terça-feira, 6 de janeiro de 2015

CUSA (1)



Rui Peralta, Luanda

I - Na última quinzena de Dezembro de 2014 Obama e Raul Castro anunciaram o restabelecimento de relações entre Cuba e os USA, interrompidas á 55 anos. O acordo histórico (que teve mediação do Vaticano) inclui a reabertura da embaixada norte-americana em Havana e iniciou-se com uma troca de prisioneiros. Os USA libertaram os restantes três dos famosos cinco cubanos detidos desde 1998 sob acusação de espionagem e Cuba libertou dois prisioneiros: o norte-americano Alan Gross, responsável da USAID, detido em 2009 e cumprindo uma pena de quinze anos por fornecer ilegalmente tecnologia de informação e comunicação a grupos cubanos oposicionistas; e libertou um cubano cuja identidade não foi revelada. Segundo a Newsweek trata-se de Rolando Trujillo, um ex-agente da segurança cubana que fornecia informações á CIA, detido em 1995.

Este acordo representa uma vitória política e diplomática para Cuba e também uma vitória de Obama ao nível da política interna norte-americana. Para Cuba, a normalização das relações é de extrema importância pois representa o fim do pesadelo do bloqueio (o governo cubano considera que o embargo comercial e financeiro é um bloqueio) que asfixia a economia cubana (algo que terá, ainda de ser comprovado. O embargo-bloqueio afecta, sem duvida, mas quanto e em que factores? Quanto da estagnação é provocada pelos USA? Essa será uma resposta que a normalização permitirá observar). A reabertura da embaixada em Havana, o compromisso de os USA deixarem de considerar Cuba um Estado patrocinador do terrorismo (algo que foi criado pela máquina de propaganda da CIA e das elites neoconservadoras), ao adicionarem-se ao restabelecimento das relações comerciais e financeiras e ao compromisso da administração Obama em estabelecer uma cooperação no âmbito do combate ao narcotráfico e só terrorismo, assim como ao nível do combate aos efeitos das catástrofes e da saúde, são, efectivamente, uma importante vitória para Cuba.

A Obama reconhece-se a coragem de, ao dar este passo, tentar incutir uma dose de bom senso na irracional politica externa norte-americana.

II - Gerardo Hernandez, António Guerrero e Ramon Labañino são os três últimos cubanos (do grupo de cinco) libertados e que regressaram a Cuba. O grupo dos cinco cubanos tinha o objectivo de infiltrar grupos terroristas da extrema-direita cubana que utilizam o território norte-americano como base logística, aí estabelecendo os seus campos de treino e recrutamento.

Estas organizações são protegidos e financiados pela CIA e pelos sectores da direita cubano-americana, ultraconservadores como o senador republicano da Florida, Marco Rubio, que não perdeu tempo e proferiu um violento discurso contra o acordo, no mesmo dia em que este foi anunciado ao público pelos dois presidentes. "The White House has conceded everything and gained little", vociferou, denunciando o acordo como uma "concession to tyranny". Estes sectores entrincheirados no aparelho de Estado norte-americano sustentam e encobrem as actividades terroristas dos grupos fascistoides cubanos, conhecidos pelas suas ligações aos meios do narcotráfico e da lavagem de dinheiro. Extorsão, furto, assalto á mão armada, homicídio, venda de estupefacientes e proxenetismo são características dos cadastros dos elementos da extrema-direita cubana. Figuras da direita cubano-americana, como o senador Rubio da Florida e outros dos sectores ultraconservadores norte-americanos servem de cobertura ao recheio intragável dos bandos armados cubanos.

As actividades ilegais da extrema-direita levam a que as autoridades norte-americanas exerçam uma apertada vigilância, recorrendo em alguns casos á cooperação com as autoridades cubanas. Mas os bandos terroristas cubanos contam, para alem dos apoios da direita ultraconservadora, com o apoio da CIA, que utiliza os bandos fascistas em operações secretas, não só contra o governo cubano, mas em operações de desestabilização dos governos bolivarianos ou nas operações conjuntas entre a CIA e os bandos de narcotraficantes. Desta forma os "cruzados da liberdade", cubanos mercenários, aparecem em todo o lado e gozam de impunidade.

