Rui
Peralta, Luanda
Declaração
Universal dos Direitos do Homem
"A
Assembleia Geral
Proclama
a presente Declaração dos Direitos do Homem como o ideal comum, onde todos os
povos e nações disponibilizem os seus esforços, para que, tanto os indivíduos
como as instituições, se inspirem constantemente nela e promovam, por meio do
ensino e da educação, o respeito destes direitos e liberdades e lhes assegurem,
mediante providências progressivas de carácter nacional e internacional, o seu
reconhecimento e aplicação universais e efectivos, tanto entre os povos dos
Estados Membros, como entre os dos territórios onde exercem jurisdição os ditos
Estados."
O
resgate do Futuro
Para
que a Declaração Universal dos Direitos Humanos seja o "ideal comum" será
necessária, ainda, uma longa e árdua luta, travada em várias frentes e em diferentes
contextos. Este objectivo torna-se mais difícil quando assumido em África, maioritariamente
composta por Estados que obtiveram a sua independência na segunda metade do
século XX, em alguns casos - a exemplo de Angola, Moçambique e Guiné -
obtida através de uma prolongada Guerra de Libertação Nacional (no caso de
Angola dividida em duas fases: o combate ao colonial-fascismo, numa primeira
fase, e o combate contra o imperialismo (cujos Estados agenciados - a Africa do
Sul e o Zaire, actual RDC, ou seja o apartheid e a "autenticidade", a
etnosofia bóer e a bantu - atacaram militarmente Angola), numa segunda fase,
durante e após a independência. Existiu ainda, em Angola, uma terceira fase,
caracterizada pelo combate a um inimigo interno financiado pelo imperialismo e
pelas forças neocolonialistas, embora esta fase estivesse já ligada aos
mecanismos de acumulação de Capital.
Colonialismo
e guerra foram os dois factores-chave que estão na origem dos graves problemas
estruturais de Angola. São estes dois factores que asfixiaram a cultura democrática
e estrangulam a praxis política democrática da nação. Os cinco séculos de
colonialismo caracterizaram-se por uma dominação brutal, anti-humanista, que
tentou reduzir o Homem angolano à sub-existência da servidão. A fase final do
colonialismo (o colonial-fascismo, que vigorou entre 1928 e 1974, tendo na sua
ultima década uma tentativa de restruturação que atingiu o seu auge na
"Primavera marcelista" - montanha que pariu um rato - e que em Angola
(como em Moçambique) caracterizou-se por um período de agudização da luta de
classes e da luta de libertação nacional, ao mesmo tempo que o
colonial-fascismo procedia a alterações diversas que tinham como objectivo o
aumento da sua base de apoio e de sustentação.
Praxis
democrática e cultura democrática, consciência cívica e cidadania foram valores
inexistentes durante o colonialismo e esta inexistência foi a sua mais pesada
herança. A repressão, a censura e a tortura preencheram esta ausência,
fundamental para o colonial-fascismo manter o seu domínio. A sociedade colonial
era brutal e alienatória, fechada à participação cívica, paternalista e assente
na descriminação social e no racismo. Angola - a joia do Império - aparecia
inserida naquele universo concentracionário que ia do Minho a Timor.
Analfabetismo,
crianças sem acesso ao ensino, destruição das culturas nacionais, impostos
sobre os camponeses, aumento dos horários de trabalho, apartheid social e
racial (com impacto particular na educação. O apartheid social é ainda hoje -
40 anos depois da Independência Politica - visível e de grande impacto na
Educação, situação agravada pelos colégios privados, ou pelo comportamento das
elites - copiosamente imitadas pela parca classe média - de enviar os filhos e
sobrinhos para o estrangeiro, utilizando verbas de empresas publicas, ou seja
erário publico), expulsão dos bairros africanos para fora das cidades (também
um sintoma dos dias de hoje, com as actuais concepcões urbanas neocolonialistas
- a cidade pós-colonial é, afinal, a cidade pós-colonial - e que são um
indicador negativo dos índices de desenvolvimento), quase inexistência de
associações sindicais - ou pelo menos a sua total subordinação a interesses
alheios, como o Estado, o patronato e o(s) partido(s) - ou organizações autónomas
de trabalhadores, são alguns dos factores gerados pelo colonialismo, herdados
pela independência e agravados pela guerra e que uma dúzia de anos de Paz
comprovaram que a vontade politica em resolvê-los não passa de um mero item de
propaganda eleitoralista.
