Depois
da Grécia, e em condições com alguns pontos de contacto e abundantes
dissemelhanças, Portugal está a deixar a União Europeia perante um novo teste
ao conceito de democracia que pretende tornar único no universo dos 28 Estados
membros. Na Grécia, por razões que agora não vêm ao caso uma vez que, como
costuma dizer-se, “quem mora no convento é que sabe o que lá vai dentro”, os
tecnocratas à solta em Bruxelas e que ninguém elegeu conseguiram fazer vingar
as suas vozes de pequenos gauleiters do grande reich do mercantilismo.
Como
será em Portugal no caso de os acordos estabelecidos à esquerda se
transformarem num governo legítimo acima de qualquer suspeita, imaculado nos
termos da mais elementar democracia?
Uma
primeira dedução creio não levantar dúvidas. As afirmações de soberania popular
contra a crueldade autoritária de Bruxelas começaram pelos dois países mais
fustigados e destratados pela arbitrariedade austeritária. O que não acontece
por acaso: os povos, por mais conformados que pareçam, não aceitam eternamente
as cangas com que lhes carregam os corpos e, mais tarde ou mais cedo, lá chega
o dia das surpresas.
Surpresas
para alguns, sem dúvida: os partidos portugueses até agora governantes – e os
seus gémeos em escala europeia - ainda não recuperaram do choque com o que lhes
está a acontecer através da derrocada do “arco da governação”, erguido sobre
caboucos de segregação e apartheid político que supostamente lhes outorgava o
direito natural, quiçá divino, de governarem ad aeternum como se as
eleições não passassem de pró-formas.
Agora,
a maioria parlamentar portuguesa, unida em torno de objectivos muito claros e
democráticos, propõe-se governar pondo as pessoas em primeiro lugar,
privilegiando os direitos destas e não as supostas legitimidades dessa entidade
arrogante mas volátil, cruel mas cada vez mais difusa conhecida como “mercado”.
Nada, afinal, de muito surpreendente: a maioria parlamentar portuguesa
limita-se a seguir os caminhos livres da democracia e a fazer funcionar a
soberania do voto popular genuinamente expresso, tudo aquilo que Bruxelas,
respectivos mentores e súbditos pregam mas não praticam.
De
modo que a declaração de soberania que devolve a Portugal um orgulho e uma
esperança que se julgavam perdidos vem questionar, no fundo, a essência actual
da própria União Europeia, sobretudo a partir do momento em que instaurou a
austeridade como política única a cargo de um sistema de falsificação da
democracia através de um partido único com dois polos, o tal “arco da
governação”.
O
sr. Rajoy, um neofranquista que trata os povos do Estado espanhol como lacaios
que o servem e à casa real, diz que “não gosta” do que acontece em Portugal. Em
boa verdade, ninguém lhe pediu opinião, mas já que a dá serve para entender o
espírito que percorre o espaço da União, provavelmente desde a Península até
aos revanchistas fascistoides do Báltico, pequeninos mas com os dentes bem
aguçados pelos donos em Berlim. Ao ponto de Bruxelas parecer mais incomodada
com o governo que ainda não existe em Portugal e as suas previsíveis
declarações de soberania perante os mercados do que com as preocupações da
senhora Le Pen, aterrorizada com “a epidemia bacteriana da imigração”, isto é,
as supostas doenças contagiosas trazidas pelos refugiados e que mancham a
pureza sanitária dos franceses, um mal que ela promete erradicar se lhe
entregarem os bastões governamentais.
De
qualquer modo deixemos o teste no ar. O que mais tira o sono aos tecnocratas
austeritários de Bruxelas? O eventual governo de esquerda em Portugal
construído segundo as normas básicas da democracia e da soberania nacional? Ou
declarações racistas e incendiárias, potencialmente pré governamentais,
proferidas por uma dirigente política de um dos dois mais poderosos países da
União que não esconde o seu programa fascista mas respeita sabujamente “o
mercado”?
Creio
que sabemos a resposta. Por isso a União Europeia deu no que deu.
*em
Mundo Cão
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