Este foi o cenário em que se desenvolveu a missão dos cinco cubanos, uma operação em cooperação com o FBI. Só que para a CIA é fácil de trocar os cenários e de agentes cubanos em missão conjunta com o FBI, os cinco passaram a espiões e tudo enquanto o diabo esfregava um olho.

Será que esta facilidade impune da CIA em impor os interesses obscuros de alguns sectores elitistas da sociedade norte-americana é um sinal da senilidade do Tio Sam?

III - A questão crucial para a normalização das relações entre Cuba e os USA é o embargo comercial e financeiro. Como vai a administração Obama resolver esta questão perante um Congresso aparentemente hostil ao acordo? Consegue a administração Obama avançar e contornar essa aparente hostilidade do corpo legislativo? E será que a unanimidade sobre a normalização das relações é uma realidade no Partido Democrático, assim como a hostilidade é unanime no seio do Great Old Party?

Unanimidade e linearidade são conceitos inexistentes nos processos políticos, sociais e económicos (e também na superestrutura cultural). Unanimidade e linearidade apenas existem nos adulterados modelos simplificados da realidade (para criar produtos de venda fácil na industria da comunicação) e nas máquinas propagandísticas. Clarificando: o investimento norte-americano em Cuba não é permitido pela lei dos USA (não sei o que a lei cubana do investimento estrangeiro refere sobre o assunto, que obstáculos cria ou o que facilita. Nunca nenhum encarregado de negócios de qualquer embaixada cubana explicou-me ou elucidou-me o assunto). É uma situação deveras aberrante porque os empresários norte-americanos podem enviar donativos para Cuba, ou seja, podem enviar dinheiro para porem a funcionar pequenos negócios em Cuba, mas não podem investir em Cuba.

A venda de produtos norte-americanos em Cuba é limitada aos equipamentos agrícolas e bens para o pequeno comércio cubano. Não está contemplada, ainda, a venda de equipamentos industriais ou de projectos e materiais para as infraestruturas, por exemplo. Existe, no entanto, uma série de licenças e licenciamentos que podem ser atribuídos pelo executivo e que poderão constituir uma primeira fase do fim do embargo, permitindo gradualmente o investimento norte-americano em Cuba e ampliando a base comercial e de serviços.

Por outro lado existem determinados sectores que poderão sofrer um significativo incremento, como os produtos agrícolas. Desde 2000 que os produtos agrícolas norte-americanos desde os hortícolas aos vinícolas estão isentos do embargo. Mas existe um problema que urge resolver e que em princípio não pode ser resolvido pelo executivo de Obama mas somente pelo Congresso: a entrada de produtos cubanos nos USA. Os turistas norte-americanos podem levar para o seu país bens e produtos cubanos até 400 USD (geralmente rum e tabaco). Cuba necessita que esta questão seja resolvida, para que o comércio não seja apenas num sentido. Produtos como o açúcar são determinantes para as exportações cubanas e para o equilíbrio da balança comercial no relacionamento com os USA.

O embargo tornou-se insustentável para os seus mentores. A legislação do embargo (diversas vezes revista, tendo a lei Helmes-Burton sofrido várias emendas através dos anos) tem de ser revogada e substituída pelos saudáveis princípios do comércio entre os povos, livre e portador de princípios como o respeito mutuo. A insustentabilidade do embargo é pressentida por senadores e congressistas e a sua revogação é desejada por vastos sectores empresariais norte-americanos. E aqui entra-se na questão dos interesses de cada Estado da União e nas tensões internas que a questão do embargo transporta para republicanos e democratas, no plano institucional (Congresso e Senado).

O Arkansas, por exemplo, é um Estado governado pelos republicanos (e das tendências mais conservadoras do Great Old Party), mas favorável ao fim do embargo e á normalização das relações com Cuba. Este posicionamento do Estado do Arkansas não é único nos Estados da União que dão de maioria republicana, o que implica, no Congresso e no Senado, a não existência de uma posição unanime nos congressistas e senadores republicanos. Mas se entre os republicanos existem diferentes posicionamentos sobre Cuba, o mesmo acontece com os democratas. Muitos senadores e congressistas democratas não vêm com bons olhos a normalização das relações com Cuba. O que deixa, novamente, tudo em aberto.

