição foi previamente desqualificada e reduzida à dimensão "daquilo que os juízes dizem dela". Por outras palavras, a Lei Fundamental que outrora se entendia como expressão máxima dos valores e aspirações da respetiva comunidade e, por isso mesmo, se reconhecia como "norma das normas", fonte de inspiração e orientação vinculativa e atual de todos os órgãos de soberania - poder legislativo, poder executivo e poder judicial - transformou-se em mera limitação externa da política e da administração pública, cujo sentido é fixado conforme a "interpretação" que a autoridade judicial dela fizer, no quadro litigioso em que é chamada a intervir. Assim, enquanto em Portugal se ouviram as vozes dos que reclamavam a extinção do Tribunal Constitucional ou a reciclagem dos juízes, nos Estados Unidos, a pretexto da garantia das liberdades individuais da 1.ª emenda - liberdade de religião, de expressão, de contratar - combate-se os sindicatos e destrói-se a negociação coletiva, degradando as condições de trabalho e a dignidade dos trabalhadores. Não tardou a reação contra esta apropriação negativa e enviesada do texto original da Constituição do século XVIII, instrumentalizado como fundamento para atacar o Serviço Nacional de Saúde, a Segurança Social, as restrições ao financiamento dos partidos e todas as iniciativas legislativas que visam combater as crescentes desigualdades sociais e a aniquilação da classe média. A denúncia ecoa nos órgãos de Comunicação Social, instando as forças progressistas a que reivindiquem sem demora a Constituição (EJ Dionne - "It"s time for progressives to reclaim the Constitution" - The Washington Post, 6 de julho de 2014). Aos "Direitos, Liberdade, e Garantias" inscritos na 1.ª emenda, ainda no século XVIII, iria seguir-se o alargamento do direito de voto - com o presidente Andrew Jackson (1829/1937) - e, depois da guerra civil e da abolição do esclavagismo, a adoção da 14.ª emenda (1868) iria incorporar na Constituição o princípio da Igualdade e a proibição da discriminação. Já no século XX, foi a vez da "New Deal", lançada pelo presidente Franklin Roosevelt para salvar o país da ruína generalizada em consequência da "Grande Recessão" (1929/32).

Num artigo intitulado "A Constituição anti-oligárquica", Joseph Fishkin e William Forbath ("The anti-oligarchy Constitution," - Boston University Law Review", maio, 2014, pp. 671/697) afirmam que "a extrema concentração do poder económico e político destrói a igualdade de oportunidades e a igualdade dos cidadãos". Denunciam "o poder e os privilégios excessivos concedidos à aristocracia endinheirada" e socorrem-se de Roosevelt - que afirmou a necessidade de uma "ordem constitucional económica" capaz de promover os direitos económicos e sociais - para com ele concluírem que a consequência inevitável do abandono do controlo económico e financeiro às mãos de uns poucos, "acarretará a destruição dos fundamentos da nossa forma de governo". O neoconservadorismo pseudoliberal - na América e na Europa - está apostado na destruição das grandes conquistas civilizacionais das democracias modernas. A sua clara matriz ideológica dispensa-o das preocupações de coerência doutrinal. São os novos bárbaros.

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