Cinco
séculos de colonialismo e quatro décadas de guerra "anestesiaram" a
sociedade angolana e fizeram do "Homem Novo" um homúnculo alienado. A
difícil caminhada para a cidadania plena, para sair do trilho pantanoso, do
lamaçal, necessita de trilho firme, senão o Homem Novo nunca conseguirá
erguer-se, acabando, esgotado, por envelhecer na lama. Esse trilho firme é constituído
por três componentes vitais para qualquer sociedade: Educação, Saúde e
Habitação condigna. Três direitos consignados e uma Nova Cultura Politica são
ferramentas sem as quais não é possível construir o futuro.
Resgatar
valores só é possível através do resgate do futuro, para que os valores
resgatados possam ser efetivados na cidadania e confrontados com novas
realidades, transmitindo nesse confronto a mensagem dos antepassados. Cinco
seculos de colonialismo mercantilizaram a tradição. O resgate do futuro permitirá
construir a consciência cívica e compreender as lições da História. Construir o
Homem Novo com ideias velhas, é reconstruir um cadáver. A História não é
passado morto, vive-se, recorda-se e é lição aprendida, que nunca deve ser
esquecida, adulterada ou amputada. A Historia é para ser recordada na verdade,
nunca no mito que a obscurece, amputa e adultera...
Resgatar
o futuro para que os nossos filhos e netos possam usufruir das lições dos avôs
que em busca de um mundo melhor deram-nos o exemplo: o futuro constrói-se
agindo no presente.
O
Livru
Constituição
da Republica de Angola
Titulo
II (Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais)
Capitulo
III (Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais)
Artigo
79.°
(Direito
ao ensino, cultura e desporto)
1.
O Estado promove o acesso de todos á alfabetização, ao ensino, á cultura e ao
desporto e ao desporto, estimulando a participação dos diversos agentes
particulares na sua efectivação, nos termos da lei.
(...)
3. A iniciativa particular e cooperativa nos domínios do ensino, da cultura e
do desporto exerce-se nas condições previstas na lei.
Artigo
80.°
(Infância)
1.
A criança tem direito à atenção especial da família, da sociedade e do Estado,
os quais, em estreita colaboração, devem assegurar a sua ampla protecção contra
todas as formas de abandono, discriminação, opressão, exploração e exercício
abusivo de autoridade, na família e nas demais instituições.
2.
As políticas públicas no domínio da família, da educação e da saúde devem
salvaguardar o princípio do superior interesse da criança, como forma de
garantir o seu pleno desenvolvimento físico, psíquico e cultural.
(...)
Artigo
81.°
(Juventude)
1.
Os jovens gozam de protecção especial para efectivação dos seus direitos
económicos, sociais e culturais, nomeadamente:
a)
No ensino, na formação profissional e na cultura;
(...)
O
livro escolar esvoaça pelo mercado. O gratuito tem preço e o preço de capa é
apenas valor da capa. O livro escolar, quase sempre pobre de conteúdo pedagógico,
concebido para garantir a manutenção da ignorância e não a descoberta dos
prazeres do saber, transforma-se em "livru". "Aki ah
livru", reza um cartaz tamanho A4, afixado num muro, algures nos subúrbios
de Luanda, frente a uma instituição publica e com uma unidade da Policia
Nacional na esquina oposta.
O
encarregado de educação pagou os "livrus" dos filhos... Naquele mês,
em casa, só houve uma refeição...
