MARIA JOÃO LOPES (Texto) e ENRIC
VIVES-RUBIO (Fotos) - Público
Apesar
do dia cinzento, pessoas de todas as idades desceram a Avenida da Liberdade, em Lisboa. Protestou-se
contra o Governo, contra a austeridade, contra o desemprego. E também houve
quem lembrasse que a liberdade de imprensa é um valor de Abril.
Álvaro
Faria, 68 anos, tem um cravo na lapela e um autocolante, também com um cravo,
no casaco. A mulher brinca: “Só te faltou trazer um cravo testa”. O director-
geral de uma multinacional, ramo de software, faz questão de sair à rua no
25 de Abril. Mas não esconde algum desencanto: “Este Governo está a recuar em
relação aos valores que foram conquistados por Abril, na saúde, na educação, na
liberdade. Quem não tem pão, não tem liberdade. E há cada vez menos pão na mesa
dos portugueses.”
Foi
um entre os “muitos milhares”, segundo a Associação 25 de Abril, que se
concentraram no Marquês de Pombal para desfilar pela Avenida da Liberdade.
Apesar da tarde cinzenta e de uns pequenos pingos de chuva, os cartazes
mantêm-se erguidos e as músicas de intervenção misturam-se com as palavras de
ordem.
Nos
Restauradores, Álvaro Faria conta que viu as notícias sobre a polémica
proposta, segundo a qual os órgãos de comunicação social teriam de apresentar
um plano de cobertura das eleições a uma comissão mista constituída pela
Comissão Nacional de Eleições e pela Entidade Reguladora para a Comunicação
Social. “Tudo o que seja limitativo da liberdade, sobretudo de expressão, é uma
ameaça”, diz, acrescentando que as conquistas de Abril “estão vivas do ponto de
vista pessoal, mas do ponto de vista político estão altamente ameaçadas”.
No
desfile, há pessoas de todas as idades. João Farinha, arquitecto de 25 anos de
Lisboa, também acompanhou a polémica sobre a cobertura eleitoral. Admite que o
“espírito” do projecto o “incomodou”. Afasta tudo que o represente “uma
ingerência no jornalismo e na independência dos meios de comunicação social”.
Mas a questão que mais o preocupa, 41 anos após o 25 de Abril, é “igualdade de
oportunidades que está por cumprir”: “A sociedade está cada vez mais desigual,
e foi com isso que o 25 de Abril quis romper”.
Essa
revolta está estampada nos cartazes contra a austeridade, nas críticas e
caricaturas com o Presidente da República, o primeiro-ministro, a chanceler
alemã. Grita-se: “É mesmo necessário um aumento de salário”.
“O
nosso amanhecer”
Passados 40 anos sobre as eleições para a Assembleia Constituinte, a 25 de Abril de 1975, o capitão de Abril Vasco Lourenço lamenta que hoje em dia haja “muito desencanto”: “As pessoas estão desiludidas com esta política. Quem está no poder dá a sensação que está a comportar-se como os herdeiros dos que foram vencidos no 25 de Abril”, diz, acrescentando que estão “a tentar destruir tudo aquilo que tem que ver com o 25 de Abril”.
E
mostrou-se espantado com a recente polémica em torno cobertura eleitoral: “É
incompreensível como no Portugal de Abril, passados 41 anos, ainda há deputados
que têm ideias desse tipo. Pôr essa hipótese é absolutamente incompreensível.
Não se percebe”. Diz mesmo: “Deve estar tudo louco.” Também a porta-voz do BE,
Catarina Martins, reage à controvérsia: “A democracia em Portugal tem sofrido
muito, mas é forte o suficiente para não deixar passar nenhuma censura, era o
que mais faltava.”
No
desfile, o ex-reitor Sampaio da Nóvoa, que se vai candidatar à Presidência da
República, diz que o que aconteceu “foi um pequeno equívoco” que espera “que
seja corrigido rapidamente”: “O 25 de Abril é o dia maior da minha vida. É
imprescindível que todos estejamos desse lado, do lado da liberdade.”
De
manhã, o Presidente da República, Cavaco Silva, tinha defendido que o “diálogo
e o consenso” permitirão alcançar compromissos “imprescindíveis” para garantir
a “estabilidade política e a governabilidade do país”. Sampaio da Nóvoa não
ouviu o discurso. Ainda assim, concorda que haja consensos, mas não “para
deixar tudo na mesma”. O ex-reitor espera que as legislativas e presidenciais
tragam um “grande momento de mudança para Portugal”.
Sampaio
da Nóvoa recorda a primeira vez que votou, em 1975: “Estava na luta por essa
liberdade, traduzida numa democracia que se consolida a partir desse momento.”
Acredita que muitos dos valores de Abril se cumpriram, mas ainda “há muita
coisa que falta fazer, sobretudo no que diz respeito à dimensão social, do
desenvolvimento deste país, à dimensão cultural”.
Também
o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, insistiu que “Abril está a
cumprir-se, a política de direita é que não”: “É preciso actualizar, trazer à
ordem do dia os valores de Abril, que perspectivaram um outro caminho, de
esperança, de confiança, de direitos, de conquistas.”
No
palco montado no Rossio ainda houve tempo para discursos. Ao microfone, o
militar Bargão dos Santos afirmou que “o 25 de Abril, apesar dos que o têm
pretendido denegrir ou destruir, está vivo e viverá sempre”: “Foi o nosso
amanhecer”, disse. E citou o conhecido poema de Sophia de Mello Breyner: “Esta
é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo”.
