quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Angola. Luaty Beirão. PROTESTO OU SUICÍDIO?



José Mena Abrantes – Rede Angola, opinião

Na segunda metade do mês de Abril de 1981, Sidgurd Friedrich Debus morreu numa prisão de Hamburgo, Alemanha, depois de se ter recusado a comer durante mais de dois meses. Cerca de duas semanas mais tarde, numa prisão de Belfast, Irlanda do Norte, um jovem de 27 anos, Bobby Sands, morreu em consequência de uma greve de fome que se arrastou também durante mais de dois meses.

Sidgurd Debus, militante da RAF (Rote Armee Fraktion – Fracção do Exército Vermelho), exigia melhores condições prisionais, fim do isolamento carcerário e estatuto de “prisioneiro de guerra”. Bobby Sands, combatente do IRA (Exército Republicano Irlandês), exigia melhores condições prisionais, fim do isolamento carcerário e estatuto de “prisioneiro político”. Pouco antes havia sido eleito para a Câmara dos Comuns em Londres (Parlamento britânico).

Sidgurd Debus não aceitava o que considerava ser a “democracia totalitária” existente na Alemanha e combatia a presença norte-americana em território alemão. Bobby Sands lutava, em plena Europa do capitalismo, da democracia e dos direitos humanos, pela independência do seu país e contra a presença britânica em território irlandês.

Nem as autoridades alemãs nem as britânicas atenderam às reivindicações de qualquer dos dois, deixando que eles levassem as suas opções até às últimas consequências. Debus morreu quase sem ninguém dar por isso. “Que se suicide. O problema é dele” – desabafou à imprensa um alto representante britânico dias antes da morte de Sands.

Trinta e quatro anos depois destes dramas ocorridos na Europa, um cidadão angolano, Luaty Beirão, faz há cerca de três semanas uma greve de fome por se considerar vítima de uma detenção ilícita e de uma acusação sem fundamento. A queixa contra ele foi entretanto formalizada e o seu processo remetido a Tribunal para julgamento, depois de uma longa instrução preparatória que terá alegadamente violado os prazos legais.

Essas eram duas das exigências que teriam inicialmente justificado a greve, não só dele mas também de outros jovens igualmente detidos que depois de alguns dias a interromperam. Só Luaty a prossegue. O caso tem estado a provocar muita comoção junto de uma parte significativa da sociedade angolana, que se mobilizou em vários actos de solidariedade para com ele. Também no exterior continuam a aumentar as manifestações a favor da sua libertação.

Nas redes sociais há quem apele para que ele não se deixe morrer, por ser mais útil à sociedade vivo, e quem o estimule a continuar a resistir, assumindo-se como bandeira de um movimento de protesto contra a governação do país. Entre esses dois extremos se situa a complexidade da questão, que só tenderá a agravar-se a cada dia que passa.

É pouco crível, na linha dos exemplos citados, que as autoridades abram um precedente que possa dar azo a que no futuro todos os casos desta ou de qualquer outra natureza se venham a resolver de forma extra-judicial. A ser assim, nunca mais haveria ninguém detido, nem aqui nem em qualquer outro lado. Bastava o sacrifício de uma greve de fome mais ou menos prolongada para a pessoa ser restituída à liberdade sem estarem cumpridas outras condições.

Por muito que isso possa afectar a sensibilidade e a preocupação legítima de quem neste momento se solidariza com Luaty Beirão e admira a sua coragem de pôr em risco a própria vida para fazer valer a sua razão, a verdade nua e crua é só uma: só a ele cabe decidir se leva o seu protesto até ao martírio, deixando-se morrer pela causa em que acredita, ou se se mantém vivo para provar a sua inocência e adoptar outras formas de luta menos drásticas.

Em teoria, enquanto alguém se mantiver lúcido e com pleno domínio das suas faculdades mentais, ninguém tem o direito de contrariar o que esse alguém entende fazer da própria vida. Tal foi, por exemplo, o caso dramático dos monges budistas que durante a guerra do Vietname chegaram a imolar-se pelo fogo para protestar contra a ocupação do seu país pelas tropas norte-americanas.

Se Luaty Beirão decidiu que não vai comer enquanto não lhe forem reconhecidos direitos que tem como legítimos e que implicariam a sua libertação incondicional e imediata, não é a entidade que encaminhou o seu caso ao Tribunal, nem a polícia que o mantém sob custódia, que o podem forçar a recuar nessa sua decisão. E como o tempo não pára, cada vez se aproxima mais o momento limite para que essa decisão seja mantida ou revertida.
Aqui cabe invocar as palavras de abertura da peça ‘Viver sem tempos mortos’, uma compilação de textos de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, levada à cena em 2008 pela grande actriz brasileira Fernanda Montenegro:

“O homem é uma realidade finita que existe por sua própria conta e risco. O homem irrompe no mundo e depois é que se define, mas no princípio ele é nada. Ele não será nada até o que fizer de si mesmo: logo, não há natureza humana, porque não há Deus para concebê-la. O homem simplesmente é não apenas o que concebe de si mesmo, mas o que deseja ser. (…) O homem está lançado e entregue ao determinismo do mundo, que pode tornar possíveis ou impossíveis as suas iniciativas. Esta contingência é a liberdade na relação do homem com o mundo. O acaso é que tem a última palavra”.

Em 1991 escrevi e publiquei uma trilogia dramática intitulada ‘O Pássaro e a Morte’. Uma das peças trata de um indivíduo que hesita em suicidar-se à beira de um abismo. Alguns dos passantes que o vêem nessa situação apelam para que não salte, enquanto outros o estimulam, já que então, a concretizar o acto. No momento em que o candidato a suicida decide finalmente dar ouvidos a quem lhe pede para não se matar escorrega, cai e morre.

A peça chama-se ‘O suicidiota’ e pretende ser uma comédia. Espero sinceramente que a cena real em que o Luaty Beirão está envolvido, também com vozes contraditórias sobre o que ele deve ou não fazer, não se venha a transformar por um qualquer irreversível deslize numa tragédia.

A equação final, por dramática ou chocante que possa soar, resume-se a isto: Querem o Luaty morto, fazer dele um mártir? Continuem a encorajá-lo na sua decisão com as vigílias, as orações, as manifestações de solidariedade e os apelos às autoridades… Querem o Luaty vivo? Convençam-no a parar a greve de fome, porque já demonstrou com a sua atitude tudo o que havia para ser demonstrado!

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