Falta
de democracia real, perda de direitos sociais e desenvolvimento tecnológico
alienado criam condições distópicas para a cisão da humanidade
Nuno
Ramos de Almeida – Outras Palavras
No
filme Elysium, do realizador sul-africano Neill Blomkamp, a elite da
população terrestre vive numa gigantesca e paradisíaca estação espacial em que
tudo está garantido, até a imortalidade, e a população da Terra vive em
condições sub-humanas, num planeta destruído do ponto de vista ecológico e em
condições de quase escravatura. A sua vida é permanentemente policiada por
violentos robôs da polícia.
As
funções do Estado limitam-se à manutenção da ordem, para melhor explorar esta
raça de sub-humanos escravizada em que foi transformada a humanidade.
A
ficção científica serviu sempre para poder falar do presente com roupas do
futuro, para nos permitir ver melhor aquilo que hoje nos parece “normal”, mas
que pelo seu desenvolvimento lógico nos levará a situações de irreversível
injustiça. As distopias, como Prisioneiros do Poder, dos irmãos Arcady
Strugatsky e Boris Strugatsky, 1984, de George Orwell, ou Nós, de
Yevgeny Zamyatin, projetam no futuro aquilo que pode estar sendo forjado com o
nosso silêncio.
A
destruição do trabalho com direitos e como forma de participação e afirmação do
humano acontece sob os nossos olhos. Os empregos na indústria, regulados pela
negociação da contratação coletiva, foram substituídos pela precarização total
do trabalho e pela destruição de qualquer laço estável e comunitário de vida.
Em muitos países, os contratos sem prazo certo são transformados, nos
call-centers, em contratos por semana, associados a metas cada vez mais altas.
Num
livro notável, Chavs – A demonização da classe operária, o colunista Owen
Jones demonstra que o trabalho com direitos na indústria da Grã-Bretanha foi
substituído por trabalhos mal pagos nos serviços, em caixas de supermercados e
call-centers, setores sem direitos e com baixas taxas de sindicalização. Com a
perda progressiva de rendimentos e prestígio social de quem trabalha,
assistiu-se à multiplicação por muitos dígitos dos salários dos
administradores. Num estudo elaborado pela Confederação da Indústria Britânica,
que agrupa os principais donos de empresas, intitulado “A conformação dos
negócios nos próximos dez anos” defende-se: “A crise é catalisadora de uma nova
era de negócios.” O documento pede a criação de uma mão-de-obra “flexível”, o
que significa que as empresas devem empregar menos trabalhadores de seu próprio
quadro e mais eventuais, que podem ser despedidos a qualquer momento sem
encargos. A crise foi uma verdadeira máquina de guerra do patronato: na
passagem do milênio, os executivos das empresas britânicas ganhavam 47 vezes
mais que os seus trabalhadores; sete anos depois, ganhavam 94 vezes mais. Como
dizia o multimilionário norte-americano Warren Buffett, com graça e em tom de
crítica: “Há uma luta de classes. Fomos nós que a começamos e a minha classe
está vencendo.”
Por
todo o mundo “desenvolvido” assiste-se à criação de uma espécie de apartheid:
por um lado, uma raça de super-ricos vivendo num mundo à parte, e por outro
lado uma população sem direitos.
Um
cenário de ficção científica que é abordado no último
número da revista francesa Philosophie
Magazine, num dossiê em que se revela que está planejada para 2020 a construção das
primeiras ilhas artificiais. Nelas, os ricos viverão livres de Estado,
constrangimentos sociais e da presença de pobres que não sejam seus criados.
Bem-vindos ao deserto do real.
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