quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Portugal. SENHORAS E SENHORES, O GRANDE HOUDINI



António Galamba* - jornal i, opinião

Há um dia em que sabemos que o valor facial da ilusão nada tem a ver com o valor real. Esse dia tem sido sempre tarde demais

Não é da magia do grande ilusionista Harry Houdini que falamos, mas da deriva ilusionista de Pedro Passos Coelho, de Paulo Portas e da ainda maioria PSD/CDS. Ao longo dos últimos quatro anos, a maioria PSD/CDS alimentou a ilusão da austeridade com resultados, por contraste com o que designaram de "ilusão do despesismo, do viver acima das possibilidades".

O problema é que, na política como na vida, há um momento em que a realidade se sobrepõe à ilusão. E por maior Houdini que Pedro Passos Coelho julgue poder ser, os factos estão aí a sublinhar que a narrativa do governo tem pés de barro, tal é a sua fragilidade.

Na Constituição, o governo é responsável pela "política geral do país" que, para a maioria PSD/CDS, se resume à administração da austeridade, à gestão corrente das oportunidades que lhe vão surgindo no caminho e ao mascarar da falta de alma, da débil coesão da coligação alavancada em agendas pessoais e da ausência de comando no governo. Enquanto esteve focado no programa de empobrecimento do país, no guião que a troika lhe conferia, era inquestionável aquele brilhozinho nos olhos, misto de obrigação e de sonho; agora limita-se a gerir o esforço pré-eleitoral, sem alma. E, no entanto, desdobra-se pelo país a sustentar a ilusão com a apresentação de powerpoints de propaganda, enquanto desespera pelo oxigénio de eventuais folgas das políticas europeias e pelo maná de optimismo que os fundos comunitários podem injectar na economia.

Mas a realidade não dá descanso aos ilusionistas do governo e da maioria.

Criaram a ilusão da despartidarização das chefias na administração pública através de alegados concursos públicos e de uma suposta entidade independente de recrutamento, a CRESAP, mas, em 90% dos casos, o dirigente em funções é um dos três finalistas apresentados ao ministro da tutela. Na segurança social, 14 dos 18 nomeados para as direcções dos centros distritais são militantes do PSD e do CDS. É claro que, para iludir, há sempre um socialista para colocar na lapela da excepção à regra.

Depois de terem falado em "milagre económico" e nas exportações como "o porta-aviões do crescimento económico", em 2014, a balança comercial teve o pior registo desde 2009; as exportações aumentaram 1,9% (têm aumentado sempre desde 2009), mas desaceleraram face ao aumento de 2013 (4,5%), e o PIB aumentou 0,7%, abaixo da previsão do governo, que era de 1%. Em 2014, a dívida pública portuguesa terá superado as previsões do governo (127,2%), situando-se entre os 127,9% e os 128,7% do PIB. A mesma UTAO duvida que, em 2014, o combate à fraude tenha rendido os 747 milhões de euros enunciados na narrativa governamental.

Além da ilusão da narrativa do aluno cábula bem-comportado em que o governo português transformou a participação de Portugal na União Europeia, por oposição aos insurrectos gregos, são várias as contradições entre o governo e a realidade.

Em 29 de Julho de 2014, o PS defendeu a troca de dívida do FMI por dívida do mercado. O governo "não via ganhos" nessa solução, mas agora, nos cálculos da Comissão Europeia, poupará 500 milhões de euros e ajudará à sustentabilidade da dívida pública.

Desde 2011, enquanto aumentava o desemprego e o risco de pobreza e se multiplicavam as dificuldades das famílias, os apoios sociais às crianças, aos desempregados e aos idosos foram diminuindo. E, no entanto, proliferou no país a lógica caritativa das cantinas sociais em detrimento dos direitos sociais. Um casal com dois filhos recebe, no máximo, 374,1 euros de rendimento social de inserção, mas uma IPSS pode receber até 600 euros por mês para fornecer almoço e jantar a essa família e ainda cobrar um euro por refeição.

O drama das ilusões, mesmo com o grande Houdini, é que há um dia em que correm mal. Apesar da protecção dos tutores da austeridade, a ilusão da consolidação orçamental alcançada e das alegadas reformas realizadas e a fragilidade das melhorias antecipam esse dia. O dia em que sabemos que o valor facial da ilusão nada tem a ver com o valor real. Esse dia tem sido sempre tarde demais, pós-eleitoral. Pode ser que, em 2015, os portugueses não embarquem em mais ilusões. Os Houdinis já tiveram o seu tempo, não é o nosso.

*Membro da Comissão Política Nacional do PS. Escreve à quinta-feira

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