"Pelo
menos quem tem consciência tem de votar"
ANA CRISTINA PEREIRA (texto) e PAULO PIMENTA (fotos) - Público
"Desfile
da liberdade" no Porto fez-se debaixo de chuva, mas com memória bem viva
das primeiras eleições livres de há 40 anos.
Chovia
este sábado à tarde no Porto. José Ribeiro abrigava-se na entrada de um prédio,
sem tirar os olhos do Largo Soares dos Reis, palco da tradicional homenagem aos
resistentes antifascistas. A não ser que alguma doença lhe troque as voltas,
esteja onde estiver, não deixa passar em branco o 25 de Abril.
Há
40 anos, mal conseguiu pregar olho a noite inteira. Quantos terão sentido
semelhante agitação? Portugal despertava para o primeiro sufrágio livre e
universal da sua História. Longas filas formavam-se frente às mesas de voto.
Numa mais se viu tamanha afluência – a taxa de abstenção foi de 8,5%.
José
Ribeiro nunca tinha votado. Poucos podiam votar antes do 25 de Abril de 1974.
Nem percebia os critérios. “O meu falecido pai podia votar e era analfabeto.
Foi militar e tinha uma credencial do Estado para votar. Eu não podia votar e
tinha o ciclo preparatório e trabalhava na CP.”
Aquelas
primeiras eleições serviram para eleger a Assembleia Constituinte. José Ribeiro
votou em Espinho, com a mulher. No boletim de voto figuravam 14 forças
políticas. Não se atrapalhou. “Votei e nunca mais deixei de votar, embora agora
esteja revoltado por isto estar a voltar ao mesmo.”
Ao
som da Grândola Vila Morena, de José Afonso, arrancava o chamado “Desfile da
Liberdade”. Debaixo da chuva insistente, a canção-sinal depressa era
substituída pelas costumeiras palavras de ordem da CGTP-IN.
– Direitos
conquistados – gritava alguém.
– Não
podem ser roubados – respondiam os manifestantes em coro.
– Abril
de novo…
– Com
a força do povo!
Havia
em José Ribeiro
uma indisfarcável vontade de saltar para o meio da rua do Heroísmo. Assusta-o o
avanço do desemprego, da pobreza, e o recuo da protecção social. Sabe estar
longe de outros tempos e é o mais longe possível que se quer manter. Mesmo num
encontro fortuito, debaixo de um alpendre, enquanto o desfile passa, pode
contar histórias de arrepiar, como esta: uma vez, numa deslocação do então
Presidente da República, Américo Tomás, um rapaz que trabalhava na CP comentou
com um colega: “É pá, tanta gente a passar fome e este aparato todo!” Não
tardaram a ser ambos levados por um agente da polícia política. “Nunca mais
trabalharam na CP!”
“Era
um regime de terror”, enfatizava o homem, que vai nos 75 anos, está reformado
há 15. “Só a liberdade das pessoas vale tudo!” A liberdade de falar, mas também
a de eleger. “Pelo menos quem tem consciência, tem de votar para se defender.
Se nos tirarem isso, tiram-nos tudo.”
O
desfile prosseguia. Pessoas do sexo masculino, do sexo feminino, muitas
envelhecidas, algumas ainda crianças, em passo lento, ainda que menos do que se
o céu estivesse limpo. Muitos cravos vermelhos debaixo de guarda-chuvas, amiúde
pretos, rumo à Avenida dos Aliados.
– Aos
fascistas custará…
– mas
Abril vencerá!
– Para
nós e muito mil…
– Vivam
os valores de Abril!
Entre
familiares, amigos, conhecidos, desconhecidos, desfilava Maria José Oliveira
Peixoto. Também ela votou há 40 anos pela primeira vez. Fê-lo no Porto. Contava
29 anos. “Fui com os meus pais e a minha irmã. Éramos da mesma mesa de voto,
uma vez que residíamos na mesma casa. Fomos depois do almoço. Até à hora do
almoço, havia muita gente.” Muitos iam antes ou depois da missa.
Os
resultados finais tardaram dias a ser conhecidos. A vitória foi arrecadada pelo
PS de Mário Soares, com 38% dos votos, seguido pelo PPD de Francisco Sá
Carneiro, com 26%. O PCP ficou-se pelos 12%, o CDS pelos 7%, o MDP pelos 4%.
Maria José não gostou. Filiara-se no PCP logo a seguir à revolução.
Tempos
conturbados aqueles. Após a tentativa de sublevação militar liderada por
António Spínola, a 11 de Março de 1975, o país viveu uma radicalização. De
repente, Portugal entrou no designado Processo Revolucionário em Curso (PREC),
que ficou conhecido como "Verão Quente".
“Naquele
tempo, vivíamos tudo acaloradamente”, recorda Maria José. “Havia muitos
excessos. Provavelmente também os cometi, embora ache que era equilibrada.”
Trabalhava numa agência de viagens, na Avenida dos Aliados, onde já então
desaguavam as manifestações. “Via tudo!”
Os
ânimos acalmaram-se e os cidadãos parecem estar cada vez mais afastados da
política. No ano passado, no sétimo acto eleitoral destinado a eleger os
representantes no Parlamento Europeu, o país registou a maior taxa de abstenção
de sempre – 66,2%. Quem sabe que acontecerá nas legislativas de Setembro?
“Muita
gente não vota porque está desencantada”, interpreta Maria José. “Também estou.
Também estou desencantada com tudo o que está a acontecer, mas não deixo de
votar. Eu voto. Eu voto sempre. Só que muita gente desencanta-se e fica em
silêncios, não se dá, não participa.” E ela tem pena. Afinal, não vai há muito
tempo muita gente não podia votar, por muito que quisesse.
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