José
Manuel Pureza – Diário de Notícias, opinião
O
cinismo é estratégia da direita governamental para apoucar a democracia
constitucional em
Portugal. A direita nunca contesta de frente o modelo
constitucional de democracia. O que faz é dizer-se sua cumpridora com a mesma
sinceridade com que Mourinho elogia Jorge Jesus. Nessa entronização do cinismo,
Passos Coelho cometeu um só deslize quando proferiu o célebre "que se
lixem as eleições". Fora isso, a direita governamental tem sido exímia na
construção de uma relação de cinismo para com as regras da democracia política
e social. Juras solenes de respeito pelas decisões do Tribunal Constitucional
vão a par de pressões indisfarçadas e de pretensões de eliminação dessa
"força de bloqueio". Proclamações de respeito casto pelo direito de
manifestação são a contraface benigna de sucessivas iniciativas políticas e
legislativas de agressão gratuita contra a vida das pessoas. E por aí fora. O
cinismo é isso: arrasar convictamente enquanto se cumpre, sem um pingo de
sinceridade, a formalidade de "expressar respeito" pelo arrasado.
Agora
o cinismo da direita governamental ganhou outra ferramenta: o pedido de
desculpas. O ministro da Educação chefia, com fé e convicção profundas, uma
empreitada de expulsão de professores do sistema de ensino. Faz uso de todos os
meios para que sejam eles a desistir por desmoralização e exaustão. A
informática encarrega-se de ajudar na cruzada. E Nuno Crato, solícito, pio, com
arrependimento emocionado, pede desculpa "aos senhores professores, ao
país, aos senhores deputados", enfim ao mundo. A ministra da Justiça
comanda politicamente uma operação que resulta no colapso dos tribunais. Contra
tudo e contra todos, Paula Teixeira da Cruz decidiu pôr em marcha uma revolução
radical do mapa judiciário assumindo o risco de que a redistribuição
informática de milhares e milhares de processos pudesse não funcionar. Não
funcionou. E a ministra veio solícita, pia, com arrependimento emocionado,
pedir desculpa aos senhores juízes, aos senhores advogados, ao país, aos
senhores deputados, enfim ao mundo.
Nuno
Crato e Paula Teixeira da Cruz lesaram gravemente os direitos fundamentais de
milhares de cidadãos. Lesaram gravemente o interesse público. Em democracia,
Nuno Crato e Paula Teixeira da Cruz são politicamente responsáveis por toda a
atuação dos ministérios que chefiam. O colapso dos tribunais não é uma questão
informática pela qual pague um programador informático. O colapso da colocação
de professores não é uma questão técnica pela qual pague um diretor-geral.
Ambas são questões políticas de primeira importância pelas quais, numa
democracia a sério, pagam politicamente os responsáveis governamentais.
Os
dois ministros pediram desculpa. E depois? Houve para ambos alguma consequência
institucional das suas clamorosas falhas políticas? Não. O pedido de desculpa é
um gesto cínico de escape à responsabilidade política por quem a deve assumir.
Pelo
andar da carruagem, Passos Coelho virá a público um destes dias pedir desculpa
por ter tido um utilíssimo ataque de amnésia a respeito do dinheiro que recebeu
há uns anos e que não podia ter recebido por ele próprio ter reclamado para si
tratamento próprio de deputado em exclusividade. Vai ser difícil desculpar. Afinal
de contas, não foi Passos Coelho que ensinou o país que quem viveu acima das
suas possibilidades (legais, neste caso) deve pagar por isso? E não foi a
direita governamental que sempre exigiu aos beneficiários dos apoios do Estado
que expliquem muito bem explicadinho o dinheiro que têm na conta?
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