quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O DEDO NA FERIDA DE TIMOR-LESTE. O BRANQUEAMENTO DE XANANA GUSMÃO



Beatriz Gambôa, Díli

Timor-Leste está ferido e sangra. Uma nova nação que durante o colonialismo de volta e meia era sangrada por Portugal, tendo de intervalo a sangria causada pela invasão japonesa durante a II Guerra Mundial, de que já lá vão 70 anos agora assinalados. A acrescentar ao desaire intermitente os 24 anos de ocupação indonésia que levaram mais de 200 mil vítimas para valas comuns e não comuns cuja localização, na maior parte dos casos são completamente desconhecidas. Carregados de traumas e cicatrizes de tudo isso nos libertámos e fundámos uma nova nação. Com árdua luta e muito sofrimento. Perdemos muitos entes queridos. Nova nação, que lindo e pequeno conjunto de palavras. Nova nação.

Pretendíamos que fosse quase o Éden mas enquanto nação livre e independente pouco faltou para descermos novamente ao inferno por condução negligente, até criminosa, de um presidente da República que não hesitou em pôr em marcha um golpe de estado e derrubar um governo legítimo. Xanana Gusmão, idolatrado mundialmente por via de uma máquina de propaganda muito bem oleada, foi o presidente desse tal golpe de estado em 2005 e agitação consequente até 2007. Novamente vidas se perderam. Pelo menos meia centena. Também nesse período Timor-Leste sangrou.

Depois implantaram a paz podre recheada de corrupção e de nepotismo. Ao longo dos governos de Xanana Gusmão muito se gritou de várias formas que a corrupção estava a dominar o país e a roubar os recursos destinados ao povo. De nada serviu. O primeiro-ministro Xanana Gusmão dizia que não e maltratava ou demitia (fazia com que se demitissem) os que mais próximos dele se atreviam a referir publicamente que sim, que a corrupção progredia em ritmo galopante. Que não, afirmava Xanana Gusmão. Tragam-me provas. Mas o quê? O medo não permitia apontar. Também, as dificuldades em reunir essas provas eram evidentes. A justiça não funcionava e ainda agora raramente funciona. Mas certo é que o enriquecimento ilícito se passeia por Timor-Leste, mais por Díli e pelo estrangeiro. Vimos num ápice políticos e seus familiares e amigos enriquecerem sem que a lotaria os tivesse contemplado. Até Xanana Gusmão enriqueceu, pelo visto. Que se saiba também não foi contemplado pela lotaria.

Contudo os vencimentos dos ministros e afins não são proporcionais e propícios a tantos sinais exteriores de enriquecimento. Xanana Gusmão sempre se apercebeu disso. Que os que o rodeavam enriqueciam a olhos vistos. Vistos pelos timorenses e pelos estrangeiros. As suas vidas faustosas assim determinavam. Que fez Xanana? Nada. Ou tudo pelo seu vértice de interesses. Familiares dele também estão na lista dos que foram contemplados com grandes recursos financeiros, exibidos e evidentes a olho nu. Não pela sorte na lotaria.

A corrupção é a nova sangria de Timor-Leste. Urge meter o dedo na ferida, desinfetar para que sare. Timor-Leste sangra. Sangra por o seu suposto grande irmão e herói nacional se incluir naqueles que obstruíram a justiça para que atos ilícitos investigados e a investigar não fossem mais além. Investigações onde ele também estava incluído. Para isso cortou o mal pela raiz, como se sabe. Expulsou todos aqueles que estavam a ter a ousadia de investigar os seus pares no governo e a ele próprio. Os juízes e outros elementos judiciários foram expulsos de Timor-Leste. A maior parte portugueses. Teve a sorte de deparar em Portugal com um governo que pôs o país à venda e que nem por isso defendeu a dignidade dos seus compatriotas e profissionais de justiça. Por aí não aconteceu mal ou resistência alguma que pusesse em causa a falta de decência e lisura de Xanana. O que não aconteceria com um governo português patriótico, democrático e honesto.

Entretanto o mal estava feito. Talvez tenha sido pior a emenda que o soneto, como em Portugal se diz (e eu, além de timorense, também sou portuguesa). A reação descabida de Xanana Gusmão ao expulsar os juízes potenciou a sua culpabilidade nos eventuais crimes de que um dia se verá acusado se existir um pingo de justiça e coragem em Timor-Leste. Quem não deve não teme. Também se diz em Portugal. A reação de Xanana foi a de quem deve e por isso temeu. Usou o poder absoluto e inconstitucional enquanto primeiro-ministro para aniquilar as investigações e respetivos processos que certamente os levariam a tribunal. Talvez à cadeia.

Timor sangra. Por muito que seja doloroso temos de pôr o dedo na ferida. Para os timorenses o ocorrido ao longo de todos estes anos de governação de Xanana, no que diz respeito à corrupção e nepotismo, é uma ferida. Timor-Leste sangra e a causa do ferimento provém de um filho de Timor que perdeu a dignidade e tem vindo a fazer sangrar um país inteiro. Em variados aspetos.

Para travar o ímpeto da contestação Xanana procurou antecipar-se. E antecipou-se. Negociou e saltou do governo que sempre dirigiu e onde se alojou a corrupção. E assim, sem eleições, um novo governo tomou posse, com Xanana Gusmão a dirigi-lo apesar de não ser primeiro-ministro. O ministro Xanana terá sempre a última palavra sobre o rumo do governo. Certamente que também com as previsiveis interferências no poder judicial e no estancar das averiguações e processos que lhe possam ser instruídos por eventuais crimes cometidos.

Deixemos de sofismas. Xanana Gusmão é o primeiro-ministro de Timor-Leste. Rui Araújo faz apenas de conta que o é. Estranhamente a negociação de Xanana Gusmão com altos responsáveis da Fretilin permitiu que por agora Xanana Gusmão se salvasse e construísse este volte-face. Rui Araújo é uma pessoa excecional e muito estimado, honesto. Araújo é objeto de surpresa ao ter aceite parecer que é quem não é. Ou não se apercebeu ainda disso. Se assim é o que fará Araújo quando de tal se aperceber? Como poderá ser explicado que afinal o primeiro-ministro de Timor-Leste é Gusmão?

Em Timor-Leste só ignora a realidade quem se esforça muito por isso ou, então, por ingenuamente não compreender que o que se está a passar no país é a governação de um governo ilegítimo. A falta de cultura democrática que existe entre as populações ajuda bastante os que avançaram com o projeto e consequente o empossar deste governo.

O primeiro-ministro, Gusmão, continua no governo para manter a sua imunidade ativa com a proteção da maioria de deputados que tem no parlamento. Entretanto, mais de dois anos vão passar até às próximas eleições e ele acabará por sair impune de imensas ilegalidades cometidas em benefício de amigos e familiares, há indícios que até dele próprio – como foi afirmado pelas vítimas de expulsão que estavam dentro dos meandros de algumas das ilegalidades cometidas. 

Urge pôr o dedo na ferida. Por muito doloroso que é, apesar disso, temos de pôr o dedo na ferida, estancar o sangue, tratar e esperar que sare. Os timorenses e os milhares de amigos estrangeiros que contribuíram para a libertação e formação da nova nação têm todo o direito de exigir que seja construído um Timor-Leste com cicatrizes mas saudável. Democrático na realidade do nosso quotidiano. Sem que nos cruzemos com desonestos de alto gabarito. Muito menos que sejamos de algum modo governados, dirigidos ou explorados por eles.

Sem comentários:

Mais lidas da semana