José
Mena Abrantes – Rede Angola, opinião
Na
segunda metade do mês de Abril de 1981, Sidgurd Friedrich Debus morreu numa
prisão de Hamburgo, Alemanha, depois de se ter recusado a comer durante mais de
dois meses. Cerca de duas semanas mais tarde, numa prisão de Belfast, Irlanda
do Norte, um jovem de 27 anos, Bobby Sands, morreu em consequência de uma greve
de fome que se arrastou também durante mais de dois meses.
Sidgurd
Debus, militante da RAF (Rote Armee Fraktion – Fracção do Exército Vermelho),
exigia melhores condições prisionais, fim do isolamento carcerário e estatuto
de “prisioneiro de guerra”. Bobby Sands, combatente do IRA (Exército
Republicano Irlandês), exigia melhores condições prisionais, fim do isolamento
carcerário e estatuto de “prisioneiro político”. Pouco antes havia sido eleito
para a Câmara dos Comuns em Londres (Parlamento britânico).
Sidgurd
Debus não aceitava o que considerava ser a “democracia totalitária” existente
na Alemanha e combatia a presença norte-americana em território alemão. Bobby
Sands lutava, em plena Europa do capitalismo, da democracia e dos direitos
humanos, pela independência do seu país e contra a presença britânica em
território irlandês.
Nem
as autoridades alemãs nem as britânicas atenderam às reivindicações de qualquer
dos dois, deixando que eles levassem as suas opções até às últimas
consequências. Debus morreu quase sem ninguém dar por isso. “Que se suicide. O
problema é dele” – desabafou à imprensa um alto representante britânico dias
antes da morte de Sands.
Trinta
e quatro anos depois destes dramas ocorridos na Europa, um cidadão angolano,
Luaty Beirão, faz há cerca de três semanas uma greve de fome por se considerar
vítima de uma detenção ilícita e de uma acusação sem fundamento. A queixa
contra ele foi entretanto formalizada e o seu processo remetido a Tribunal para
julgamento, depois de uma longa instrução preparatória que terá alegadamente
violado os prazos legais.
Essas
eram duas das exigências que teriam inicialmente justificado a greve, não só
dele mas também de outros jovens igualmente detidos que depois de alguns dias a
interromperam. Só Luaty a prossegue. O caso tem estado a provocar muita comoção
junto de uma parte significativa da sociedade angolana, que se mobilizou em
vários actos de solidariedade para com ele. Também no exterior continuam a
aumentar as manifestações a favor da sua libertação.
Nas
redes sociais há quem apele para que ele não se deixe morrer, por ser mais útil
à sociedade vivo, e quem o estimule a continuar a resistir, assumindo-se como
bandeira de um movimento de protesto contra a governação do país. Entre esses
dois extremos se situa a complexidade da questão, que só tenderá a agravar-se a
cada dia que passa.
É
pouco crível, na linha dos exemplos citados, que as autoridades abram um
precedente que possa dar azo a que no futuro todos os casos desta ou de
qualquer outra natureza se venham a resolver de forma extra-judicial. A ser
assim, nunca mais haveria ninguém detido, nem aqui nem em qualquer outro lado.
Bastava o sacrifício de uma greve de fome mais ou menos prolongada para a
pessoa ser restituída à liberdade sem estarem cumpridas outras condições.
Por
muito que isso possa afectar a sensibilidade e a preocupação legítima de quem
neste momento se solidariza com Luaty Beirão e admira a sua coragem de pôr em
risco a própria vida para fazer valer a sua razão, a verdade nua e crua é só
uma: só a ele cabe decidir se leva o seu protesto até ao martírio, deixando-se
morrer pela causa em que acredita, ou se se mantém vivo para provar a sua
inocência e adoptar outras formas de luta menos drásticas.
Em
teoria, enquanto alguém se mantiver lúcido e com pleno domínio das suas
faculdades mentais, ninguém tem o direito de contrariar o que esse alguém
entende fazer da própria vida. Tal foi, por exemplo, o caso dramático dos
monges budistas que durante a guerra do Vietname chegaram a imolar-se pelo fogo
para protestar contra a ocupação do seu país pelas tropas norte-americanas.
Se
Luaty Beirão decidiu que não vai comer enquanto não lhe forem reconhecidos
direitos que tem como legítimos e que implicariam a sua libertação
incondicional e imediata, não é a entidade que encaminhou o seu caso ao
Tribunal, nem a polícia que o mantém sob custódia, que o podem forçar a recuar
nessa sua decisão. E como o tempo não pára, cada vez se aproxima mais o momento
limite para que essa decisão seja mantida ou revertida.
Aqui cabe invocar as palavras de abertura da peça ‘Viver sem tempos mortos’, uma compilação de textos de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, levada à cena em 2008 pela grande actriz brasileira Fernanda Montenegro:
Aqui cabe invocar as palavras de abertura da peça ‘Viver sem tempos mortos’, uma compilação de textos de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, levada à cena em 2008 pela grande actriz brasileira Fernanda Montenegro:
“O
homem é uma realidade finita que existe por sua própria conta e risco. O homem
irrompe no mundo e depois é que se define, mas no princípio ele é nada. Ele não
será nada até o que fizer de si mesmo: logo, não há natureza humana, porque não
há Deus para concebê-la. O homem simplesmente é não apenas o que concebe de si
mesmo, mas o que deseja ser. (…) O homem está lançado e entregue ao
determinismo do mundo, que pode tornar possíveis ou impossíveis as suas
iniciativas. Esta contingência é a liberdade na relação do homem com o mundo. O
acaso é que tem a última palavra”.
Em
1991 escrevi e publiquei uma trilogia dramática intitulada ‘O Pássaro e a
Morte’. Uma das peças trata de um indivíduo que hesita em suicidar-se à beira
de um abismo. Alguns dos passantes que o vêem nessa situação apelam para que
não salte, enquanto outros o estimulam, já que então, a concretizar o acto. No momento
em que o candidato a suicida decide finalmente dar ouvidos a quem lhe pede para
não se matar escorrega, cai e morre.
A
peça chama-se ‘O suicidiota’ e pretende ser uma comédia. Espero sinceramente
que a cena real em que o Luaty Beirão está envolvido, também com vozes
contraditórias sobre o que ele deve ou não fazer, não se venha a transformar
por um qualquer irreversível deslize numa tragédia.
A
equação final, por dramática ou chocante que possa soar, resume-se a isto:
Querem o Luaty morto, fazer dele um mártir? Continuem a encorajá-lo na sua
decisão com as vigílias, as orações, as manifestações de solidariedade e os
apelos às autoridades… Querem o Luaty vivo? Convençam-no a parar a greve de
fome, porque já demonstrou com a sua atitude tudo o que havia para ser
demonstrado!
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