Hugo
Gonçalves – Diário de Notícias, opinião
1- Três
crianças de Los Angeles dizem ter visto um thethanluminoso através da
penumbra de poluição da cidade norte-americana. Segundo a Cientologia, um thethan é
uma das almas que, há 75 mil milhões de anos, foram atiradas para os vulcões do
planeta Terra por um ditador intergaláctico. O thethan em questão
apareceu num ferro-velho, prometendo que, caso fossem ali no dia 13 de cada
mês, as crianças receberiam a revelação de segredos. No lugar do ferro-velho, a
igreja da Cientologia prepara-se para construir um santuário.
2- Apesar
de, em 1917, Portugal estar sob a vaga anticlerical da Primeira República, era,
com toda a certeza, um país mais dado a misticismos do que é hoje. No entanto,
no Século Cómico, de 14 de outubro desse ano, escrevia-se:
"Conservamos [os portugueses] a nossa habitual indiferença, como se a
aparição da mãe de Jesus Cristo fosse para nós a coisa mais natural d"este
mundo. Vimos passar para a charneca centos, milhares talvez, de peregrinos,
crentes, curiosos, amadores de picnics, vendedores de água fresca e
capilé, repórteres e vendedores de vinho a retalho."
Quase
cem anos mais tarde, partilho o espanto do Século Cómicocom a nossa falta
de espanto. Porque será que a história (inventada por mim) das três crianças de
Los Angeles, ou os preceitos da Cientologia, nos motivam descrença, se não
mesmo uma risada, enquanto as conversas mantidas entre a Virgem e os
pastorinhos nos parecem mais fiáveis?
Por
que razão extraordinária os visitaria? Segundo Lúcia, Nossa Senhora explicou o
motivo do contacto: "Quero dize-te que façam aqui uma capela em Minha
honra, que sou a Senhora do Rosário, que continuem sempre a rezar o terço todos
os dias." Obediente, Francisco, um dos pastorinhos, terá recusado estudar
por penitência e isolava-se para mitigar os pecados dos outros.
3- Após
as aparições, criou-se no país uma exaltação espiritual - e uma oportunidade
para combater o laicismo da Primeira República -, que se propagou através da
"Cruzada do Rosário". A iniciativa, com milhares de seguidores,
consistia em rezar o terço, comungar ao domingo, orar pelo sucesso da cruzada e
ter em casa uma imagem de Nossa Senhora. Segundo o historiador católico Costa
Brochado, foi assim que começou o Mês de Maria: "Os ímpios tinham motivos
para supor a Igreja derreada (...) eis que ela se ergue mais forte e bela do
que nunca, lançando-se à reconquista da cristandade com a arma singular do
Terço."
Fátima
foi, inicialmente, uma ação de propaganda de intelectuais católicos,
encavalitados na fé do povo ignorante. Não é preciso ser psicólogo ou vidente
para perceber que aquilo que Lúcia diz ter visto e ouvido - "sobretudo,
aceitai e suportai com submissão o sofrimento que o Senhor vos enviar" - é
um reflexo da forma como aquelas crianças, naquele Portugal, viviam a religião
- um deus que ralha e castiga e exige.
4- Segundo
um documento escrito por Lúcia, em 1941, os dois primeiros segredos eram: 1) A
revelação do inferno - "Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo,
que parecia estar debaixo da terra." 2) A obrigatoriedade da adoração -
"Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração" -
e a conversão da URSS: "Virei pedir a consagração da Rússia." Ou
seja, a ameaça do castigo eterno e a cruzada contra o comunismo (porque não
contra o fascismo ou o nazismo ou os padres que abusaram de crianças na
Irlanda?)
O
terceiro segredo, revelado em 2000, mostra como Fátima parece um filme de série
B, de enredo frágil e com um final insatisfatório. Lúcia terá visto a imagem de
um homem vestido de branco, sob a ameaça de uma espada, o que levou o Vaticano
a decretar que se tratava de uma antevisão do atentado ao Papa João Paulo II -
"foi uma mão materna que guiou a trajetória da bala".
Tanto
barulho por nada. Uma "autoprofecia". Não fosse a dimensão do logro e
o número de gente enganada, Fátima seria uma comédia. No entanto, a narrativa
dos segredos assemelha-se mais ao Antigo Testamento - a ideia de um deus
egocêntrico, sedento de atenção, que ameaça com o inferno e exige a construção
de um templo em sua homenagem. Mas porque não uma mensagem verdadeiramente
reveladora e inédita para a humanidade, porquê a construção de uma capela em
vez de um orfanato, o medo do inferno em vez da prática do bem?
O
terceiro segredo aproxima a Igreja de um canal de televisão que se alimenta do
próprio star system. Como um ator promovendo a telenovela num programa da
manhã, o Vaticano decidiu que - apesar de todas as calamidades e guerras que
aconteceram no século XX - a Virgem estava preocupada com o Papa. A igreja
umbiguista, muito mais do que ecuménica.
Perante
tudo isto, os fiéis de Fátima dirão, tal e qual os crentes em thethans,
"é o mistério da fé. Não se questiona a fé", como se fossem crianças,
que pastavam o gado, na Cova da Iria, em 1917.
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