domingo, 3 de agosto de 2014

OS SONHOS DA REPÚBLICA E OS PESADELOS DO IMPÉRIO



Rui Peralta, Luanda

I - Em 1939, o realizador cinematográfico norte-americano John Ford realizou "Young Mister Lincoln" ("A Grande Esperança", foi o titulo em Português). O filme era sobre a juventude de Lincoln (representado pelo jovem - na época - Henry Fonda) e no inicio a câmara conduz-nos o olhar através de troncos, carroça, grupos dispersos de pessoas, árvores, uma casa, até chegar a um politico local, que discursa, terminando com a apresentação do jovem Lincoln. Este plano de dupla função - narrativa e ideológica - prepara a apresentação de Lincoln, introduzindo-o suavemente na narrativa, num ambiente tranquilo, bucólico, banhado por uma luz idílica. Lincoln aparece aos nossos olhos como um "eleito predestinado", um "escolhido". Esta imagem é reforçada nas cenas seguintes, quando Lincoln descobre um livro que será fundamental para o seu "destino": os "Comentários", de Blackstone.

O livro, que o acaso colocou-lhe no caminho, é a chave fundamental para a "revelação" desse "eleito natural", tendo as imagens, que mostram-nos um jovem Lincoln em leitura meditativa e apaixonada de uma "obra fundadora", a função de reforçar o papel "predestinado" de um homem ligado á terra, que embrenha-se - através da leitura do livro - nas origens da América e do seu povo. Terra, passado, natureza (todas estas imagens ocorrem no campo, na planície, junto a um rio...), chaves narrativas para descrever um destino em gestação. Esta predestinação não é, no entanto, isenta de obstáculos, de barreiras, que surgem por todo o filme. O destino de Lincoln joga-se por entre estes obstáculos, tendo a intrépida paisagem do Norte do Novo Mundo como pano de fundo. Mesmo no final, quando o jovem Lincoln já provou as suas qualidades, as barreiras estão presentes e a tempestade que se aproxima faz pressentir que novos perigos o espreitam. A ultima cena mostra-nos um Lincoln, eleito, segurando o seu chapéu e desafiando o vento que sopra. Lincoln parece planar sobre a planície, abrindo o caminho da História.

II - A mensagem do filme é clara. Lincoln, o eleito que dirige um povo eleito, livre, uma nação predestinada a ser um guardião da herança dos valores ocidentais. Ali é o novo Ocidente, um Novo Mundo de esperança, que cuida da herança europeia, renovando-a. Os valores foram transmitidos primeiro nas vagas de colonizadores, depois nas vagas de imigrantes. Os valores transportados pelos primeiros colonos (dissidentes religiosos) afirmaram-se e ganharam raízes nas terras selvagens, entrando em contradição aberta com a Velha Inglaterra (contradição que os primeiros colonos puritanos levaram para o Novo Mundo). Mas os colonos, para conquistar a terra, não defrontaram somente o Velho Império. Tiveram, também, que negociar e defrontar "demónios" pagãos que já por ali habitavam quando os "construtores da Nova Jerusalém" aqui chegaram para erguer o seu sonho.

O sistema de valores dos puritanos assentavam em duas bases: liberdade e igualdade. Ao contrário do que acontecia no continente europeu (onde estes valores entraram em contradição com os interesses religiosos) estes dois princípios eram transportados e foram implantados no Novo Mundo por homens e mulheres portadores de uma fé religiosa. Esta convergência entre religião e liberdade (entendida na perspectiva clássica) foi um principio fundador da sociedade norte-americana. Enquanto na Europa, religião e democracia, andavam desligados e eram quase sempre antagónicos, os fundadores da Nova Inglaterra eram, simultaneamente, ardentes sectários e criativos inovadores. A sua fé religiosa via na liberdade civil um exercício das faculdades humanas.

