domingo, 20 de dezembro de 2015

Espanha. PODEMOS, DA INDIGNAÇÃO NAS PRAÇAS AO ASSALTO DO PALÁCIO MONCLOA



Com apoio social e práticas adaptadas aos novos tempos, o Podemos foi capaz de mudar para sempre a forma de se fazer política na Espanha.

Roberto Vasques e Rose Segurado, desde Madrid, especial para Carta Maior

Neste alvorecer de século, como um sopro premonitório daquilo que poderia marcar uma época de mudança civilizatória, os povos de distintas partes do planeta lograram mover as estruturas do sistema-mundo político e questionar seus oligarcas.

O que mal parecia uma suave brisa em Tunes ganhou corpo, atravessou o deserto e, como um tufão, culminou na Primavera Árabe. Sem perder força, cruzou o Mediterrâneo, inspirou o surrado povo grego e propiciou o surgimento do Movimento dos Indignados na Espanha.

Conhecidos como Movimento 15M – em referência à data do início da ocupação da Porta do Sol (praça central de Madri), 15 de Maio de 2011– os indignados espanhóis foram a resposta cidadã aos efeitos da crise econômica internacional sobre aquele povo ibérico. Esse descontentamento, em virtude da dramática deterioração das condições socioeconômicas, abrirá passo à incorporação de uma dimensão política a esta crise e resultará no questionamento de velhos consensos estabelecidos no Pacto da Moncloa. A Instituição Monárquica, o Concordato com a Igreja Católica, a questão territorial (e suas tensões independentistas) eo modelo de representação política (partidos, seus líderes e a legislação eleitoral) eregidos na Constituição de 1978 serão postos em cheque

Essa contundente interpelação cidadã ao status quo advogaria por mais democracia e participação política e revelaria o profundo mal-estar social com a classe política (principalmente dos dois grandes partidos), identificada como autocentrada e corrupta. Palavras de ordem como “Lo llaman democracia y no lo es” e “No nos representan” foram entoadas à exaustão por multidões que ocuparam as praças ao longo de todo o território nacional. Uma crise de legitimidade que ficaria conhecida como a “crisis del Régimen”.

Entretanto, dado seu caráter eminentemente multitudinário e autogestionário, assim como sua desconfiança com o sistema político, o 15M não vislumbrou em sua agenda a construção de uma alternativa política que pudesse canalizar institucionalmente suas demandas.

Paradoxalmente, nas eleições presidenciais de novembro de 2011, alguns meses após o ciclo de manifestações, o Partido Popular conseguiria o seu melhor resultado desde a redemocratização, alcançando uma maioria absoluta que lhe permitiria governar sem restrições. Não obstante, em termos nominais, sua votação seria muito próxima à adquirida nas presidenciais anteriores, de março de 2008, quando obtivera pouco mais de 10 milhões de votos. O triunfo do PP resultava portanto, em grande medida, da vertiginosa queda no total de votantes do PSOE que, com mais de 4 milhões de eleitores perdidos, alcançaria seu pior resultado desde a redemocratização do país em 1977. A desastrosa gestão da crise no segundo governo de Zapatero, tanto econômica como política, custaria caro aos socialistas.

Os biênio subsequente (2012-2013) colocaria em evidência a decomposição do sistema político vigente.  Governo e oposição –  assim como os demais partidos, monarquia, sindicatos patronais e de trabalhadores, meios de comunicação e demais instituições – promoveram um espetáculo de insensibilidade social e abuso de velhas práticas políticas para a perplexidade da cidadania.

Aproveitando-se do poder conferido por sua maioria parlamentar, o PP, sob a escusa de enfrentar a crise e dar conta da herança maldita recebida, poria em prática um duríssimo ajuste fiscal, assim como um conjunto de medidas arbitrárias e casuísticas, fragilizando o Estado de Direito, os direitos humanos, as liberdades civis e a pluralidade política. Autoritário e arrogante, não por acaso foi o último partido a incorporar, ainda que timidamente e com muita relutância, as mudanças na forma e na agenda políticas trazidas pelo Podemos.

