segunda-feira, 13 de outubro de 2014

ZIMBABWE, HIPERINFLAÇÃO E MODELOS SIMILARES CAMUFLADOS (3)



Rui Peralta, Luanda (continuação - ler anteriores)

IV - O Zimbabwe ocupa uma área de cerca de 390 mil km quadrados, habitado por, aproximadamente 10 milhões de pessoas. Não tem saída para o mar (o seu ponto mais próximo do Oceano Indico dista 200 km), sendo as suas fronteiras a Noroeste com a Zâmbia, a Nordeste e a Este com Moçambique, a Sul com a África do Sul e a Sudoeste com o Botswana. A maior parte do seu território encontra-se a 1400 m sobre o nível do mar, mais baixo a Noroeste, descendo sobre o rio Zambeze e a Sudeste, nas margens do Limpopo. O ponto de maior altitude, Inyangani, encontra-se a cerca de 2600 m do nível do mar. O rio Zambeze traça a fronteira com a Zâmbia e as suas águas atravessam 2/3 do território do Zimbabwe. Na estação das chuvas (de Novembro a Março), as temperaturas variam entre os 22 e os 30 graus centígrados e na estação seca entre os 14 e os 20. A pluviosidade é de 1400 mm na região montanhosa oriental e de 400 mm na região meridional. A floresta cede o lugar á savana e volta a reaparecer, como floresta tropical, no extremo oriental do país. O solo é fértil e rico em depósitos minerais. §26% da população vive nos centros urbanos (60% da população urbana concentra-se em Harare e Bulawayo). As províncias orientais são as mais populosas. A grande maioria da população é banto, sendo os Shona o grupo maioritário (76%), seguido dos Ndebele (16%), concentrados no sudoeste. Quanto á população branca representa 1,5% do total populacional.

Originalmente a região era habitada pelos caçadores e recolectores bosquímanos. Entre o século V e o século X da nossa estes territórios são colonizados por povos bantos provenientes da região dos Grandes Lagos. A colonização banto empurrou os bosquímanos para o deserto e zonas áridas. Os que permaneceram nos domínios do colonizador foram escravizados e numa fase posterior, assimilados. Os povos que colonizaram esta região originaram uma rica e diversificada civilização, bastante complexa, denominada Zimbabwe devido às suas estruturas arquitectónicas (Zimbabwe, grande casa de pedra) já conhecido, por nome pelos mercadores arabes no século XV. Nesta civilização desenvolveram-se dois reinos: Monomotapa e Changa mira, ambos visitados pelos portugueses no seculo XVI, tornando-se estados vassalos da coroa portuguesa, situação que mantiveram até finais do século XVII. No século XVIII a explosão demográfica sentida na África Austral provocou grandes alterações políticas e sociais na região situação agravada no século XIX, quando os Ndebele atravessaram o Limpopo, fugindo dos boers. Os Ndebele estabeleceram-se no Zimbabwe e forçaram os Shona a movimentarem-se para Norte, mas pouco tempo depois o Império Britânico, desde a colónia do Cabo, penetra no território e ocupa terras aos dois grupos tribais.

Em 1894 esses territórios tornaram-se o Estado da Rodhésia, sob administração da BritishSouth África Company, fundada em 1889 por Cecil Rhodes. Quatro anos depois o território é dividido em três regiões, duas a Norte (em 1911 unificados na Rodésia do Norte, actual Zâmbia) e uma a Sul, a Rodésia do Sul, que em 1923 torna-se colónia britânica. Trinta anos depois as duas Rodésias e a Niassalândia (actual Malawi) formam a Federação da Africa Central, dissolvida em 1963. Dois anos depois a população branca da Rodésia do Sul rompem com a Grã-Bretanha e impõem um regime racista, formado pela minoria branca.

O governo da Frente Rodesiana, liderado por Ian Smith, inicia um programa de  reconstrução económica. mas o carácter racista do novo regime minoritário provocou a revolta da maioria negra, que iniciou os seus protestos em 1957, com manifestações, greves, paralisações, sempre duramente reprimidas pelo governo de Ian Smith e seus alcoólatras da racista Frente Rodesiana. Na década de 60 duas organizações decidem passar á luta armada: a ZAPU (União do Povo Africano do Zimbabwe, fundada em 1961 por Joshua Nkomo) e ZANU (União Nacional Africana do Zimbabwe, fundada por Shitole, em 1963, á qual aderiu Robert Mugabe, dissidente da ZAPU). Em 1976 os dois movimentos coligam-se na Frente Patriótica (sob a égide do Presidente zambiano Kenneth Kaunda), participando nas reuniões internacionais entre o governo de Salisbúria, liderado por Ian Smith, do UK e dos diferentes sectores oposicionistas. Três anos depois a Frente Patriótica (PF) não participa nas eleições, que também não foram reconhecidas pela ONU.

