Reportagem
em Lesbos revela: por trás da onda refugiados, países destruídos por
intervenções ocidentais. A longa jornada de sírios, iraquianos e afegãos no
Mediterrâneo. A indiferença da Europa
Jesse
Rosenfeld, no The Nation - Tradução: Gabriela Leite e Inês
Castilho
No
calor escaldante de um meio-dia de agosto na ilha grega de Lesbos, Ziad
Mouatash salta fora de um bote inflável superlotado e toca o solo da União
Europeia pela primeira vez. O jovem de 22 anos de Yarmouk – campo de refugiados
palestino à beira de Damasco que foi sitiado e bombardeado desde 2012 pelas
forças de Bashar al-Assad e recentemente foi invadido pelo ISIS e a Frenta
Al-Nusra, filiada à Al Qaeda – abraça todos à sua volta, em êxtase por estar
vivo.
A
partir da costa grega, ativistas e moradores observaram impotentes o motor do
barco quebrar a cerca de três quilômetros dali, a água entornando no bote de
borracha que mal era capaz de flutuar. Crianças e adultos gritavam
desesperadamente por ajuda, até serem rebocados para a Grécia por outro barco
de refugiados vindo da Turquia.
Mouatash
pagou mais de mil euros (mais de 4 mil reais) a traficantes de pessoas na
Turquia por essa experiência de quase-morte, mas, segundo ele, a escolha era
muito menos arriscada do que continuar se escondendo numa Damasco em
deterioração, que duas semanas antes ele havia trocado pela Turquia. Como
palestino que cresceu em campos de refugiados da Síria, Mouatash é apátrida,
mas tem um irmão em Paris e espera começar vida nova na França.
Ele
anda para cima e para baixo da costa, incerto sobre que direção tomar, enquanto
ativistas locais tentam juntar os recém-chegados para dizer-lhes que precisam
começar uma caminhada de mais de 60 quilômetros a pé, até um centro de registro
do outro lado da ilha.
“Graças
a Deus consegui chegar até aqui. Estou livre, estou vivo!”, exclama Mouatash,
tomado pela emoção.
Embora
tenha escapado dos horrores da massacrante guerra civil da Síria, Mouatash está
apenas começando uma difícil jornada pela Europa. Terá de cruzar mais
fronteiras ilegalmente; descansar em campos sujos e improvisados; pagar
traficantes para ajudá-lo a cruzar essas fronteiras; esquivar-se da polícia de
imigração; e dormir em parques e campos, antes que possa reunir-se com seu
irmão. Ainda assim, ele é um dos que têm sorte. Quatro dias depois de sua
chegada, uma balsa virou ao largo da ilha grega de Kos e seis sírios –
incluindo um bebê – afogaram-se.
Segundo
a tenente Eleni Kelmani, porta-voz da guarda costeira de Lesbos, mais de dois
mil refugiados estão aportando diariamente na ilha. Ela observa que esse
ensolarado paraíso turístico viu a chegada de 75 mil dos cerca de 120 mil
refugiados que aterrissaram na Grécia neste ano. Fora de seu escritório,
centenas deles dormem perto de carros estacionados ou em tendas à beira do
porto.
“É
óbvio que, se a austeridade não tivesse atingido a Grécia, teríamos melhores
condições de lidar com esta crise”, diz Kelmani. Ela fala francamente, enquanto
tenta manter a Guarda Costeira fora da briga política doméstica do país.
O
partido de esquerda que governa a Grécia, Syriza, é um dos poucos membros da
União Europeia a clamar por uma abordagem de “solidariedade” em toda a Europa
para reassentar os refugiados que chegam de algumas das piores zonas de
conflito do mundo. É uma postura completamente contrária à dos políticos de
extrema-direita, anti-imigração e nacionalistas, da UE, que pedem uma Europa
fortificada, para tornar o mais difícil possível a viagem dos que buscam asilo,
a fim de impedi-los de chegar.
Contudo,
com a economia grega fragilizada pelas medidas de austeridade impostas pela UE,
o governo do Syriza não pode fazer muito. Ao invés de encontrar solidariedade e
uma estratégia de ajuda coordenada em toda a Europa, os refugiados – a grande
maioria da Síria, do Afeganistão e, em menor extensão, do Iraque – estão
chegando a Lesbos apenas para deparar-se com serviços públicos deteriorados.