O PSOE – aturdido após seu pior resultado eleitoral pós-redemocratização e com dificuldades de rearticular seu discurso frente às críticas às políticas do final do Governo Zapatero – não lograva se reoxigenar, elegendo como Secretario Geral a Alfredo Perez Rubalcaba, velha guarda do partido e último Vice-Presidente político de Zapatero. Com discurso e imagem vinculados à velha política, Rubalcaba se mostrou um líder frágil frente ao pacote de maldades levado adiante pelo governo Rajoy. Não emplacou. Não sem razão, seria pressionado a renunciar, abrindo espaço para que, em julho de 2014, Pedro Sanchez, um economista madrileno de 43 anos, assumisse a secretaria geral do partido. Como a grande maioria dos partidos, o PSOE se via obrigado a seguir o paradigma imposto por Podemos e iniciar uma operação de “câmbio cosmético”, acudindo um líder jovem, com discurso jovem, que “jogasse fora a gravata e dobrasse a mangas da camisa”.

Nessa cruzada, o governo contaria com o total apoio dos setores empresariais que, por sua vez, exigiriam mais rigor fiscal e flexibilização laboral, sob a égide de lograr maior competitividade à economia. Os meios de comunicação em uníssono, com maior ou menor fervor, apoiariam o duríssimo ajuste econômico e ecoariam o mantra do governo pelo qual a responsabilidade pela crise seria de todos os espanhóis que “haviam vivido por cima de suas possibilidades” nos anos que anteriores.

Os principais sindicatos, também debilitados pela crise de legitimidade que golpeava a todas as instituições democráticas do país, se revelavam sem força para encampar e liderar as reivindicações das classes trabalhadoras e populares e se veriam arrastados para a lama, imersos em alguns dos sem número de casos de corrupção que viriam a luz nesse período.

Simultaneamente, a semente do 15M começava a germinar, principiando o surgimento de uma série de novos movimentos sociais. Entre eles, merecem destaque as Marés (“Las Mareas”, em relação a “enxurrada” de pessoas participantes) contra os cortes em saúde (Maré Branca) e em educação (Maré Verde), bem como os movimentos a favor dos direitos dos imigrantes (alvo das políticas xenófobas e racista executadas pelo Governo) e dos desempregados (desde 2009 a Espanha se depararia com índices de desemprego ao redor de 25% de sua força de trabalho).

Também merece destaque o Movimento Juventude Sem Futuro – que pôs em evidência o drama social resultante dos alarmantes índices de desemprego juvenil, superiores aos 50%, e o consequente processo de emigração massiva sofrido por aquela que seria reconhecida pela sociedade espanhola como a geração mais preparada e estuda (gerando outra Maré, a Granate/Lilás) de toda sua história. Das fileiras deste movimento proveriam, mais adiante, grande parte dos quadros políticos e militantes do Podemos.

Significativas também, foram as iniciativas populares de apoio aos setores sociais em risco de pobreza e exclusão social. Segundo dados da Cáritas/Oxfam, esses setores abarcariam quase 30% da população espanhola. Este drama social levou, inclusive, ao aparecimento de ações diretas, como o saque a supermercados na Andaluzia ou os “escraches”, espécie de caricaturas intimidadoras nas casas dos políticos indentificados como corruptos e pertencentes à casta.

No entanto, a cara mais visível desses novos movimentos sociais possivelmente tenha sido assumida pela “PAH”: Plataforma dos Afetados pelas Hipotecas. Espaço responsável pela articulação e defesa das dezenas de milhares de famílias que se viram obrigadas a abandonarem suas casas frente à impossibilidade de honrarem com o pagamento de seus empréstimos imobiliários, em virtude do estouro da famosa bolha imobiliária que arrasou a Espanha (basta recordar que a recém eleita prefeita de Barcelona, Ada Colau, era a porta-voz dessa entidade. Do mesmo modo, diversos líderes das distintas Marés se elegeram vereadores e deputados estaduais). Esta bolha se caracterizou por um processo através do qual se generalizava o crédito imobiliário às famílias, a taxas subsidiadas, mas em condições draconianas (como não prever a dação como amortização da dívida). Com a crise, se multiplicaram exponencialmente os casos de descumprimento contratual (inadimplência), levando centenas de milhares de famílias a devolverem seus imóveis e, ainda assim, continuarem responsáveis pelo pagamento das dívidas contraídas.

Em decorrência desta perversão contratual, não pouco foram os casos de suicídios de chefes e chefas de família que – já desmoralizados frente a uma perversa situação na qual eram socialmente recriminados como únicos responsáveis pela perda de seus empregos e de suas casas – preferiram tirar suas vidas para evitar a vergonha social e por acreditar que com isso diminuiriam o sofrimento de seus familiares ao lhes desobrigar de continuarem a pagar suas dívidas imobiliárias.

