JOSÉ PACHECO PEREIRA -
Público
A
França não é um modelo de liberdade de expressão, como parece nestes dias, demasiado
politicamente correctos.
No
“Je suis Charlie” e nas manifestações que se mobilizaram a partir dessa frase
há várias coisas que não oferecem dúvidas. Há algumas minorias que não pensam
assim, e que são coniventes com o terrorismo, por múltiplas razões, mas essas
não estiveram lá. Entre os que estiveram lá, a luta contra o terrorismo é
inequívoca. A luta contra a violência política é inequívoca. A luta pela
liberdade, pela maior liberdade que se vive na nossa parte do mundo, é
inequívoca. Já a luta pela liberdade de expressão parece inequívoca, mas é
muito menos.
Uma
semana depois, as autoridades francesas mostraram que “não são Charlie”
prendendo um comediante antissemita, Dieudonné M’Bala, que entre outras
barbaridades escreveu, nesse lugar onde se fazem hoje todas as asneiras, o
Facebook, a frase “Je suis Charlie Coulibaly”. Coulibaly foi o terrorista que
matou uma mulher polícia e um grupo de frequentadores da loja judaica, antes de
ser abatido pela polícia.
A
frase pode ser considerada provocatória, odienta, imbecil, e de total mau
gosto. Para os judeus, que foram o alvo do terrorista, é insultuosa. Para a
maioria das pessoas é inaceitável. Mas alguém me explica qual é a diferença
entre essa frase e muitas que se escreveram no Charlie Hebdo, igualmente
merecendo os mesmos adjectivos por parte dos seus alvos? Sim, os alvos são
diferentes, num lado, na maioria dos casos, cristãos e muçulmanos nas capas
do Charlie Hebdo, no caso de Dieudonné, judeus. Mas a estrutura da
provocação, e mesmo a sua forma e conteúdo, são idênticos. Uns podem ser
melhores na sua arte do que outros, pode-se considerar que Wolinsky, ou Cabu
têm qualidades que Dieudonné não tem. Mas não estamos a julgar qualidades ou
talentos, nem a ser dúplices em função da nossa simpatia ou antipatia com os
alvos, pois não? Porque se é assim – e de facto é assim –, a luta pela
liberdade de expressão é muito mais ambígua do que imaginamos nestes momentos
muitas vezes artificiais de unanimismo.
O
que faz Dieudonné é socialmente perigoso? Penso que sim, mas também penso que o
que fazia o Charlie Hebdo também o era, como comprovaram infelizmente
os próprios. A defesa da liberdade de expressão faz-se exactamente aqui, na
defesa do direito dos outros emitirem opiniões que me indignam, ofendem e
enojam. O único limite pode ser a lei, se a lei não for ela própria dúplice
como é o caso de França.
A
França não é um modelo de liberdade de expressão, como parece nestes dias,
demasiado politicamente correctos para o exercício de pensar. Aliás os
primeiros a sabe-lo são os assassinados do Charlie Hebdo, que, a começar
pelos mais velhos, conhecem uma longa história de processos, proibições,
sanções e ameaças. Sim, porque as ameaças não são de agora e não são exclusivas
do fundamentalismo muçulmano. Os mesmos moderados muçulmanos que marcharam em
Paris, já tinham processado o Charlie Hebdo, fazendo companhia ao governo
francês, a Le Pen, a católicos conservadores, a políticos franceses, por aí
adiante. Processar, ou mesmo ameaçar de boca, não é a mesma coisa do que matar
a tiro de Kalashnikov, mas havia uma multidão lá fora a pensar que pelo menos
uma boa bofetada “estavam mesmo a pedi-la”. Ou, uma boa e definitiva proibição,
como aconteceu com o Hara-Kiri, em nome da paz da alma de De Gaulle.
