Posse
de Ada Colau leva movimentos cidadãos a governar capital da Catalunha e
atualiza pergunta crucial: redes horizontais, articuladas pela internet,
substituirão um dia as instituições atuais?
Juliana
Dias e Mónica Chiffoleau – Outras Palavras
A
tarde do dia 13 de junho de 2015 ficou marcada como um acontecimento histórico
para a democracia e os processos de participação social. Sob um céu azul,
cortado por um sol brilhante e enormes bandeiras, cidadãos de Barcelona
reuniram-se na praça Sant Jaume, no Bairro Gótico, para testemunhar e apoiar a
posse da primeira mulher a assumir a prefeitura da cidade espanhola. Seu nome é
Ada Colau, de 41 anos, dona de um sorriso vibrante e portadora de uma convicção
inabalável a respeito de seu papel de cidadã.
Ela
entrou no palácio do Ajuntamento por um corredor de aplausos e abraços
calorosos de cidadãos que a apoiaram. Ada demonstrou ser uma mulher forte, que
conjuga bem discrição e confiança. Sua alegria transparente evidenciou a
harmonia entre elegância e simplicidade. Apesar de jovem, ela tem uma
consistente trajetória de militância, que se intensificou com a crise de 2009,
quando lutou para impedir a retirada de pessoas de suas casas por não
conseguirem saldar a dívida da hipoteca bancária.
O
clima era de esperança, solidariedade e cumplicidade. Os barceloneses encheram
a rua com o som de um novo modelo de fazer política, que levou a
plataforma Barcelona em Comum ao poder: “Si, se puede!” A prefeita foi
celebrada e ovacionada pela população, que ocupou a praça durante as 4 horas de
cerimônia. Jovens, crianças, idosos, homens e mulheres gritavam com o mesmo
entusiasmo e emoção que torcem peelo time sagrado campeão da Copa dos Campeões,
cada vez que Ada se pronunciava.
Sua
chegada à prefeitura de Barcelona revelou a potência dos movimentos sociais
para desencadear mudanças efetivas nos centros de poder. O grito da multidão
traz uma mensagem poderosa e encorajadora para militantes e cidadãos em todo o
mundo: é possível mudar a ordem hegemônica. As opções não são binárias e
imutáveis, preto e branco. Existem outros tons, outros caminhos, outras vias,
um caminho a ser construído, sem respostas prontas.
“É
uma mudança de valores, não de gestores”, analisou o assessor de comunicação
Antoni Gutiérrez-Rubí no jornal El Periódico de Catalunya. Segundo sua
análise, o acontecimento representa a emergência de um novo ecossistema
político que liberou energia democrática suficiente para alcançar a vitória nas
eleições. O mérito, Gutiérrez-Rubí assevera, é triplo: o Barcelona em Comum não
tem experiência de gestão; não forma parte – majoritariamente – da cultura dos
partidos e do poder; e não é um partido político nem uma coalizão convencional.
“Trata-se de uma confluência múltipla, cívica e política de experiências e
vivências muito diversas. Estamos diante de uma novidade total”, escreveu
em sua crítica publicada no dia 14 de junho. O Barcelona em Comum não se
apresenta como um partido, mas como um instrumento político.
A
posse de Ada é resultado de um processo coletivo de organização social. Nas palavras
do psicólogo Javier Toret, ativista e membro do partido, “é a inteligência
coletiva na cidade que tem permitido construir um grande movimento, herdeiro
dos Indignados. Muita gente se agregou, permitindo agrupar uma noção coletiva
que se expandiu por toda a cidade”, afirmou numa entrevista concedida às
repórteres no meio do calor da multidão e convocou o Brasil para esta
empreitada: “essa experiência servirá de referência para todo o mundo e deve
ser levada para o Brasil”. Toret já esteve várias vezes no país, para
apresentar as experiências da Espanha. O repórter Maurício Bernal, em matéria
de capa do El Periódico da Catalunya, afirmou que o povo foi o
protagonista da cerimônia de posse: “essa manifestação popular mostrou-se
significativa porque é a essência do novo mandato: a rua existe, a rua fala, a
rua atua. Ada Colau, de onde vens? Da rua”.
A
ativista social Maria José Lecha, em sua fala no Salão de Cents, onde ocorreu a
cerimônia de posse, destacou que a plena soberania é ativar e não punir a participação
popular. “A ascensão de Ada é o começo da proximidade, da ruptura das políticas
neoliberais”.
Um
acontecimento inédito
O
pensamento do filósofo francês Jaques Ellul é pertinente para iluminar a compreensão
desse acontecimento inédito no cenário político internacional. Nos anos 50,
Ellul sinalizava que as doutrinas democráticas tradicionais haviam se tornado
obsoletas por causa da técnica. Visto como pessimista, ele descortinava um
mundo material sustentado por uma base técnica, na qual a economia é
considerada a ciência técnica das escolhas eficazes. A sociedade moderna seria
cada vez mais dominada pela dimensão econômica, controlada pela técnica,
anunciava o pensador.
Na
visão do filósofo, o Estado torna-se organismo técnico, no qual as técnicas
devem ser adotadas sem importar quem esteja no poder. Deve-se adotar os
princípios técnicos do capitalismo. Esta análise permite explicar, em parte, o
que tem ocorrido com os governos que chegam ao poder. Mesmo com promessas de
mudanças estruturais, depois de assumir o mandato observa-se a continuidade das
gestões anteriores. Como diz um ditado popular, é como trocar 6 por meia dúzia.
Os novos gestores, impregnados por uma nova mentalidade e vontade política,
ficam impossibilitados de fazer manobras mais ousadas diante do cumprimento das
técnicas econômicas impostas pela primazia de uma gestão eficiente. Em primeiro
lugar, devem atender os financiadores de sua campanha eleitoral.
