segunda-feira, 2 de março de 2015

MBALOMBO



Rui Peralta, Luanda

Declaração Universal dos Direitos do Homem

"A Assembleia Geral

Proclama a presente Declaração dos Direitos do Homem como o ideal comum, onde todos os povos e nações disponibilizem os seus esforços, para que, tanto os indivíduos como as instituições, se inspirem constantemente nela e promovam, por meio do ensino e da educação, o respeito destes direitos e liberdades e lhes assegurem, mediante providências progressivas de carácter nacional e internacional, o seu reconhecimento e aplicação universais e efectivos, tanto entre os povos dos Estados Membros, como entre os dos territórios onde exercem jurisdição os ditos Estados."

O resgate do Futuro

Para que a Declaração Universal dos Direitos Humanos seja o "ideal comum" será necessária, ainda, uma longa e árdua luta, travada em várias frentes e em diferentes contextos. Este objectivo torna-se mais difícil quando assumido em África, maioritariamente composta por Estados que obtiveram a sua independência na segunda metade do século XX, em alguns casos  - a exemplo de Angola, Moçambique e Guiné - obtida através de uma prolongada Guerra de Libertação Nacional (no caso de Angola dividida em duas fases: o combate ao colonial-fascismo, numa primeira fase, e o combate contra o imperialismo (cujos Estados agenciados - a Africa do Sul e o Zaire, actual RDC, ou seja o apartheid e a "autenticidade", a etnosofia bóer e a bantu - atacaram militarmente Angola), numa segunda fase, durante e após a independência. Existiu ainda, em Angola, uma terceira fase, caracterizada pelo combate a um inimigo interno financiado pelo imperialismo e pelas forças neocolonialistas, embora esta fase estivesse já ligada aos mecanismos de acumulação de Capital.

Colonialismo e guerra foram os dois factores-chave que estão na origem dos graves problemas estruturais de Angola. São estes dois factores que asfixiaram a cultura democrática e estrangulam a praxis política democrática da nação. Os cinco séculos de colonialismo caracterizaram-se por uma dominação brutal, anti-humanista, que tentou reduzir o Homem angolano à sub-existência da servidão. A fase final do colonialismo (o colonial-fascismo, que vigorou entre 1928 e 1974, tendo na sua ultima década uma tentativa de restruturação que atingiu o seu auge na "Primavera marcelista" - montanha que pariu um rato - e que em Angola (como em Moçambique) caracterizou-se por um período de agudização da luta de classes e da luta de libertação nacional, ao mesmo tempo que o colonial-fascismo procedia a alterações diversas que tinham como objectivo o aumento da sua base de apoio e de sustentação.

Praxis democrática e cultura democrática, consciência cívica e cidadania foram valores inexistentes durante o colonialismo e esta inexistência foi a sua mais pesada herança. A repressão, a censura e a tortura preencheram esta ausência, fundamental para o colonial-fascismo manter o seu domínio. A sociedade colonial era brutal e alienatória, fechada à participação cívica, paternalista e assente na descriminação social e no racismo. Angola - a joia do Império - aparecia inserida naquele universo concentracionário que ia do Minho a Timor.

Analfabetismo, crianças sem acesso ao ensino, destruição das culturas nacionais, impostos sobre os camponeses, aumento dos horários de trabalho, apartheid social e racial (com impacto particular na educação. O apartheid social é ainda hoje - 40 anos depois da Independência Politica - visível e de grande impacto na Educação, situação agravada pelos colégios privados, ou pelo comportamento das elites - copiosamente imitadas pela parca classe média - de enviar os filhos e sobrinhos para o estrangeiro, utilizando verbas de empresas publicas, ou seja erário publico), expulsão dos bairros africanos para fora das cidades (também um sintoma dos dias de hoje, com as actuais concepcões urbanas neocolonialistas - a cidade pós-colonial é, afinal, a cidade pós-colonial - e que são um indicador negativo dos índices de desenvolvimento), quase inexistência de associações sindicais - ou pelo menos a sua total subordinação a interesses alheios, como o Estado, o patronato e o(s) partido(s) - ou organizações autónomas de trabalhadores, são alguns dos factores gerados pelo colonialismo, herdados pela independência e agravados pela guerra e que uma dúzia de anos de Paz comprovaram que a vontade politica em resolvê-los não passa de um mero item de propaganda eleitoralista.

Cinco séculos de colonialismo e quatro décadas de guerra "anestesiaram" a sociedade angolana e fizeram do "Homem Novo" um homúnculo alienado. A difícil caminhada para a cidadania plena, para sair do trilho pantanoso, do lamaçal, necessita de trilho firme, senão o Homem Novo nunca conseguirá erguer-se, acabando, esgotado, por envelhecer na lama. Esse trilho firme é constituído por três componentes vitais para qualquer sociedade: Educação, Saúde e Habitação condigna. Três direitos consignados e uma Nova Cultura Politica são ferramentas sem as quais não é possível construir o futuro.

Resgatar valores só é possível através do resgate do futuro, para que os valores resgatados possam ser efetivados na cidadania e confrontados com novas realidades, transmitindo nesse confronto a mensagem dos antepassados. Cinco seculos de colonialismo mercantilizaram a tradição. O resgate do futuro permitirá  construir a consciência cívica e compreender as lições da História. Construir o Homem Novo com ideias velhas,  é reconstruir um cadáver. A História não é passado morto, vive-se, recorda-se e é lição aprendida, que nunca deve ser esquecida, adulterada ou amputada. A Historia é para ser recordada na verdade, nunca no mito que a obscurece, amputa e adultera...