Deste acto eleitoral, ganho pelo bispo Abel Muzorewa, que liderou o governo durante breves meses, nasceu o Zimbabwe-Rodésia. Muzorewa foi forçado a demitir-se, devido ao recrudescimento da guerra civil e ao problema do reconhecimento internacional (a ONU não reconheceu as eleições, logo o governo surgido dos resultados eleitorais não tinha legitimidade internacional) e o pais foi temporariamente administrado pelo UK, até às eleições de 1980, ganhas pela ZANU, com 63% dos votos (57 deputados entre os 100 lugares - dos quais 80 em disputa - que formavam o Parlamento), contra 24% (20 deputados) da ZAPU e 8% (3 deputados) do UANC (United African National Council) de Muzorewa. A Frente Rodesiana ficou com os restantes 20 lugares, reservados pela Constituição, aprovada por todos nas negociações ocorridas durante o mandato britânico, apos o breve e fugaz governo de Muzorewa.

A 18 de Abril de 1980, o Zimbabwe proclamou a independência e assumiu o seu lugar no quadro das nações. Com a independência o povo zimbabweno aprenderia uma verdade dura, que os povos das outras nações já haviam aprendido: no âmbito do Estado-Nação o problema reside no Estado. As soluções encontram-se, sempre, na Nação...

V - A inflação é o aumento do nível geral de preços, medida pela taxa de inflação, ou seja, pela percentagem anual desse  aumento. Podem ser considerados três níveis, ou graus. de inflação: 1) inflação moderada, quando o nível de preços regista uma subida que não distorce os preços e os rendimentos; 2) inflação galopante, que corresponde a uma taxa de 50% a 200%; 3 )hiperinflação, que é a inflação com taxas muito elevadas, por exemplo, a mil, 1 milhão , mil milhões por cento ao ano. Este nível é a distorção total da realidade económica e social. 

Existem processos de inflação continuada, que se tornam previsíveis (a inflação por inércia), sendo a taxa incorporada nos contratos e nas expectativas das economias. A inflação pode, também, ter a procura como causa (inflação pela procura), ou a oferta (inflação pelos custos). Seja qual for o nível ou o tipo, a inflação afecta sempre os rendimentos. Na actualidade os governos e os bancos centrais (nas economias onde os bancos centrais gozam de um estatuto de autonomia), calculam a inflação recorrendo a índices de preços, médias ponderadas dos preços de milhares de produtos diferentes. O IPC (Índice de Preços ao Consumidor) quantifica o custo de um cabaz de produtos e serviços, comparativamente com o custo desse cabaz num determinado ano base. 

Os dois níveis perigosos de inflação (galopante e híper) são autênticos pesadelos para os povos e conduzem a fenómenos de regressão social. Argentina, Chile e Brasil conheceram estes graus inflacionários nas décadas de 70 (inflação galopante, com taxas de 50% a 200% ao ano)  e 80 (hiperinflação, com taxas que atingiram os 700% ao ano). A Rússia experimentou os seus efeitos nas décadas de 20 e de 90 e os USA no seculo XIX (durante a Guerra Civil) e no século XX, durante a Grande Depressão na década de 20. Na mesma decada a Alemanha viu a irrealidade tomar conta do protestante espirito germânico (daí ao pesadelo nazi, foi um pulo).

