Carvalho
da Silva – Jornal de Notícias, opinião
A
Comissão Europeia comporta-se com Portugal como um médico que após ter
receitado a um paciente grandes doses de medicamentos para emagrecer e de ter
assegurado que ele os tomou, ao observá-lo proclama candidamente: estou muito
preocupado com a sua magreza. Chega de hipocrisia e irracionalidade! Basta de
declarações de governantes (e não só), afirmando que estamos no bom caminho e
melhor do que há quatro anos. A União Europeia não está afetada pelas
fragilidades de um ou outro país, mas sim por uma epidemia de brutais políticas
de austeridade impostas pelo neoliberalismo fundamentalista reinante, que
procura a todo o custo impedir qualquer alternativa e que nos pode conduzir a
um grave retrocesso social, cultural e civilizacional. Dezoito dos 28 países da
União estão colocados nos quatro patamares de observação face aos seus
"desequilíbrios", mas mesmo outros estão "doentes": a
Alemanha, que até vai aos mercados buscar dinheiro com juros negativos, está
bloqueada no seu processo de desenvolvimento. As políticas seguidas empobrecem
o nosso país, contudo aí está de novo a Comissão Europeia a clamar contra o
salário mínimo nacional, contra a quase moribunda contratação coletiva e a
solicitar novos programas de "reformas estruturais ambiciosas".
No
presente, como bem mostra a situação que a Grécia atravessa, as vias para a
saída do atoleiro são estreitas, mas existem e devem ser prosseguidas: correr
com os governos serventuários e colaboracionistas, travar e inverter a
austeridade, rebentar com as grilhetas da dívida e dos seus custos - as dívidas
terão de ser reestruturadas e é indispensável fazer séria discussão sobre como
permanecer ou como sair do euro -, afirmar como prioritário o combate à pobreza
e pela proteção das pessoas, travar as batalhas possíveis para que o dinheiro
não fique nos circuitos bolsistas e especulativos, ou seja, chegue às pessoas e
às empresas que criam emprego e produzem bens e serviços úteis.
A
sociedade portuguesa está muito mais pobre e desprotegida, não apenas porque houve
cortes brutais na proteção social, mas também porque a economia foi destruída
e/ou reestruturada para ser entregue aos interesses associados aos nossos
credores, porque quase 1/7 da população ativa, e nela uma grande parte da nossa
melhor geração, teve de emigrar, porque se destruiu emprego, porque se impôs
uma brutal transferência de rendimentos do trabalho para o capital, sem
qualquer ganho direto ou indireto na criação de emprego.
Oficialmente
temos 389 mil desempregados sem subsídio de desemprego e dezenas de milhares de
"desencorajados". Tudo tem de ser feito para se criar emprego, pois
só essa via poderá resolver o problema. Os subsídios de desemprego e outras
prestações são direitos fundamentais e a sua reposição significa milhares de
milhões de euros por ano. Cerca de 27% da população está em situação de
pobreza. É uma vergonha e um drama. As afirmações à Robin dos Bosques de Passos
Coelho quanto aos sacrifícios feitos pelos portugueses são desmentidas pela
Comissão Europeia, quando esta declara que o corte nos apoios sociais
"afetou desproporcionalmente os mais pobres" e que as famílias com
crianças foram "particularmente afetadas pela pobreza e exclusão
social".
O
país precisa de uma política que articule o combate à pobreza, com fortes
medidas de criação de emprego digno e sustentado, com uma muito mais justa
distribuição da riqueza. As políticas e práticas de solidariedade que respondem
a carências gritantes são necessárias, mas o país não pode ter um sistema de
proteção social assente estrategicamente no assistencialismo de emergência e
até no fazer da pobreza um negócio.
Como
se demonstra num estudo do Observatório sobre Crises e Alternativas 1 , o
Estado social está a ser perigosamente reconfigurado em nome de uma pretensa
contenção da despesa pública. O Governo está sub-repticiamente a criar um outro
sistema de proteção social que estigmatiza os desempregados e todos os que
necessitam de mais proteção, transporta mais encargos para as famílias, retira
os direitos às pessoas, que coloca na dependência da estratégia e da ação de
organizações não-governamentais a prestação de direitos fundamentais que cabe
ao Estado garantir.
É
preciso encetar um profundo debate para que a pobreza e a desproteção não
continuem a aprofundar-se.
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