Resgatar o futuro para que os nossos filhos e netos possam usufruir das lições dos avôs que em busca de um mundo melhor deram-nos o exemplo: o futuro constrói-se agindo no presente.

O Livru

Constituição da Republica de Angola
Titulo II (Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais)
Capitulo III (Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais)

Artigo 79.°
(Direito ao ensino, cultura e desporto)

1. O Estado promove o acesso de todos á alfabetização, ao ensino, á cultura e ao desporto e ao desporto, estimulando a participação dos diversos agentes particulares na sua efectivação, nos termos da lei.
(...) 3. A iniciativa particular e cooperativa nos domínios do ensino, da cultura e do desporto exerce-se nas condições previstas na lei.

Artigo 80.°
(Infância)

1. A criança tem direito à atenção especial da família, da sociedade e do Estado, os quais, em estreita colaboração, devem assegurar a sua ampla protecção contra todas as formas de abandono, discriminação, opressão, exploração e exercício abusivo de autoridade, na família e nas demais instituições.
2. As políticas públicas no domínio da família, da educação e da saúde devem salvaguardar o princípio do superior interesse da criança, como forma de garantir o seu pleno desenvolvimento físico, psíquico e cultural.
(...)

Artigo 81.°
(Juventude)

1. Os jovens gozam de protecção especial para efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente:
a) No ensino, na formação profissional e na cultura;
(...)

O livro escolar esvoaça pelo mercado. O gratuito tem preço e o preço de capa é apenas valor da capa. O livro escolar, quase sempre pobre de conteúdo pedagógico, concebido para garantir a manutenção da ignorância e não a descoberta dos prazeres do saber, transforma-se em "livru". "Aki ah livru", reza um cartaz tamanho A4, afixado num muro, algures nos subúrbios de Luanda, frente a uma instituição publica e com uma unidade da Policia Nacional na esquina oposta.
O encarregado de educação pagou os "livrus" dos filhos... Naquele mês, em casa, só houve uma refeição...

O meo páîs

Constituição da Republica de Angola

Titulo I
(Princípios Fundamentais)
Artigo 1.°
(Republica de Angola)

Angola é uma Republica soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano, que tem como objectivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social.

O meo páîs nao tem agua da rede nem enérgia na rede k só tem kuando a tia Jacinta estende o fio. A energia é da edêle e agua compramos cô bidon aos cubanos do camion.
Vou ir na escola a pé. À livrus k nô tenho e usu livru emperestadu ou cópia memo. Kuando às aula acabão vou vir a pé para o kubiculo. Fiko là cô os meos manus, pois o papà e a mamà foram no trabalho e a mamà dêmóra k vai ir na igreja e o papà kuando vem no kubiculo pergunta pla mamà e o manu diz ainda.

O B.I.

Declaração Universal dos Direitos do Homem
Artigo 15

1. Toda a pessoa tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém pode, arbitrariamente ser privado da sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.

Januária dos Anjos, 36 anos, natural do Huambo, terra da mãe. O pai foi morto na guerra e a mãe com ela pela mão se meteu na estrada para Luanda. Januária sabe ler mas só agora anda na escola. Trabalha em casa de branco estrangeiro. Tem filho e marido. Tem casa e cartão de eleitor, mas não tem BI porque não tem certidão nem assento nem mais 30 mil kwanzas para tratar da situação. Uma vez pagou mas o kota da conservatória adoeceu e morreu sem fazer o documento. O marido tem BI mas quando vai tratar para ela pedem-lhe sempre mais um documento e mais dinheiro. A casa da Januaria não foi visitada pelo censo...

Vítor Tibúrcio, 20 anos, lava carros e presta serviços vários ali no Bairro Operário. O pai trabalha na Sonangol mas não vive (nem nunca viveu) com a mãe. O Vítor não tem BI, nem certidão, tem cartão de eleitor e foi pouco â escola. Lê e escreve, é esperto e desenvolto e não se mete em assunto. Não foi visitado pelo censo. Tem a sua clientela fixa, grande maioria no prédio Carlos Dias, no B.O.

Joana Canelas. Natural do Quito, Bié. Tem 27 anos, não tem BI, nem certidão ou assento, nem cartão eleitor. Vende cerveja e bolacha na porta de casa. Tem namorado da UGP (guarda presidencial). Foi visitada pelo censo. O namorado diz que vai tratar do assunto mas que tem de esperar pelo kumbu. Estão a pedir 30 mil, lá na conservatória e é um kota vizinho...

Carmino Teófilo de Sousa. 15 anos. Vive com a tia, irmã da mãe. Estuda mas não tem BI. Nasceu no Cunene. A mãe pisou mina e morreu. O pai o trouxe para Luanda, deixou-o na tia e foi trabalhar para a tuga. Nunca veio, mas envia algum dinheiro que a tia diz que não chega para nada. A tia já tentou tratar do documento. Quando lhe pediram dinheiro, na conservatória, fez barulho (tem decreto do ministério, gritava a tia) e foi recebida pela senhora que era chefe lá na conservatória. A tia do Carmino explicou o assunto, mas a senhora apenas disse: "Não posso, assim. E se ele for estrangeiro? Não minha filha fala bem que a gente resolve"...

Multiplicai por milhares para saber quantos são  ou talvez um novo censo onde conste o BI para o cidadão nacional e o passaporte ou cartão de residente para o cidadão estrangeiro...

Bibliografia
Constituição da Republica de Angola Imprensa Nacional - EP, Luanda, 2010
Declaração Universal dos Direitos do Homem UN

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