No nível galopante surgem graves distorções económicas. A maioria dos contratos fica indexada ao IPC ou a moeda estrangeira (geralmente o dólar). A moeda nacional perde valor muito rapidamente, sendo apenas utilizada para as transações diárias e os mercados financeiros esvaziam-se com a fuga de capitais para o exterior. No entanto a inflação galopante, por muito destrutiva que seja, em nada se compara ao poder destruidor da hiperinflação, quando a quantidade real de moeda (quantidade de moeda dividida pelo nível de preços) reduz-se rapidamente e por sua vez os preços tornam-se extremamente instáveis, deixando a estrutura económica em ruínas e o tecido social em estado de decomposição. As enormes flutuações nos preços e nos salários causam distorções drásticas e profundas desigualdades, rapidamente aproveitadas pelas elites, que através destes choques violentos rejuvenescem-se compulsivamente, sendo os seus extractos menos desenvolvidos - que em condições normais seriam apenas extractos residuais - os que assumem o poder, ou ficam em melhor posição, impondo aos restantes sectores as suas políticas. É nesse exacto momento que a regressão se institucionaliza e que muitas vezes assume uma forma continuada, que ultrapassa os limites temporais do processo inflacionário, tornando-se normal. 

Foi dessa forma que Mugabe ampliou os seus poderes, ignorou a Constituição (algo que não pertence ao seu vocabulário composto apenas por monossílabos e palavras onomatopaicas), livrou-se dos seus concorrentes directos (sindicatos e fazendeiros brancos) e encurralou o poder judicial. Tudo isso sobre as cinzas da terra que queimou.

VI - As políticas sociais estão sempre na mira das elites políticas e económicas que as utilizam como um trunfo na manga, quando as economias estão a funcionar normalmente, servindo de soporífero e sustentando a estabilidade. Existem diversas variantes deste truque de ilusionismo que é o modelo keynesiano: Estado Social, Mercado Social, Responsabilidade Social, Estado-Providência, etc.. Em Africa estas figuras, por um conjunto de circunstâncias e especificidades, limitam-se ao discurso do Poder. No mundo islâmico, os integristas utilizam as políticas sociais da mesma forma e com o mesmo intuito dos Nazis na Alemanha antes da II Guerra Mundial (com os seus espectaculares serviços sociais, que impressionaram os operários social-democratas e comunistas) e os fascistas italianos, na Itália dos inícios da década de 30, com a reforma do trabalho, que tanto impressionou os sectores mais reformistas da social-democracia). Outra forma de lidar com o assunto têm as actuais elites europeias, que abriram concurso de "tiro ao prato social" para eliminarem os direitos sociais, autênticos pilares da cidadania. É aí que as políticas sociais são a razão de todos os males e as mães da inflação.

No Zimbabwe as coisas não foram diferentes, mas com algumas especificidades. O bando de Mugabe não atacou directamente as conquistas sociais da independência, mas utilizou-as e desmantelou-as com a desculpa da situação económica, acusando os seus adversários, internos e externos, pelo que estava a acontecer. Os responsáveis eram os brancos, os sindicatos, a oposição, o poder judicial, os australianos. Houve, no entanto, um sector onde as conquistas da independência se mantiveram firmes, apesar de todos os constrangimentos: o sector da Saúde Publica.

Foi ao nível dos cuidados primários que esta conquista se revelou quase irreversível. Ao nível das comunidades rurais foram criadas duas componentes: 1) Operadores Sanitários de Aldeia (VHW), Assistentes de Parto Tradicional (TBA, ou TA) e a Central de Distribuição (CBD); 2) Centros Rurais Sanitários (RHC).Após a adopção da Estratégia dos Cuidados Primários, 55 (um em cada distrito) escolas de Operadores Sanitários de Aldeia (VHM) foram erguidas. Os VHM formam a ligação entre a aldeia e o serviço local de saúde. As suas funções principais são a prevenção, educação sanitária, informação e  mobilização da comunidade em torno dos assuntos ambientais, higiene, nutrição e cuidados materno-infantis.

Antes da proclamação da independência do Zimbabwe, as unidades mais periféricas dos serviços rurais de saúde eram as clinicas, administradas pelas autoridades locais. As clinicas funcionavam, normalmente, com uma ou duas enfermeiras qualificadas ou com pessoal auxiliar não qualificado. Apos a independência, esta função foi alargada e optimizada com a criação dos Centros Rurais de Saúde (RHC). As velhas clínicas foram reapetrechadas e construídas novas estruturas, tornando os cuidados de saúde mais acessíveis. Os RHC são constituídos por duas enfermeiras qualificadas e por um Assistente de Saúde, formado. Os RHC fornecem os serviços de prevenção, terapia e reabilitação nas áreas do planeamento familiar, cuidados materno-infantis, saúde ambiental e higiene pública, nutrição,  controlo de epidemias, saúde mental e cuidados neurológicos e serviços terapêuticos gerais.

