sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O PROCESSO (ANGOLANO)



José Eduardo Agualusa – Rede Angola, opinião

Nos últimos dias vários estrangeiros que acompanham o julgamento dos “revús” têm vindo ter comigo para me dizer que, finalmente, compreenderam de onde vem a minha inspiração e a de tantos outros escritores angolanos. A intrusão do absurdo na realidade –  algo bastante distinto do chamado realismo mágico – que acreditavam ser uma característica da literatura angolana, nada mais é, afinal, senão uma característica da própria realidade angolana. Sorrio e confirmo. Sim, eis um romance pronto: uma acusação de golpe de Estado que se baseia na leitura de um livro de resistência pacífica e numa lista, discutida a várias vozes nas redes sociais, de um futuro governo de salvação nacional, cujo presidente seria o líder messiânico sobrevivente de um massacre governamental.

Envergonha-te, Kafka! Este não é um processo kafkiano, este é um processo angolano!

Se o enredo é extraordinário, na sua magnífica implausibilidade, os personagens não ficam atrás. O que dizer da procuradora que se esconde, envergonhada, atrás de uma vasta e despenteada franja? Um tremendo achado. Só a realidade angolana, na sua extravagante e generosa e imprevisível loucura, conseguiria urdir um personagem assim. Abençoada realidade.

Os réus, num gesto dramático, digno do melhor Shakespeare, entraram descalços. Às acusações de que alguns deles teriam sido espancados no interior do próprio tribunal, respondeu o porta-voz dos serviços prisionais, Menezes Kassoma: “O que se deu é que no principio da manhã, o recluso Mbanza Hamza tentou trazer uma parte do colchão da prisão para esta instituição, que é o Tribunal, e, felizmente, ele foi impedido. Em função desta situação, negava-se a descer da viatura para entrar para cela e foi persuadido a entrar.”

Quem escreve os diálogos? Quero conhecer o autor dos diálogos! Acho-o um um génio. Reparem na qualidade e acerto dos eufemismos: Mbanza Hamza, impedido (felizmente!) de trazer um pedaço do colchão para cela onde os presos aguardam pela entrada no tribunal, a partir das quatro da manhã, foi “persuadido” a descer da viatura, e a entrar. Parece que um bastão elétrico ajudou muito na amável tentativa de persuasão, mas isso é apenas um pormenor técnico.

Cada dia nos traz um capítulo novo deste fantástico romance. Independentemente do epílogo, é já certo que a imagem do regime angolano, e, por extensão, do Presidente José Eduardo dos Santos, não sairá muito beneficiada.

O grande inimigo do regime não são os “revús”. Não é Rafael Marques. Não é sequer a UNITA democrática, essa que na última semana deu um belo show, escolhendo o seu futuro presidente, entre três candidatos, e debatendo em público dúvidas internas, futuro e programa – parabéns aos maninhos!

O grande inimigo do regime, meus amigos, é o MPLA. Quando, daqui a três ou quatro décadas, se escrever a história destes tempos conturbados (mas também divertidos) ficará claro que os principais responsáveis pelo derrube de José Eduardo dos Santos terão sido alguns dos seus camaradas mais próximos.

Enquanto o meu querido xará desliza, aflito, em direcção ao inadiável fim, vamos nós rindo – que o circo continua.

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