A religião estabeleceu o seu domínio como companheira da liberdade e esta viu na religião a salvaguarda dos costumes, assumidos como garantia das leis. A fé religiosa foi um molde de disciplina moral inscrita na consciência dos indivíduos, que não foi imposta pelo medo ou pelo castigo (embora existissem e as fogueiras não fossem um exclusivo europeu), mas funcionou como garante de coesão numa sociedade  auto-governada, que gere os seus interesses comuns em função dos interesses de cada um. Este fenómeno é de grande visibilidade na guerra de libertação nacional que conduziu á formação dos USA. Nenhuma guerra de libertação nacional foi tão isenta de factores ideológicos e tão assente na proclamação dos interesses, como a que levou á independência do Norte da América. Ganharam raízes profundas os valores transportados pelos primeiros colonos. De tal forma que os seus descendentes tornaram-se guardiões dos míticos princípios europeus -  originados nas assembleias atenienses -da liberdade dos "povos livres do ocidente". Com base no seu interesse...

III - Tocqueville enumerou três causas fundamentais para o "sucesso" dos USA: a situação e localização; as leis; os hábitos e costumes. Sobre o segundo e terceiro factores já discorremos no ponto anterior (devo, no entanto salientar que estes dois factores, geralmente apontados como causas primeiras da "boa governação" dos USA, sejam também primordiais para a ocorrência de aberrações como, por exemplo, a caça às bruxas, o criacionismo nos currículos escolares - escamoteando e reprimindo o evolucionismo - as escutas telefónicas, a paranóia com a Segurança, etc., etc., etc.). Vejamos, então, o primeiro factor.

O espaço geográfico onde os primeiros colonos se estabeleceram - e mais tarde a expansão territorial provocada pelas sucessivas vagas de imigrantes - foi decisivo. A ausência de Estados vizinhos poderosos foi essencial, permitindo um mínimo de obrigações diplomáticas e de riscos militares. Por sua vez o espaço desmedido era uma situação sem equivalente na Europa, o que representou um factor importante para que não se germinasse uma aristocracia, que muito dificilmente se desenvolve em áreas com excedente de terras aráveis, preferindo incubar-se em áreas com escassez de terra arável. Mas a causa mais profunda para o "sucesso" norte-americano foi a imigração.

Vagas de imigrantes renovaram e perpetuaram hábitos e costumes. Se os USA devem á Europa o governo das leis, o Norte do Novo Mundo deve ao mundo inteiro (imigrantes europeus, asiáticos, africanos - destes a maioria não foram imigrantes, mas sim, escravos - sul e centro-americanos, caribenhos, etc.) o seu crescimento económico, social e cultural. Foi a diversificação, provocada pela imigração, a causa principal do "sucesso" norte-americano.

IV - A Constituição norte-americana provocou a divisão do poder legislativo em duas câmaras, estabeleceu um Presidente da Republica e é uma garantia das liberdades (logo dos interesses). E esta questão das liberdades (dos interesses) na Constituição dos USA é uma característica que a distingue das constituições europeias. Nestas os interesses são subordinados a um subjectivo interesse comum (ao Estado, á nação, á comunidade), através do Direito e dos direitos. Esta diferença é a fronteira que separa o Velho Ocidente do Novo Ocidente. Neste os interesses são assumidos e absorvidos pelos aparelhos institucionais.

Outra diferença reside no comportamento das cidadanias. Os cidadãos norte-americanos estão bem informados e são participativos, mas ao nível da cidade, da comunidade, do local, ignorando o mundo que rodeia os seus assuntos. Já o cidadão europeu tem outra perspectiva, conhecendo melhor o mundo do outro e raciocinando de forma mais generalizada. São diferentes níveis de instrução cívica, que têm na descentralização administrativa o pano de fundo. A democracia europeia transporta, na sua caminhada pelo pensamento ocidental os princípios da democracia dos antigos, igualitária ("isonómica") e virtuosa, que via no comércio actividade imprópria (a "ágora", o mercado, era uma esfera onde o eu e o outro se cruzavam, não tendo o comércio - como actividade autónoma - um lugar de destaque no âmbito da cidadania). Mas na democracia europeia moderna o comércio ganha autonomia e o mercado é um espaço de troca, já afastado do conceito dos antigos. Com a predominância industrial, surge no mercado uma dinâmica frenética que o leva a transbordar o seu espaço social. Os interesses económicos assumem fortes raízes individualistas que irromperam no campo da ética, alterando comportamentos, preconceitos e conceitos.