Estas estruturas são um alicerce de um Serviço Nacional de Saúde, essencial ao bem-estar da população e ao desenvolvimento social.§ Estes e outros projectos sociais são reivindicações históricas, direitos sociais assumidos que não podem ser renegados e colocados no caixote de lixo. Não são estes projectos e estas abordagens estratégicas os causadores de processos inflacionários. Antes pelo contrário, eles são estruturas de combate ao desperdício de recursos, esse sim, um dos viveiros inflacionistas, que adicionados á demagogia, aos instintos predatórios das elites e á inépcia dos aparelhos de Estado (com os seus intermináveis e kafkianos corredores onde se passeiam estranhas multidões de funcionários disfuncionais) são os grandes impulsionadores dos descalabros hiperinflacionários.

Os alquimistas do Estado-Nação esconjuram nos seus sumptuosos gabinetes os ardis utilizados para camuflar esta elementar contradição: o que a Nação cria, o Estado suga! Curiosa e alquímica simbiose, esta, do Estado-Nação...será porque sendo o Estado, nozes (o "Estado somos nós" é apenas um eco do "Estado sou eu", do absolutismo), na Nação somos apenas vozes?

VII - No Zimbabwe, os ténues sinais de recuperação (sempre publicitados como se fossem proezas impares) apenas levantam a névoa que paira sobre os escombros. Mas uma certeza permanece: não será desta que os seguidores de Rhodes irão construir o seu império do Cabo ao Cairo...Os povos africanos (mesmo famintos, esqueléticos e destruturados), não deixam! Não é, afinal, Africa, a Grande Nação, meus senhores? 

VIII - (...) Grita e grita. / Quem se esforçou não perdeu / mas ainda não ganhou. / Lento, carregado e cruel / o trem africano...(Agostinho Neto, Trem Africano, in Sagrada Esperança).

PS: Tenho seguido - por motivos profissionais - a questão do presidente queniano com o Tribunal Penal Internacional. Considero positivo a existência do TPI, não partilho a opinião dos que consideram que o TPI é anti-africano ou que exista algum tipo de "neocolonialismo judicial" (este conceito até seria interessante e merecedor de um estudo aprofundado, não fosse apregoado pelos bandos de lacaios do imperialismo e do neocolonialismo, os moços de recados do capitalismo em África, que arvorados em nacionalistas referem o neocolonialismo em jeito de birra, porque o dono deu-lhes um puxão de orelhas e coloca-os de castigo com orelhas de burro, a um canto da sala). Vão muitos líderes africanos ao TPI? Não me parece...(ainda não vi por lá o senhor Mugabe, por exemplo). Se estão preocupados com o facto do clã Bush não ser chamado, ou lideres sionistas, como Ariel Sharon, não serem chamados, ou pelos responsáveis dos acontecimentos na praça Tiananmen não serem chamados, ou pelos corruptos lideres europeus que mergulharam os seus países no descalabro, ou pelos responsáveis dos bombardeamentos na Indochina, durante a guerra do Vietname, ou das autoridades da imigração nos USA e por aí fora, numa lista interminável (mas a que chegaríamos ao fim e essa é a nossa obrigação cidadã) têm razão em estar preocupados e há que levar essa gente a julgamento, mas não tapem o sol com a peneira! Lutem para que isso aconteça, (de certeza que aí, nessa ocasião, estamos juntos) em vez de se porem em fila, vestidos com os novos e milionários fatos, para receberem os líderes ocidentais, ou aparecerem nas revistas do Jet Set ao lado de Obama. Quanto ao resto... Talvez se roubarem menos, se não andarem a estragar os negócios dos cidadãos, ou se não andarem sempre a monopolizar a vida económica e politica...

Há uma "coisa" chamada democracia... Não, camaradas, manos e irmãos, não são só eleições…

Fontes
Ryan, C. To Understand Your Future, Study Zimbabwe Acts News Online September 27, 2014 Haslam, P. and Lamberti, R. When Money Destroys Nations LvMISA, Johannesburg, 2014 
Coomer, J. and Gstraunthaler, T. The hyperinflation in Zimbabwe The Quarterly Journal of Austrian Economics, vol. 14, nº3, 2011.
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Robinson, P. Zimbabwe's hyperinflation: The house is on fire, but does the government know that is dousing the flames with petrol? http://library.fes.de/pdf-files/iez/03894.pdf.
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