Cristina
Ferreira e Paulo Pena - Público
A
maioria vê no caso BES um trunfo eleitoral. Não será de estranhar que, pela
primeira vez, PSD e CDS usem a queda dos “poderosos” como bandeira para as
legislativas. Mas a comissão de inquérito tem muito mais a mostrar do que as
razões da falência do maior grupo privado português.
“Deu-lhe
uma bava.” A expressão pode ainda não concorrer para o pódio das novas
palavras, aquelas que determinado ano acrescenta ao nosso léxico, mas já tem
seguidores. Uma “bava” é, depois da audição de Zeinal Bava, na comissão de
inquérito à gestão do BES, um esquecimento útil. Uma espécie de abençoada falta
de memória. Afinal, o ex-CEO da PT fez questão de repetir a mesma expressão –
“Não guardo na memória” – demasiadas vezes para o gosto dos deputados que
qualificaram como “frustrante” a
sua prestação.
Há
mais expressões novas: ring-fencing, tableaux de bord, conta escrow,
ETTRIC. Contudo, a comissão não inovou apenas na linguagem. Criou imagens
icónicas, como o embaraço de quase todos os membros da família Espírito Santo,
uma das mais poderosas do país, nos últimos 150 anos, perante as perguntas de
uma deputada de 28 anos, Mariana Mortágua, sempre calçada com ténis All Star. E
uma marca para o futuro: o discurso anticasta (assim mesmo, como o do Podemos,
em Espanha) dos partidos da maioria.
Foi
o fim, tardio, em Portugal, da cultura Wall Street. Agora, como lembrou o
deputado Duarte Marques, PSD, Ricardo Salgado é uma espécie de Ali Babá (embora
nas Mil e Uma Noites a moral da história não seja exactamente a
mesma...). “Não terá andado o sistema financeiro nos últimos anos a jogar à
roleta com o contribuinte português?”, perguntou Paulo Portas que, em 2008,
quando se deu a primeira falência na banca nacional, a do BPN, preferia apontar
o dedo às falhas do Banco de Portugal.
Agora,
por muito “sonolenta” (expressão de Portas para qualificar a actuação de Vítor
Constâncio) que tenha sido a regulação do sector bancário, a mira dos partidos
da maioria tem outro rosto: Ricardo Salgado. O banqueiro, que entrou na
comissão com a alcunha de “dono disto tudo” e de lá saiu qualificado numa
pergunta do PSD como “escroque da pior espécie”, é um aparente trunfo eleitoral
numa pré-campanha sem grandes bandeiras para agitar.
Leia-se
Maria Luís Albuquerque, ministra de Estado e das Finanças: “Houveerros de gestão muito
graves. Erros de governance nas instituições. Da auditoria, que
não terá visto o que devia. Se calhar as normas deviam ter outro tipo de
exigências. Se calhar a supervisão deveria ter visto mais cedo.” Todos
falharam, em resumo, excepto o Governo, que não interferiu, concluiu a ministra
numa frase que resume todo o álibi de São Bento. O Executivo não salvou o GES,
ignorou os pedidos de Salgado, confiou no Banco de Portugal (BdP) e, se tudo
correr bem com a venda do Novo Banco (reavendo o Estado os 3,9 mil milhões que
“emprestou” ao fundo de resolução), não terá aberto um buraco nas contas
públicas comparável ao da nacionalização do BPN.