Frente a esta situação, o governo espanhol não demonstraria a menor sensibilidade, negando-se a discutir a agenda sugerida pela PAH – que advogava a suspensão temporária dos despejos, a instituição da “dación en pago” nos contratos hipotecários (ou seja, o cancelamento da dívida mediante a entrega do imóvel) e a criação de uma política de aluguel social

Se a intransigência foi a regra para as famílias despejadas, com a outra ponta dos contratos, ou seja, os bancos credores, imperaria a camaradagem. Com a justificativa de evitar-se um “risco financeiro sistêmico”, o governo aceitaria ser “resgatado” pela União Europeia, destinando mais de 60 milhões de euros ao “salvamento” das instituições financeiras credoras. Como resultado, os bancos seriam beneficiados com generosas quantias a juros ultra-subsidiados (as quais ainda não se está claro se serão devolvidas) para reequilibrarem seus balanços, ao mesmo tempo em que seguiam tomando os imóveis de seus credores inadimplentes, chegando-se a pitoresca situação na qual os bancos se transformavam em enormes agências imobiliárias, administrando milhares de imóveis residenciais entre seus ativos .

A situação encontra sua dimensão mais burlesca quando, ao mesmo tempo em que os cidadãos são responsabilizados pela crise e os bancos perdoados, os escândalos de corrupção se multiplicam vertiginosamente, maculando ainda mais a já desgastada imagem dos partidos políticos.

Contudo, até o final de 2013 as mobilizações iniciadas com o 15M e continuadas pelos novos movimentos sociais não encontrarão alternativas institucionais. Levada a  um ponto insustentável, será a partir de janeiro de 2014 que começarão a surgir os primeiros sinais de alternativa institucional, quando, em um manifesto intitulado “Mover Ficha”, assinado no Teatro do Bairro de Lavapiés, é fundado o Podemos.

Evitando renunciar à disputa político-parlamentar e buscando uma alternativa de regeneração democrática, o Podemos se apresenta a sociedade como um instrumento que pudesse canalizar institucionalmente o conjunto de demandas surgidas no calor do 15M: o partido da mudança.

Definindo-se como um Partido-movimento, o Podemos se apresenta como uma alternativa cidadã para disputar as eleições ao Parlamento Europeu de 25 de maio de 2015. Sob a batuta de Pablo Iglesias, um jovem professor de ciências políticas, em apenas 4 meses e com um orçamento irrisório vindo da contribuição voluntária dos cidadãos, o partido logra inscrever-se na junta eleitoral, convocar primárias abertas ao conjunto da cidadania e percorrer todo o país realizando comícios em praças públicas. Contrariando todas as pesquisas, elege 5 eurodeputados

O ponto de partida de sua estratégia –  ao tempo que incorporava as diversas reinvindicações dos movimentos emergidos do 15M em seu programa – foi a construção de uma nova narrativa social capaz de articular um discurso através do qual se desacreditava o relato de que “todos somos responsáveis” pela crise por havermos vividos “por cima de nossas possibilidades” .

Segundo esse novo relato, os verdadeiros responsáveis pela crise seriam, em primeiro lugar, a casta política (figura de linguagem utilizada pelos líderes do Podemos), isto é, uma elite política corrupta e envelhecida que manejaria a coisa pública de forma patrimonialista, como de seus negócios privados se tratasse, distribuindo entre grupos de empresários e banqueiros amigos contratos e obras públicas. As críticas também se dirigiriam à subserviência dos governos do PP e do PSOE aos ditames da Troika (formada pelo Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI) e da “Sra Angela Merkel”, responsabilizando-lhes pela mitigação da soberania nacional e pelo desmantelamento do estado de bem estar social espanhol em favor dos interesses financeiros dos bancos alemães e franceses, em detrimento do já empobrecido povo espanhol. Como repetirião a exaustão os líderes do Podemos: “Se portam como se fossem mordomos de um minoria de privilegiados, quando deveriam se portar como carteiros dos cidadãos”.

