José
Eduardo Agualusa – Rede Angola, opinião
Nos
últimos dias vários estrangeiros que acompanham o julgamento dos “revús” têm
vindo ter comigo para me dizer que, finalmente, compreenderam de onde vem a
minha inspiração e a de tantos outros escritores angolanos. A intrusão do
absurdo na realidade – algo bastante distinto do chamado realismo mágico
– que acreditavam ser uma característica da literatura angolana, nada mais é,
afinal, senão uma característica da própria realidade angolana. Sorrio e
confirmo. Sim, eis um romance pronto: uma acusação de golpe de Estado que se
baseia na leitura de um livro de resistência pacífica e numa lista, discutida a
várias vozes nas redes sociais, de um futuro governo de salvação nacional, cujo
presidente seria o líder messiânico sobrevivente de um massacre governamental.
Envergonha-te,
Kafka! Este não é um processo kafkiano, este é um processo angolano!
Se
o enredo é extraordinário, na sua magnífica implausibilidade, os personagens
não ficam atrás. O que dizer da procuradora que se esconde, envergonhada, atrás
de uma vasta e despenteada franja? Um tremendo achado. Só a realidade angolana,
na sua extravagante e generosa e imprevisível loucura, conseguiria urdir um
personagem assim. Abençoada realidade.
Os
réus, num gesto dramático, digno do melhor Shakespeare, entraram descalços. Às
acusações de que alguns deles teriam sido espancados no interior do próprio
tribunal, respondeu o porta-voz dos serviços prisionais, Menezes Kassoma: “O
que se deu é que no principio da manhã, o recluso Mbanza Hamza tentou trazer
uma parte do colchão da prisão para esta instituição, que é o Tribunal, e,
felizmente, ele foi impedido. Em função desta situação, negava-se a descer da
viatura para entrar para cela e foi persuadido a entrar.”
Quem
escreve os diálogos? Quero conhecer o autor dos diálogos! Acho-o um um génio. Reparem na qualidade e acerto dos eufemismos: Mbanza Hamza, impedido
(felizmente!) de trazer um pedaço do colchão para cela onde os presos aguardam
pela entrada no tribunal, a partir das quatro da manhã, foi “persuadido” a
descer da viatura, e a entrar. Parece que um bastão elétrico ajudou muito na
amável tentativa de persuasão, mas isso é apenas um pormenor técnico.
Cada
dia nos traz um capítulo novo deste fantástico romance. Independentemente do
epílogo, é já certo que a imagem do regime angolano, e, por extensão, do
Presidente José Eduardo dos Santos, não sairá muito beneficiada.
O
grande inimigo do regime não são os “revús”. Não é Rafael Marques. Não é sequer
a UNITA democrática, essa que na última semana deu um belo show, escolhendo o
seu futuro presidente, entre três candidatos, e debatendo em público dúvidas
internas, futuro e programa – parabéns aos maninhos!
O
grande inimigo do regime, meus amigos, é o MPLA. Quando, daqui a três ou quatro
décadas, se escrever a história destes tempos conturbados (mas também
divertidos) ficará claro que os principais responsáveis pelo derrube de José
Eduardo dos Santos terão sido alguns dos seus camaradas mais próximos.
Enquanto
o meu querido xará desliza, aflito, em direcção ao inadiável fim, vamos nós
rindo – que o circo continua.
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