Homens
jovens, assim como famílias – inclusive mães com crianças nascidas há poucas
semanas – fazem fila à beira das rodovias na caminhada de 13 a 20 horas a pé,
pela ilha montanhosa. As leis locais impedem que tomem táxis, embarquem em
transporte público ou fiquem em hotéis antes de receber os documentos gregos, e
há apenas quatro ônibus para transportar pessoas para os dois campos de
trânsito e triagem, segundo Kelmani. Um punhado de ativistas voluntários conduz
pela ilha as mulheres grávidas, as crianças pequenas e os idosos, mas a maioria
não tem escolha se não andar.
Ao
lado de uma curva cega, a meio caminho entre a parte norte de Lesbos, onde os
refugiados chegam, e o centro de triagem, perto da principal cidade de
Mytilini, os carros desviam freneticamente para não passar sobre Abbas Bari e
seu amigo Sayed Hassan.
Os
dois jovens, vindos da cidade de Basra, no sul do Iraque, escaparam de milícias
e arriscaram tudo apenas para ser quase mortos por atropelamento enquanto
cochilavam à beira da estrada, depois de caminhar por dez horas. Quando eu os
desperto para sugerir que se movam até um campo, eles ficam inicialmente
nervosos e com medo, imaginando que eu possa roubá-los. A difícil jornada
através do Iraque e da Turquia deixou-os desconfiados de todo mundo, mas depois
que expliquei a situação e lhes ofereci um pouco d’água, Bari se abriu.
Ele
havia trabalhado como treinador de cães para o governo iraquiano e como
tatuador. Entre os poucos pertences que trouxe consigo estão um grande frasco
de tinta e uma coleção de desenhos de tattoo, muitos dos quais estão gravados em
seu bíceps. Mas disse que foi o treinamento de cães de guarda para o exército
que despertou a ira das milícias locais, embora não especifique quais.
“Eles
mataram um dos meus cachorros e depois fizeram ligações telefônicas
ameaçadoras”, diz, fumando um cigarro iraquiano de um maço que trouxe consigo.
Temendo por sua vida, o jovem de 29 anos escapou em pânico da cidade, deixando
para trás a esposa e duas crianças. Agora Bari espera chegar à Finlândia, onde
planeja recomeçar a vida em segurança, juntando-se à família depois de
conseguir se estabelecer. Mas ainda olha para a destruição de sua pátria com
amargura. Culpa um ator acima de todos os outros: os Estados Unidos.
“A
América matou as pessoas e destruiu o Iraque. Estavam só atrás do petróleo”,
diz, citando a invasão de 2003 como a fonte do caos atual que o forçou a
imigrar. Apesar do seu papel na criação desse deslocamento em massa, nem os
Estados Unidos nem seus aliados europeus naquela guerra estão fazendo muita
coisa para receber os refugiados gerados por sua ocupação fracassada.
À
medida em que eu viajava com as pessoas em busca de asilo em sua caminhada pela
Grécia, ouvi várias histórias semelhantes de afegãos, cujo deslocamento tem
raiz nas despojos da invasão de 2001. E dezenas de refugiados sírios falaram
que fugiram de seu país por causa da natureza aparentemente interminável da
guerra regional por procuração que o está destruindo. Embora culpem Assad por
sua brutalidade, culpam igualmente os Estados Unidos, a Europa e seus aliados
do Golfo Pérsico e da Turquia por inundar o país com armas e soldados que
agravaram o conflito.
Ainda
assim, nos campos de trânsito da ilha de Lesbos não há sinal algum de que a
Europa assumirá responsabilidade por uma crise política que está levando
milhares de pessoas a essas condições insuportáveis de vida. Ao contrário, a
tarefa de cuidar dos refugiados tem sido largada para voluntários locais e meia
duzia de ONGs subequipadas.
O
resultado são dois campos não administrados na ilha pelo qual todos devem
passar. O local tem apenas alguns banheiros, que são sobreutilizados e pouco
limpos. A comida é providenciada por voluntários locais ou vendida por preços
inflacionados por carrinhos de comida e cantinas, que tentam explorar o
desespero das pessoas. Os únicos chuveiros são torneiras ligadas a cercas, sem
teto ou cobertura, e as pessoas têm que se lavar ao ar livre, onde todos podem
vê-las.