Na Europa continental (a ilha britânica assume uma posição de vanguarda da nova ética desde a Republica de Cromwell) os valores da democracia ateniense estão enraizados na superstrutura ideológica e constituem um bloqueio institucional mais eficaz, mesmo que minimizado na Europa protestante, mas suficiente para permanecer e ressurgir com a forma socialista ou como praxis democrática do movimento operário (e mais tarde no Estado do Bem-Estar, no Keynesianismo e no projecto europeu da Europa Social).

Nos USA a democracia moderna foi levada ao extremo, ou seja a sua importante componente liberal (germe da modernização da ideia democrática) foi profundamente autonomizada e a liberdade individual não se subordinava á figura do "interesse geral" a não ser por "interesse" ou seja por um motivo que gerasse um ganho determinado, uma vantagem na longa e embrenhada competição em que se tornaram as relações sociais. O máximo a que se chegava por negociação era a interesses comuns e só mesmo a necessidade gerada por ameaça a todos os interesses, poderia ser um motivo temporário para se assumir um pretenso interesse geral.

É certo que em ambos os casos (no Velho Ocidente e no Novo Ocidente) a cidadania é controlada, auto-regulada, pela disciplina moral e a influencia do Estado assenta nos hábitos e costumes, usos e crenças, estandardizando as condutas dos indivíduos, mas nos USA, o interesse é um pilar não camuflado da sociedade o que fez (e faz) enrubescer hipocritamente os europeus.

V - A mobilidade social nas democracias é um mecanismo complementar (mas não secundário) ao mecanismo de renovação das elites. Os indivíduos têm a perspectiva (e alimentam a esperança) de ascender na hierarquia social e uma sociedade na qual a ascensão é realizável permite conceber uma ascensão para a humanidade, no seu todo. A sociedade democrática concretiza, desta forma, a ideia de progresso.

A democracia funciona assente numa base contraditória, num conjunto de diferentes níveis de conflitos (consequência dos diferentes e variáveis interesses) e é visceralmente dialéctica. As sociedades democráticas são profundamente individualistas, são sociedades onde cada um, sozinho, em família, clã ou outro tipo estrutura colectiva, busca a prossecução dos seus objectivos, associando-se livremente e por sua iniciativa, quebrando o isolamento inerente ao individualismo através do exercício da cidadania.

Nessa livre associação que é um pilar da liberdade e participação do individuo, desenrola-se um primeiro conflito de interesses que impede a omnipotência e a omnipresença do Estado (concentração de poder) ou da concentração de riqueza (consequência dos desníveis causados no mercado pela sua extravasão, que conduz á formação de elites de mercado, não administrativas que pretendem o domínio das relações sociais, de forma a ampliar o factor económico para além das suas linhas de demarcação. Eis o capitalismo, como realidade dominante, que evolui na produção e na troca e se reproduz na mercadoria e na acumulação de capital.

Nos USA o capitalismo lançou raízes, ao ponto de, a partir de certo momento da sua História - quando se assumiu como centro financeiro da economia mundo - absorver o capitalismo, tornando-o sua identidade (american way of life) e confundindo-o com a democracia. Construiu-se então um sonho (o american dream) que destruiu todos os sonhos que estiveram na génese dos USA, mas não só...foram também destruídos os sonhos da humanidade, porque o capital transformou a Republica em Império. 

(Continua)

Imagem: Ziraldo

Sem comentários:

Mais lidas da semana