No
entanto, o imperativo da técnica é contraposto com o pensamento do filósofo
brasileiro Álvaro Vieira Pinto ao afirmar que a tecnologia é
patrimônio da humanidade. “O conceito de técnica mostra que este deve ser
patrimônio da espécie. Sua função consiste em ligar os homens na realização das
ações construtivas comuns. Constitui um bem humano que, por definição, não
conhece barreiras ou direitos de propriedade, porque o único proprietário dele
é a humanidade inteira”.
Ao
acompanhar o processo político espanhol identificamos a apropriação da
tecnologia como bem comum por meio do surgimento da Tecnopolítica. É justamente
a apropriação da tecnologia como patrimônio da humanidade que tem permitido
recuperar a essência da democracia. Ao invés dos engessados partidos políticos,
cauterizados pelo domínio da técnica política, surge uma ferramenta política
para fazer aflorar no cidadão o seu poder de reivindicar, atuar e fazer parte das
tomadas de decisões de seu território. Não é apenas escolher um representante
para assumir um cargo político, mas participar deliberativamente da condução
dos processos políticos. A tecnopolítica usa as técnicas para trazer a
verdadeira democracia, que vibrou na praça Sant Jaume, ao som emocionante e
contagiante: Sim, é possível! E se é possível em Barcelona, é possível em
outros lugares também. Nos juntamos à multidão captando a força e a esperança
na real possibilidade de mudança no pensamento dominante e hegemônico de que as
montanhas não se movem. Maria Jose Lecha sinalizou que a corrupção é a ponta do
iceberg. O Barcelona em Comum conseguiu fazer uma ruptura nessa geleira.
Tecnopolítica
De
acordo com o livro Tecnopolítica: a potência das multidões conectadas, a
tecnopolítica é um padrão de auto-organização política na sociedade em rede. A cultura da
internet e o desenvolvimento da subjetividade criam um ecossistema ideal para o
desenvolvimento da inovação na vida geral e na ação política em particular. A partir
daí os pensadores descrevem esses movimentos com diferentes nomes, tais como
Comunidades virtuais (Rheingold), autocomunicação de massas (Castells) e
inteligência coletiva (Levy). A potência das identidades coletivas na rede
podem supor uma reorganização social em grande escala, aponta Toret.
A
tecnopolítica é cada vez mais uma tendência da subjetividade política na
sociedade em rede, é reaproximação das ferramentas e espaços digitais para
construir estados de ânimo e noções comuns para empoderamento. Possibilita
comportamentos coletivos nos espaços urbanos que levam a tomar assento nas
decisões de assuntos comuns a todo cidadão. De acordo com o sociólogo espanhol
Manuel Castells, a tecnologia, entendida como cultura material, é uma dimensão
fundamental da estrutura da mudança social.
O
protagonismo dos barceloneses na praça Sant Jaume revelou a esperança da
mudança social. As primeiras palavras da Ada Colau foram de agradecimento para
a cidadania: “Obrigada por ter feito possível o impossível”.
Outras
cidades… outros países
A
eleição de Ada Colau pode ser entendida como a herança dos movimentos Occupy,
segundo explica Castells; são indivíduos que constituem uma rede conectando-se
mentalmente com outros indivíduos. E por que são capazes de fazer essa conexão
num processo de comunicação que, em última instância, leva a ação coletiva.
Essas
redes negociam a diversidade de interesses e valores presente em cada uma delas
para se concentrar num conjunto de objetivos comuns; essas redes se relacionam
com a sociedade em geral e com muitos outros indivíduos; geram conexão que
funciona em grande número de casos, estimulando indivíduos a ampliar as redes
formadas na resistência à dominação e se envolver num ataque multimodal a uma
ordem injusta.
Ao
finalizar a entrevista com Javier Toret, ele sinalizou que esta vitória não só
acontece em Barcelona, se não também em outras cidades da Espanha, como Madri,
Coronha etc. Assim como aconteceu com os outros movimentos ocuppy, ele convida
a fazer um processo similar em outras cidades do mundo. De acordo com o
psicólogo, a mensagem da eleição da Ada Colau para o mundo é clara, a mudança
pode ser possível.
As
experiências que juntaram milhões de pessoas em áreas ocupadas, desafiando as
normas burocráticas sobre o uso do espaço, podem evoluir numa mudança da
realidade política. A tecnopolítica é real, representa a profunda capacidade
política de nos organizarmos em rede mediados pelas tecnologias.
Será
possível no Brasil?
Álvaro
Viera Pinto afirma que “a tecnologia de origem externa serve de instrumento
para a aceleração do desenvolvimento da nação retardada unicamente se for uma
aquisição de livre escolha por parte de seu centro soberano de poder político”.
Pelo que testemunhamos na Espanha, entendemos que é necessário primeiro mudar o
centro soberano de poder, o qual deve passar primeiro pela construção de redes
de contrapoder. Só assim poderíamos vislumbrar uma liberdade de escolha, como
Barcelona está experimentando.
É
grande a expectativa em relação à gestão dos 21 novos governos das cidades
espanholas que assumiram no último dia 13 de junho. Foi vencido o primeiro
passo, liberado o centro soberano de poder político. Os cidadãos estão com sua
própria representação. Agora, o caminho está em definir políticas favoráveis
para toda a população, vencendo o poder da técnica econômica, ao qual se
referiu Ellul. O Barcelona em Comum tem a seu favor o fato de que a campanha
foi financiada pelos cidadãos e não pelas grandes corporações, como de praxe.
Esse foi um dos principais méritos desse instrumento político. Sim, é possível!
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