Além de definir novos responsáveis pela crise, o discurso da Formação “Morada” (Rouxa) – em referência à cor do partido, homenagem à Bandeira Republicana, na qual o roxo se somava ao amarelo e vermelha da bandeira monárquica – subverterá também a velha lógica de confrontação política entre esquerda e direita, apresentando-se como um partido transversal, orientado a busca de um novo pacto social no país, realocando a fronteira política entre a defesa dos interesses de “los de abajo” versus a de “los de arriba”: os interesses do povo frente aos da Troika, cuidadosamente zelados pela “Casta”.

A difusão desse discurso seguiu uma estratégia revolucionaria em termos de comunicação política. Se fundamentou em uma utilização estratégica das redes sociais associada ao trabalho da imagem do jovem líder político que, a partir de seu programa de debate político em uma emissora de tv à cabo, é alçado a debatedor habitual de programas de tertúlia política nos principais canais televisivos. Assim, fez-se conhecido pela maioria do eleitorado e difundiu amplamente sua mensagem.

O acerto e precisão no diagnóstico e estratégia de comunicação não foram fruto do acaso. Seus líderes fundadores foram capazes de ler a situação política com maestria. Atentos às mais avançadas críticas contemporâneas à democracia, os líderes “podemitas” lograram inclusive estabelecer uma nova forma de fazer política, ou seja, definiram um conjunto de novas práticas, diferenciando-lhes das formações políticas tradicionais, a partir de três princípios básicos: transparência, austeridade e democratização.

A promoção da transparência política se faz através da disponibilização em seu portal de internet, em tempo real, de toda a movimentação financeira do partido. Também, ainda que não exigido pelo legislação espanhola, todos os cargos da direção do partido, bem como seus representantes eleitos, disponibilizam nesse portal suas declarações de renda.

Quanto à austeridade e exemplaridade no cumprimento da função política, todos os cargos do Podemos, orgânicos ou eletivos, estão sujeitos a um teto salarial de três salários mínimos (aproximadamente 1950 euros), assim como a viajar somente em classe turista e renunciar aos benefícios eventualmente oferecidos aos seu parlamentares, como planos de pensão e saúde privados, motoristas e carros oficiais, cartões corporativos entre outros. Também está limitado, pelo Estatuto do Partido, o período de participação em cargos públicos. Foi definido um máximo de 8 anos, prorrogáveis por mais quatro, mediante aprovação prévia pela Assembleia do Partido. Com essa iniciativa, busca-se promover um novo entendimento do exercício de representação política, por meio do qual a atividade parlamentar deixa de ser entendida como um fim em si mesma e passa a ser compreendida como uma contribuição temporal do cidadão à gestão dos temas coletivos.  Ao final do período de dedicação política, o cidadão regressa à sua carreira profissional, abrindo espaço para que outros participem.

Nesse sentido, resulta paradigmática a proibição estatutária à indicação de ex-representantes do Podemos a que participem dos Conselhos de Administração de empresas privadas prestadoras de serviços aos órgãos do estado. Combater essa situação amplamente condenada socialmente, conhecida como “Portas Giratórias”, resultou uma das principais bandeiras do Podemos. Vista como caso paradigmático de tráfico de favores e influências entre os velhos partidos e as grandes empresas, as Portas giratórias alcançaram sua expressão máxima nas figuras dos ex-presidentes José Maria Aznar e Felipe González, assim como mais de uma dezena de ex-ministros dos governos do PP e do PSOE.

Outra medida emblemática diz respeito ao financiamento do partido. Os estatutos partidários proíbem a solicitação de empréstimos bancários, restringindo seu financiamento à realização de aporte de militantes e simpatizantes. Nesse sentido, o Partido aceita doações mensais de pessoas físicas que variam entre 5 e 50 euros, além de recorrem, em cada campanha eleitoral, aos mecanismos de crowfounding e de microcrédito através do qual os cidadãos emprestam entre 100 e 1.000 euros ao partido, valores devolvidos alguns meses após as eleições quando, segundo a legislação espanhola, o governo ressarce aos partidos parte de seus gastos de campanha.

No que tange ao impulso democratizante, o partido se caracteriza por ser o primeiro a ter eleições abertas através de sua página na internet para todos os cargos eletivos. Também de forma direta e aberta a toda a cidadania, se elegem todos os cargos do partido, assim como o programa de governo para as eleições presidenciais. Da mesma forma, são escolhidos os projetos sociais a serem financiados pelo fundo partidário formado pelos recursos oriundos da diferença entre os salários recebidos e o salários pagos (3 salários mínimos) aos cargos públicos do partido.