O
meo páîs
Constituição
da Republica de Angola
Titulo
I
(Princípios
Fundamentais)
Artigo
1.°
(Republica
de Angola)
Angola
é uma Republica soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana
e na vontade do povo angolano, que tem como objectivo fundamental a construção
de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e
progresso social.
O
meo páîs nao tem agua da rede nem enérgia na rede k só tem kuando a tia Jacinta
estende o fio. A energia é da edêle e agua compramos cô bidon aos cubanos do
camion.
Vou
ir na escola a pé. À livrus k nô tenho e usu livru emperestadu ou cópia memo.
Kuando às aula acabão vou vir a pé para o kubiculo. Fiko là cô os meos manus,
pois o papà e a mamà foram no trabalho e a mamà dêmóra k vai ir na igreja e o
papà kuando vem no kubiculo pergunta pla mamà e o manu diz ainda.
O
B.I.
Declaração
Universal dos Direitos do Homem
Artigo
15
1.
Toda a pessoa tem direito a uma nacionalidade.
2.
Ninguém pode, arbitrariamente ser privado da sua nacionalidade, nem do direito
de mudar de nacionalidade.
Januária
dos Anjos, 36 anos, natural do Huambo, terra da mãe. O pai foi morto na guerra
e a mãe com ela pela mão se meteu na estrada para Luanda. Januária sabe ler mas
só agora anda na escola. Trabalha em casa de branco estrangeiro. Tem filho e
marido. Tem casa e cartão de eleitor, mas não tem BI porque não tem certidão
nem assento nem mais 30 mil kwanzas para tratar da situação. Uma vez pagou mas
o kota da conservatória adoeceu e morreu sem fazer o documento. O marido tem BI
mas quando vai tratar para ela pedem-lhe sempre mais um documento e mais
dinheiro. A casa da Januaria não foi visitada pelo censo...
Vítor
Tibúrcio, 20 anos, lava carros e presta serviços vários ali no Bairro Operário.
O pai trabalha na Sonangol mas não vive (nem nunca viveu) com a mãe. O Vítor
não tem BI, nem certidão, tem cartão de eleitor e foi pouco â escola. Lê e
escreve, é esperto e desenvolto e não se mete em assunto. Não foi
visitado pelo censo. Tem a sua clientela fixa, grande maioria no prédio Carlos
Dias, no B.O.
Joana
Canelas. Natural do Quito, Bié. Tem 27 anos, não tem BI, nem certidão ou
assento, nem cartão eleitor. Vende cerveja e bolacha na porta de casa. Tem
namorado da UGP (guarda presidencial). Foi visitada pelo censo. O namorado diz
que vai tratar do assunto mas que tem de esperar pelo kumbu. Estão a pedir 30
mil, lá na conservatória e é um kota vizinho...
Carmino
Teófilo de Sousa. 15 anos. Vive com a tia, irmã da mãe. Estuda mas não tem BI.
Nasceu no Cunene. A mãe pisou mina e morreu. O pai o trouxe para Luanda,
deixou-o na tia e foi trabalhar para a tuga. Nunca veio, mas envia algum
dinheiro que a tia diz que não chega para nada. A tia já tentou tratar do
documento. Quando lhe pediram dinheiro, na conservatória, fez barulho (tem
decreto do ministério, gritava a tia) e foi recebida pela senhora que era chefe
lá na conservatória. A tia do Carmino explicou o assunto, mas a senhora apenas
disse: "Não posso, assim. E se ele for estrangeiro? Não minha filha fala
bem que a gente resolve"...
Multiplicai
por milhares para saber quantos são ou talvez um novo censo onde conste o
BI para o cidadão nacional e o passaporte ou cartão de residente para o cidadão
estrangeiro...
Bibliografia
Constituição
da Republica de Angola Imprensa Nacional - EP, Luanda, 2010
Declaração
Universal dos Direitos do Homem UN
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