Se
a pessoa não consegue encontrar lugar em alguma das tendas de exército doadas,
ou tem que pagar caro por apetrechos de acampamento ou dormir na sujeira, com
pouca sombra e cercada pelo cheiro de milhares de outros cozinhando no calor
mediterrâneo. É aqui que eles esperam durante dias, planejando por celulares
sua viagem rumo ao Norte e Oeste e assistindo a vídeos do Youtube, com dicas de
como driblar a polícia de fronteira.
“Tenho
que relembrar meu tempo no Zaire (agora conhecido como República Democrática do
Congo) no começo da guerra civil para dizer qual foi a última vez em que estive
em um acampamento não gerenciado”, diz Kink Day, líder da equipe responsável
por emergências do Comitê Internacional de Resgate (IRC, em inglês), em Lesbos.
Ele está chocado com o fato de que mesmo depois de anos trabalhando em zonas de
conflito, o IRC seja necessário na Europa. Ele nota que sem dinheiro, vontade
ou habilidade do governo para lidar com os refugiados produzidos por esses
conflitos, a crise na Grécia era completamente previsível. “Essa é a crise humanitária
mais política que já vi. É uma batata quente política”, afirma.
Essas
tensões estão tão visíveis nas ruas de Lesbos quanto no Parlamento da União
Europeia. Os apoiadores locais do partico fascista grego Golden Dawn se
locomovem pela ilha, ameaçando refugiados e ativistas que os ajudam. Muitos
gregos sentem simpatia pelos que estão atrás de proteãço, mas muitos outros os
acusam de perturbar o turismo e consumir recursos.
Guardas
de segurança em praias públicas retiram agressivamente jovens sírios que querem
nadar, afirmando que isso incomoda os turistas. Quase ninguém reconhece que
estao injetando dinheiro em cafés e restaurantes locais no entorno da cidade de
Mytilini. E como um agente de viagem que insistiu em permanecer anônimo me
disse, “esses caçadores de asilo são muito bons em vender tíquetes de balsa”.
Quando
finalmente recebem seus documentos gregos de registo de refúgio, as pessoas
deixam Lesbos tão rápido quanto possível em balsas com destino a Atenas. O
convés dos grandes barcos em que viajam parece com uma mistura de um cruzeiro
mediterrâneo e uma embarcação de evacuação de zona de guerra, com turistas
queimados de sol e pessoas que pedem asilo atropelando-se pelos assentos com a
melhor vista e a brisa mais fresca.
“Continuo
dizendo aos caras que estamos juntos nesta viagem diz Johnny Mhanna, um ator de
24 anos de idade de Damasco, que voou para Beirute em 2013 para evitar o
alistamento pelas forças de Assad. Ele e seus nove outros compnaheiros de
viagem estavam passaram a achar que era impossível construir uma vida estável
no Líbano, onde a população cresceu um quarto por conta do influxo sírio,
enquanto o governo se recusa a reconhecer que aqueles que fogem da guerra são
refugiados.
Sem
conseguir voltar para a Síria, eles decidiram buscar estabilidade na Áustria ou
Alemanha. Ainda assim, se alguém ouvir por alto a conversa deles, será fácil
confundir esse grasnar de jovens de bigodes e cabelo bagunçado, vestindo
camisetas inglesas irônicas e mexendo em seus iPhones, com uma festa hipster.
Assim
que o navio aporta em Atenas, eles se encaminham diretamente à rodoviária. Os
que buscam asilo, assim como muitos dos sírios e iraquianos que passam por
Atenas, pulam em trens e ônibus que rumam para a cidade costeira de
Thessaloniki no mesmo dia e de lá dirigem-se à fronteira grega com a Macedônia
o mais rápido possível.
Muitos
afegãos, apesar disso, param em Atenas para descansar por muitos dias e
planejar seus próximos passos. A maior parte esteve em viagens mais longas e
caras, passando pelo Paquistão e Irã antes de entrar na Turquia, e têm menos
dinheiro. Histórias de tiros contra eles dados pelos guardas da fronteira e
abusos pela polícia iraniana, exército e traficantes são comuns.
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