IV - Existem, para além das questões comerciais e financeiras que podem ser resolvidas no imediato (a curto-prazo), sem grandes intervenções de fundo (sem necessitarem de passar no Congresso e no Senado), algumas questões politicas que também terão de serem revistas no curto-prazo. E uma delas (senão a principal, porque define o ponto de partida) é a diferente visão com que ambos os Estados interpretam o actual cenário das suas relações. Os USA consideram (e a lei Helmes-Burton é o documento base ideológico-legal da sua interpretação) que o ponto de situação é definido em função do embargo a que submeteram Cuba. O governo cubano (logo a superestrutura politica e ideológica cubana) considera o cenário como um "bloqueio", contestando a figura "embargo".

As coisas são o que são e as sabedorias populares referem, em inúmeras línguas e dialetos, conceitos de bom senso como o de "chamar os bois pelos seus nomes". A figura do "bloqueio" pode ser mais comoda para o aparelho cubano, mas a não tem nada de real, apenas de propagandístico e, com certeza, de indignação, se atendermos aos estragos causados por anos de embargo comercial e de um conjunto de sanções financeiras, que sucederam a um bloqueio, terminado depois da invasão da Baia dos Porcos.

O acordo comercial entre Cuba e a ex-URSS sobre a cana-de-açúcar foi economicamente vital para a Revolução Cubana. Na prática esse acordo era um subsídio camuflado e foi um instrumento precioso nas conquistas que o Povo Cubano alcançou durante a Revolução. Foi imprescindível para a sobrevivência da Revolução e para o projecto socialista em Cuba. Ao mesmo tempo inviabilizou o bloqueio norte-americano e o imperialismo optou, gradualmente, pelo embargo.

Esta é uma questão que deve ser abordada de forma transparente, sem factores propagandísticos. A situação económica cubana tem de ser avaliada em função da realidade existente e não da realidade pretendida (por isso é que "a verdade e só a verdade é revolucionária", frase realista escrita por Vladimir Ilitch Ulianov no primeiro decénio do seculo XX e proclamada por Ernesto Guevara nos anos 50 e 60, um percurso de Lenine a Che e que hoje no seculo XXI reassume importância e significado face á virtualização do real efectuada pelos aparelhos propagandistas do Estado e dos monopólios). O embargo imperialista norte-americano foi causador de destruição e levou á inoperância de sectores substanciais do aparelho produtivo cubano, nas não o pintem de bloqueio. Como poderia existir um bloqueio que consentisse investimento canadiano, mexicano, espanhol - só para falar dos mais significativos - ou como poderia a ODEBRECHT brasileira estar a construir, ou reconstruir, ou a optimizar infraestruturas portuárias cubanas (para referirmos apenas um exemplo entre muitos), ou como poderia a lei norte-americana permitir a exportação de produtos agrícolas para Cuba, desde 2000? Eis um bom tema que alguns encarregados de negócios colocados em embaixadas cubanas em países africanos deveriam, com a humildade e a convicção que o conhecimento confere, referir quando convocam actos públicos nas respectivas embaixadas.

Resumindo: Sanções são sectoriais e correspondem a fases de baixa e média intensidade de um conflito (nível amarelo e laranja). Embargo pode ser parcial ou total e é aplicado em fases de média e alta intensidade de um conflito (níveis laranja e vermelho) sendo formadas por conjuntos de sanções que devido ao seu prolongamento a longo prazo são tratadas e transformadas em lei pelo corpo legislador. Podem pois, suceder às Sanções (tornando-as normas) no caso de permanência do conflito, ou suceder a um bloqueio (no caso de diminuição do nível de intensidade do conflito, ou de ineficácia do bloqueio). Bloqueio implica um estado de conflito aberto de alta intensidade (situação de guerra ou conflito armado de média intensidade) sendo geralmente total (abrange todos os sectores de actividade) e implicando deslocamento de meios armados para as zonas fronteiriças, definição de áreas interditas no espaço aéreo, marítimo e/ou terrestre do território bloqueado.

Observando a situação de Cuba e seguindo o posicionamento dos USA torna-se fácil definirmos a figura que foi aplicada: o embargo comercial e sanções financeiras correspondentes.

Continua

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