É
claro que esta estratégia tem riscos, e nada disto é linear. A ministra diz que
não esteve envolvida na decisão tomada pelo BdP de aplicar a “resolução”, mas,
ao inviabilizar a recapitalização via linha da troika, poderá, na prática,
ter imposto a aplicação da medida. Afinal, é um banqueiro, Fernando Ulrich,
apoiante do PSD, que afirma: “Tenho imensa pena, mas não é possível fazer a
separação do Governo desta situação." Será esse o ponto que justifica,
agora, passados três meses, as declarações do coordenador dos deputados do PSD
na comissão. Carlos Abreu Amorim, numa entrevista ao PÚBLICO, em Dezembro
passado, traçou uma nova linha que distancia o PSD da imagem de partido
“liberal”, amigo do sistema financeiro (e um dos seus principais beneficiários
em donativos de campanhas eleitorais): “Toda a minha vida adulta andei a ler
Hayek, Friedman, a escola de Chicago, o liberalismo político clássico. E depois
da crise internacional, mas sobretudo neste mês muito intenso na comissão do
GES, tudo isso abalou de uma forma muito profunda as convicções que eu tinha
sobre o liberalismo. Eu, neste momento, estou com mais do que suspeitas, com a
convicção, de que a lógica do liberalismo económico tem uma contradição
insanável com a natureza humana. (…) Por isso vou fazer-vos uma revelação: eu
já não sou liberal.”
A
visão dos reguladores
É este movimento dos partidos da maioria que mais expõe, e fragiliza, o governador do Banco de Portugal. Carlos Costa é o mesmo regulador que, há exactamente quatro anos, no dia 4 de Abril de 2011, chamou os principais banqueiros portugueses (Salgado incluído) para lhes transmitir uma preocupação e um elogio: “Vocês não podem continuar a financiar [as emissões de dívida pública portuguesa]. O risco é afundarem-se os bancos, a parte sã, e a República, que é a parte que criou o problema.”
Como
hoje é notório, os bancos não são (e já não eram em 2011) a “parte sã”. Se há
conclusão evidente desta comissão de inquérito à falência do BES, é que a crise
internacional abalou um dos principais alicerces que sustentavam o negócio
financeiro português, desde que o país aderiu à moeda única europeia: a
capacidade de sobreviver gerando, e reciclando, dívidas. Não é por coincidência
que o ano de 2008 – o ano do crash em Wall Street – é o
que marca o início de um dos principais problemas do GES: a ocultação da dívida
da ESI.
Não
foi um defeito do BES, era o feitio de quase todo o sistema financeiro, do
Lehman Brothers ao BCP, do BPN ao Northern Rock. Da Espírito Santo
Internacional (ESI) ao Espírito Santo Panamá. Carlos Costa, que fez carreira na
banca privada, como director do BCP, chefia um órgão de supervisão que partilha
a mesma cultura, os mesmos valores e a mesma noção de eficácia dos banqueiros
que regula. Essa é a conclusão do economista Joseph Stiglitz, que qualificou
esta “captura do regulador” entre as causas da crise de 2008.
Neste
universo, aquilo que parece errado ao comum dos mortais pode ser uma “inovação
financeira” digna de elogio. Vender dívida da ESI, já tecnicamente falida, aos
clientes do BES, por exemplo. Neste ponto, o outro regulador, Carlos Tavares,
da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), parece menos “capturado”
do que o responsável do Banco de Portugal. Tavares explicou aos deputados que é
“dos antigos”: “No início desta crise defendia-se isto, mas já foi esquecido…
As instituições financeiras devem ser mais pequenas e mais simples, menos
complexas.” Tavares acrescentou ainda que transparência não garante
simplicidade, quando há produtos financeiros descritos em “prospectos de 600
páginas”. “Ninguém consegue ler prospectos de 600 páginas...”
O
negócio da dívida
Isso explica a situação de cerca de 2500 clientes do BES, que investiram mais de 500 milhões em dívida da ESI, comprada aos balcões do BES. A operação foi formalmente proibida pelos reguladores em Fevereiro de 2014. Mas a falência da ESI já era conhecida pelo menos desde Setembro do ano anterior. E nada impediu que mesmo depois de Fevereiro esses produtos “tóxicos” tenham continuado a ser vendidos.
Ricardo
Salgado e a sua equipa geriam uma espécie de multinacional com sede em vários
refúgios fiscais, que garantiam sigilo: Baamas, Panamá, Luxemburgo, Suíça. A
arquitectura do grupo mudava conforme as necessidades da dívida. A ESI estava
no topo da pirâmide. Abaixo estava o BES e a ES Resources, que detinha toda a
parte erradamente qualificada de “não financeira” (na prática, tudo era
financeiro, mesmo nos negócios que à partida nada tinham a ver com a banca).
