Quem
avisou a televisão? Seja Sócrates culpado ou inocente, temos o direito de saber.
Alice Brito* – Esquerda net,
opinião
“E
estando já passados quase dois anos que se queimaram pessoas em Lisboa, está o
Rossio cheio de povo duas vezes em festa por ser domingo e haver auto-de-fé,
nunca se chegará a saber de que mais gostam os moradores, se disto, se das
touradas, mesmo quando só estas se usarem” in Memorial do Convento- Saramago
Sócrates
é o preso número 44. Sócrates comeu cozido à portuguesa ao almoço. A cela em que Sócrates está tem
8 metros
quadrados . Sócrates tomou banho de água fria e pediu um
gorro e um par de luvas. Alguém me pode informar o que é que temos a ver com
isso?
Somos
todos notificados para um voyeurismo primário e insalubre.
Em
vez de informação servem-nos a humilhação. Uma humilhação mediática e
espectacular.
A
procuradoria vai abrir um inquérito para averiguar eventual violação do segredo
de justiça. Eventual?
Quando
Sócrates foi preso, estava uma televisão no aeroporto. Quem a avisou?
Há
anos, num famoso caso de pedofilia, descobriu-se que a fuga de informação
partia da cúpula da Polícia judiciária, mais propriamente do seu diretor, o
juiz Adelino Salvado, que viria a demitir-se. Foi julgado?
O
escândalo é uma espécie de fantasma que assombra as comunidades. Toda a gente
se lhe entrega e opina e especula e inventa e potencia o boato que entretanto
vai inchando pesado e gordo.
Nada
sabemos sobre este caso. Nada. O que sabemos é que um ex-primeiro ministro,
amado e odiado até ao paroxismo, foi preso quando chegava a Lisboa por
suspeitas dos crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção.
Isto
é o que sabemos. A partir daí multiplicam-se as especulações e socializam-se as
convicções. O circo montado. Aparecem malas de dinheiro, o quotidiano
parisiense, os restaurantes em que comia, os cafés que frequentava, as
livrarias a que ia, tudo fazendo parte de um imaginário construído para abater
um alvo visível e enfraquecido, acabrunhado, menorizado por palavras e por
sorrisos alarves.
Quem
avisou a televisão?
O
escândalo é proporcional à preguiça e à indolência social. Levamos o tempo a
ser colonizados por verdadeiros potentados de discursos para brutos. Um povo em
crise é uma matéria-prima invejável para a indústria dos sentimentos das
pessoas. Esta indústria tem fábricas e oficinas que vão desde o grande tablóide
à pequena oficina argumentativa e emocionada. Tem a fuligem própria das
unidades produtivas de Taylor, e linhas de montagem onde se reproduzem verdades
inquestionáveis. As dúvidas são para deitar fora. Em horas certas a indústria
dos sentimentos expele golfadas em que se jorram nomes apetitosos que tanto
podem ser culpados dos crimes mais atrozes, como absolutamente inocentes,
circunstância que não interessa a este mecanismo industrial. A culpa ou a
inocência são absolutamente secundárias na mecânica especulativa das grandes
avaliações que a opinião pública, a grande consumidora destes produtos, vai gerindo.
Os media fazem-nos uma visita guiada ao desespero. E o pessoal vai gostando e
vai assistindo de bancada como dantes assistia aos autos de fé.
Quem
avisou a televisão?
Os
tribunais não podem funcionar como grandes empresas de espectáculo.
Quando
um juiz foi ao parlamento prender um deputado à frente da televisão, foi um
grande profissional de circo.
Não
gosto, nem nunca gostei do ex primeiro-ministro, agora preso. Lembro-me dele a
entrar-me em casa a anunciar os primeiros cortes, acompanhado de Teixeira dos
Santos, uma prótese mal-encarada no cenário formal do início da desbunda. Não
esqueço a coincineração na Arrábida, esse crime ambiental. Não esqueço Maria de
Lurdes Rodrigues, profissional do aviltamento dos professores.
Mas
também não esqueço que a direita começou a invocar Sócrates para justificar
toda a canalhice que foi e vai fazendo; que trabalha com afinco e sucesso na
moldagem de um bode expiatório para todas as suas trapacices e velhacarias, com
aquela dissimulação dos sem carácter; que utiliza de forma sórdida a vida
pessoal do homem num concerto de desinformação que nos deve indignar.
Quem
avisou a televisão?
Seja
Sócrates culpado ou inocente, temos o direito de saber.
*Alice Brito - Advogada, dirigente
do Bloco de Esquerda
Sem comentários:
Enviar um comentário