Apoio social, discurso e práticas políticas adaptados aos novos tempos e novas lideranças representando o frescor, preparo e honestidade almejados. Com isso, o Podemos foi capaz de mudar para sempre a forma de se fazer política na Espanha. Porém, ainda faltava constituir uma estrutura partidária forte, capaz de cruzar o país.

Ciente da oportunidade aberta, Pablo Iglesias faz um emblemático discurso na praça diante do Museu Rainha Sofia, noite do dia 25 de maio de 2014, após conhecer os resultados das eleições que outorgaram ao partido as surpreendentes 5 vagas no Parlamento Europeu. Contrariando todas as expectativas, Iglesias se apresenta com semblante sério, cenho franzido e vaticina: “Por enquanto não cumprimos nosso objetivo de superar nossos adversários... Não nascemos para ser uma força política testemunhal. Nascemos para ocupar a centralidade do tabuleiro político, para ganhar. A partir de amanhã vamos trabalhar sem descanso para tirar a ‘Casta’ do Poder e voltar a por as instituições ao serviço dos interesses de seus cidadãos”.

A partir de então, começa o processo de criação do Partido. Se de início a constituição emergencial de uma sigla política foi,  nas palavras de seu líder, um “imperativo legal” que permitiu lançar uma alternativa política às eleições europeias, agora se tratava de construir coletivamente um partido capaz de abrigar e representar os novos anseios populares.

Ao longo do segundo semestre de 2014, o Podemos passa por um longo processo participativo que culmina na Assembleia Cidadã de Vista Alegre (em referência ao nome análogo do ginásio poliesportivo que acolheu o evento), na qual se votam, contando com a participação de mais de 100 mil pessoas,  os princípios políticos, éticos e organizativos do partido. Também desse processo, resulta Pablo Iglesias eleito Secretário Geral do Partido. Além disso, se definem os “Círculos” como a estrutura de organização de base do partido, responsável por promover a participação, tanto territorial como temática, e os rumos da legenda. Centenas de círculos aparecem não só na Espanha como fora do país.

O Podemos inicia o ano de 2015 consciente do calendário eleitoral. Assim, convoca uma manifestação multitudinária para o último dia do mês de janeiro. Iglesias é apoiado por mais de 200 mil pessoas que enfrentam o rigoroso  inverno madrilenho e abarrotam a “Puerta del Sol” em apoio ao Podemos e ao seu líder.

O partido provoca uma verdadeira reviravolta política. As pesquisas de opinião são unanimes em apontar seu crescimento exponencial, chegando a leva-lo a quase 30% de intenção de votos para presidente e, por conseguinte, principal força política do país.

É quando se acendem as luzes de emergência do status quo e o Podemos passa a ser alvo de um ataque político-midiático orquestrado e sem precedentes. De jovem simpático que ajudava a regenerar o sistema político (tirando os políticos de turno de suas zonas de conforto), Iglesias se transforma em uma verdadeira ameaça aos poderes constituídos, que intensificam o ataque visando enfraquecê-lo.

Nos dois meses seguintes, o partido e seus líderes ocuparão, de forma negativa, as manchetes, editoriais e colunas de opinião de todos os grandes jornais e emissoras de radio e televisão do país. Terão suas vidas minuciosamente vasculhadas, analisadas e devassadas. Sofrerão golpes diuturnamente, à exaustão.

O fato é que esses ataques surtem parcial efeito, debilitando a jovem organização. Em menos de dois meses, de líder nas pesquisas de opinião, o Podemos volta a situar-se como terceira força política. Por sua vez, o pequeno partido de perfil liberal, “Ciudadanos”, criado em 2006, vai ganhando enorme respaldo midiático. Em contraposição ao que se chamaria da mudança populista, em relação ao Podemos, é apresentado ao eleitorado como o verdadeiro representante da “mudança responsável”. Louvado por empresários, Ciudadanos viria a dividir o espaço político da mudança. Surfando na onda impulsionada por Podemos, apresenta-se como alternativa de regeneração democrática, contra a corrupção sistêmica e pelo frescor político. Seu líder, assim como o de Podemos, é um jovem político, Albert Rivera, de 35 anos. Esse administrador de empresas e ex-bancário, que vinha construindo sua carreira política de forma marginal, há 8 anos, conquista, quase sem esforço, um espaço privilegiado. O sistema se acalma. O perigo representado pelo Podemos encontrava mais uma contenção.