Mas
a prisão de Dieudonné remete para outros problemas da lei francesa, que poucos
levantam e ainda mais agora. É que em França é proibido escrever artigos e
livros de conteúdo antissemita, e não coloco aspas como devia fazer, para
mantar a classificação bem aberta, mesmo nas suas ambiguidades. Ainda mais,
existe uma condenação legal, a chamada Lei Gayssot, que criminaliza a
“contestação de crimes contra a humanidade”, e que já levou alguns a tribunal.
É o caso do chamado “negacionismo”, a negação de que houve um holocausto, que tenha
existido um assassinato em massa de judeus antes e durante a Segunda Guerra.
Aliás isto abre uma caixa de Pandora, como já se viu com a exigência da lei
punir o “negacionismo” do genocídio armeno pela Turquia, também pedida por
muitos armenos.
O
antissemitismo é, para usar uma velha classificação leninista, “imbecil”, e o
ódio aos judeus uma atitude altamente perniciosa. Em países suspeitos como a
França, cuja história durante a guerra foi de perseguição aos judeus, o
antissemitismo é particularmente odiento. Considero-o uma atitude condenável,
sem “mas” e sem reservas. Mas não posso achar um crime de opinião escrever um
escrito antissemita, por muito que me incomode, e por muito que ele possa ser
perigoso. A censura é sempre pior.
O
mesmo acontece com a condenação pela lei francesa das teorias de Faurrison e
seus discípulos, o chamado “negacionismo”. O “negacionismo” é “história”-vudu,
ou seja nada tem a ver com a história por muito aparato “científico” que o
adorne. É uma teoria política antissemita, que acrescenta o agravo ao insulto,
ao negar a milhões de famílias a “memória” e as razões das mortes e todas as
outras violências cometidas contra os judeus. Mas não concebo que estes
escritos e estas opiniões possam ser consideradas crimes e levar os seus
autores à cadeia.
Escritos
perigosos há muitos e eu como muitos já os escrevemos. O que é que significa
fazer a apologia da violência revolucionária numa sociedade democrática? O que
é uma revolução? Tiros, mortos, prisões, pancada, como lembrava o velho Mao
Zedong, uma revolução não é um banquete de gala. Pode-se encontrar, e eu
conheço-as a todas, as argumentações para a diferenciar o apelo à violência
assente numa base social e política, mesmo nacional, diferente do argumento
étnico, mas nós só valorizamos essa diferença e a “sentimos” como menos
perigosa porque o ímpeto revolucionário nas sociedades ocidentais não tem hoje
muito significado e não mete medo a ninguém. Pelo contrário, os ódios étnicos
parecem muito mais significativos e perigosos. Mas, em democracia, o apelo à
violência cabe na liberdade de expressão, a não ser que se proíba milhares de
pequenos escritos, jornais, panfletos.
A
tragédia dos assassinatos em França tem a ver com um desafio maior, que pode
ser classificado de cultural e “civilizacional”. Não é agora a altura de
discutir a tese, mais amaldiçoada do que conhecida, de Huntington sobre o
“choque de ciclizações”, nem precisamos dela para definir as questões sociais,
comportamentais, culturais, históricas e políticas em causa. Mas a ideia de
que a natureza de alguns conflitos contemporâneos opõem elementos que são
culturais, religiosos e de modo de vida, e que isso possa ser descrito como
“civilizacional”, é mais explicativa do que o wishfull
thinking multicultural.
Quem
foi morto? Vários jornalistas e desenhadores radicais e iconoclastas, vários
polícias, um deles muçulmano e que podia perfeitamente detestar oCharlie Hebdo,
e um conjunto de jovens judeus que estavam a fazer compras num
loja kosher. Franceses e em França, em Paris, uma das sedes cosmopolitas
do mundo “ocidental”, vivendo o modo de vida que reconhecemos como nosso,
incluindo uma liberdade de expressão que vai até à blasfémia e ao nojo racista.
Porque, quem não quer, não compra o Charlie Hebdo ou não vai ver os
espectáculos de Dieudonné. Foi isso que foi atacado, é isso que temos de
defender e implica “ser Charlie” e protestar com a prisão de Dieudonné.
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