Luísa
Rogério – Rede Angola, opinião
Fazer
uma caminhada nocturna. Andar na rua sem tremer ao cruzar com uma motorizada.
Encontrar bancos comerciais com sistema, tratar normalmente um cartão
multicaixa e ser atendido com gentileza. Dispensar cunhas para isto e aquilo,
ceder passagem ao peão nas passadeiras e obedecer ao Código de Estrada. É
extensa a lista de coisas “estranhas” que aqui se fazem. O país onde é banal
inverter os termos e a anormalidade assume naturalmente o comando de situações,
conserva alguns dos seus encantos. Sair da capital significa beneficiar do
contacto com outras Angolas e descobrir quão injustos temos sido ao
confundirmos o país com uma cidade. De facto, Benguela não é Luanda. É o palco
das Acácias Rubras.
Benguela
é a cidade de onde não se quer regressar, como canta o artista. Pioneira da
rádio em Angola, é a terra de poetas eternos. Berço de Alda Lara, a menina que
cresceu, tornou-se médica, mas nunca se esqueceu da sua terra; Benguela é a
“mãe” do célebre Meu amor da Rua 11 de Aires de Almeida Santos. A
musa inspiradora ainda cá vive. Ruas, travessas e becos vêm inspirando mentes
criativas como a de Papetela, património cultural vivo deste país.
Ao
chegar a Benguela para mais uma jornada de trabalho, deparei-me, ao sair do autocarro,
com crianças pequenas sozinhas na rua. O instinto materno levou-me a perscrutar
pelos acompanhantes. Alguém captou a inquietação no meu olhar e deu a resposta
semelhante aquela que ouvira no Huambo há algum tempo. “Tia, não se preocupe,
aqui não roubam crianças…” Meio envergonhada por ter deixado exteriorizar a
condição de residente numa selva de pedra, fiquei aliviada enquanto esperava
pelo Lilas Orlov, o hospitaleiro anfitrião de sempre, que já tinha passado pelo
ponto de encontro antes da minha chegada.
A
minha paz foi reforçada pela visão de estudantes com bata branca, acompanhados
ou sozinhos, a estudar em jardins públicos. Sim, aqui eles não põem a bata
apenas à entrada da escola, removendo-a apressadamente à saída. As adolescentes
não se importam de cobrir os corpos de afirmação sob o branco simbólico e
uniformizador das batas.
No
intervalo de uma e outra actividade, entre caminhadas e olhares, distraí-me a
apreciar as crianças em diversos parques da cidade. Dão-se ao luxo de brincar
ao lar livre. De andar de bicicleta em largos e em passeios. Estou
pouco habituada a ver tantos miúdos sozinhos em direcção à praia. Não consigo
confirmar se nadaram ou não porque só durante a noite pude visitar a Praia
Morena.
Em
Benguela, os Sábados são semelhantes aos de quase toda Angola. Almoçaradas em
família, que inclui vizinhos e amigos, prolongam-se pela noite adentro. À volta
da mesa ou do fogareiro com o peixe fresquinho, vivem-se momentos de
descontracção, troca de impressões e consolidação de laços. À noite, por detrás
da acalmia aparente, o ambiente esquenta. Há opções diversas para comer, bater
um bom papo ou para aquele abraço aconchegante. Abundam pistas de danças para
todos os gostos e bolsos. Há condições para viver um pouco a vida, à margem de
preocupações existenciais e angústias.
De
repente, um tropeção na noite. Nada grave, apenas um desequilíbrio. Está tudo
bem. Mas, evidentemente, nem tudo são rosas. Num país que ficou adiado durante
tantos anos e agora parece enfrentar uma escura e ameaçadora nuvem, qualquer
pessoa comum é compelida a adoptar o mais puro existencialismo como filosofia
de vida. Objectivando: a vida é feita exclusivamente no presente do indicativo.
O problema é que quando a falta de esperança e de confiança no futuro leva as
pessoas a esse mecanismo de sobrevivência, impede que elas façam projectos,
investimentos, e até mesmo que se inspirem nos grandes feitos do passado para
acreditar que possam superar desafios vindouros. É prático e funcional, do
ponto de vista individual, mas potencialmente danoso para a nação, refugiar-se
no presente, fugindo dos fantasmas e ignorando as inquietações em relação às
consequências desconhecidas do que esteja a ser feito hoje aqui, no Oriente
Médio ou no menos médio.
Valerá
a pena enfrentar as crises e aprender com elas, ou fugir para a frente? Em todo
o caso, o presente é tudo o que temos. Benguela mantém-se uma cidade de
quintais, labirintos e assimetrias. Mas a praia ainda é morena e as acácias
continuam rubras!
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