Em
2009, depois da crise, a Resources, com sede nas Baamas, ganhou uma “irmã”, com
o mesmo nome, mas sede no Luxemburgo. A das Baamas ficou com a dívida, a do
Luxemburgo “com as empresas boas”, explica Mariana Mortágua, no seu blogue
Disto Tudo, criado para explicar o caso ao grande público. “Foi então que a ES
Resources Luxemburgo passou a chamar-se Rioforte. A ideia mantinha-se: vender a
Rioforte a investidores privados e, com esse dinheiro, pagar a dívida do grupo.
Mas o objectivo nunca foi cumprido: a Rioforte não foi vendida, e a ES
Resources Baamas continuou a acumular dívida.” No final: o GES tinha 8900
milhões de euros de passivo. Estava falido. E isso era conhecido em todas as
sedes institucionais.
O
Governo sabia. Ulrich informou o ministro das Finanças da altura, Vítor Gaspar,
em Maio ou Junho de 2013. Pedro Queiroz Pereira, sócio desavindo da família
Espírito Santo, informou o Banco de Portugal, no primeiro semestre de 2013.
José Maria Ricciardi informou Pedro Passos Coelho, seu amigo, em São Bento , em Outubro de
2013. Porém, não só Ricardo Salgado se manteve à frente do grupo até 19 de
Junho de 2014, como a dívida do grupo continuou a ser “reciclada” dentro e fora
do BES, arrastando alguns pesos-pesados do PSI20. É o caso da PT…
Em
Abril de 2014, a PT trocou o seu investimento em dívida da ESI, por conselho de
Ricardo Salgado, em 900 milhões de dívida da Rioforte (igualmente falida). É
deste processo que Zeinal Bava não guarda memória. Henrique Granadeiro, o outro
responsável da PT, guarda: “Isto destruiu a minha carreira. Fui injustiçado.
Alguém devia ter-me dado sinais. Não foi a PT que fez cair o BES. Foi o BES que
fez cair a PT.”
É
este hiato temporal, entre o conhecimento dos graves problemas do GES e a
medida de resolução (tomada por Carlos Costa no dia 3 de Agosto de 2014), que
se torna difícil de compreender. Sobretudo, a inacção dos reguladores, do
Governo e da própria troika, que monitorizava as contas relevantes do
país. Carlos Moedas era o responsável pela ligação entre o executivo e a troika,
neste período. Aos deputados deu uma resposta que ajuda a explicar o
arrastamento do problema: "Depreendi que a situação poderia ser mais
preocupante do que se supunha pelo que admiti que pudesse haver implicações
para o processo de saída do programa em que Portugal se encontrava. Recorde-se que o
programa tinha acabado formalmente no dia 17 de Maio, mas ainda não tínhamos
obtido aprovação formal na última avaliação do programa por parte do Fundo
Monetário Internacional."
Ou
seja, enquanto a troika se manteve em Portugal, Ricardo Salgado pôde
manter-se no GES, porque a sua saída criaria um mal maior? Maria Luís
Albuquerque não partilha desta versão do actual comissário europeu. Mas a
oposição, PS, BE e PCP, incluem o Governo nos responsáveis pela forma
como se desintegrou o maior grupo privado português. A lista de Pedro
Nuno Santos, coordenador dos deputados do PS, é esta: “Desde logo, em primeiro
lugar, o presidente da comissão executiva do BES, toda a sua equipa e restantes
administradores, auditor externo, supervisores, Banco de Portugal, CMVM,
Instituto de Seguros de Portugal, troika e Governo.”
Agora
que os trabalhos da comissão de inquérito se tornam menos públicos, com o fim
das audições, os holofotes centram-se no meticuloso trabalho realizado pela
Divisão de Redacção e Apoio Audiovisual do Parlamento. Nas mais de 4000 páginas
transcritas e nos mais de 46 gigabites de informação recolhida está a
chave para os enigmas deste caso. E o antídoto para qualquer “bava” que tolde a
memória colectiva deste caso.
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