Enquanto isso, dava início ao que se convencionou chamar “ciclo político acelerado”. Em menos de um ano se realizam eleições estaduais na Andaluzia (março), seguida de eleições municipais em todo o país e na maioria dos estados (maio), de eleições para o governo da Catalunha (setembro) e se convocam para 20 de dezembro as eleições presidenciais. Descontadas as eleições para governador na Galícia e no País Basco, ambas previstas para 2016, todos os demais cargos eletivos do país foram ou serão se submetidos ao escrutínio popular ainda este ano. Essa situação sem precedentes no país, acentuou ainda mais o processo de “crise de Régimen”, reforçando o fim do bipartidarismo do PP-PSOE vigente durante 40 anos.

Desse ciclo eleitoral, resultará um quadro político bastante novo. Ainda que o PP e PSOE tenham se mantido como maiores partidos, a sangria de votos é inequívoca. PP e PSOE perderam todas as maiorias absolutas que possuíam nos governos estaduais (“Comunidades Autónomas”), sendo obrigados a uma experiência absolutamente nova para governar: pactuar. O Podemos e o Ciudadanos surgem como forças políticas novas, transformando o bipartidarismo em uma espécie de tetrapartidarismo. Por conseguinte, seja quem for o ganhador das eleições presidenciais, se virá obrigado a pactuar para chegar ao “Palacio de la Moncloa”.

Paralelamente, as gestões dos “gobiernos del cambio” (alianças populares em sua maioria impulsionadas e encabeçadas por Podemos), como no caso das duas maiores cidades do país, até aqui muito bem avaliadas pela população, serão um permanente elemento de pressão e contraponto entre a velha e nova política. Nas palavras de Iglesias: “Madrid y Barcelona son el motor del cambio”.

No entanto, embora continuem em franca decomposição, os dois grandes partidos resistem, concentrando ainda a maior parcela de poder, sobretudo nos rincões do país. Por sua vez, os novos partidos, Podemos e Ciudadanos, continuam se fortalecendo, sem contudo assumir o protagonismo almejado. O velho não termina de morrer e o novo não termina de nascer. Nada mais preciso que as palavras de Gramsci para explicar o momento de transformações no sistema político espanhol.

Há menos de um mês das eleições presidenciais, as perspectivas seguem abertas. Ainda que as pesquisas apontem para uma vitória do PP, que alcançaria entre 23% e 27%, o grau de incerteza é grande, deixando aberto o resultado.

A partir de uma campanha eleitoral exemplar, o Podemos retomou o fôlego e disputa palmo a palmo com o PSOE o segundo lugar, com intenções votos ao redor dos 20%. Ciudadanos, ao contrário, vê suas intenções de votos baixarem nas últimas semanas.

O caso do Ciudadanos é curioso. Nas eleições estaduais e municipais de maio o partido havia obtido um resultado bastante abaixo do que previam as pesquisas, relegado a quarta força política, bem atrás do Podemos. Ensinando sua vocação pelo poder, o partido laranja não hesitou em apoiar a investidura de governos do PP e do PSOE. Foi a muleta ideal para, por exemplo, garantir a permanência dos governo do PP de Madrid e do PSOE de Andaluzia, tidos como expressões máximas desses partidos quanto às tramas de corrupção e ao clientelismo político. No entanto, nas eleições de setembro para o governo da Catalunha o partido alcança uma excelente votação, ao mesmo tempo que Podemos obtém seu pior resultado.

Em função da blindagem mediática e do êxito nas eleições catalãs, Ciudadanos começa a campanha presidencial da melhor maneira possível. Algumas pesquisas chegaram a apontar a possibilidade de passar ao PSOE, colocando-o inclusive com possibilidades de superar ao PP e ser o grande vencedor da disputa presidencial. Contudo, o partido não conseguirá decolar e irá desinflando progressivamente. A inconsistência de suas propostas, o permanente ir e vir de uma postura ideológica a outra, assim como as derrapadas de seu candidato (com questões de gênero, com propostas contra o sentido comum, como um salário de 300 mil euros anuais para o Presidente de Governo etc) exporiam suas fragilidades e fariam com que o partido chegue ao dia da eleição, ao que parece, já relegado a sua posição anterior de linha assessoria dos velhos partidos.

Não é de se estranhar que faltando 48h para a votação, Albert Rivera viesse a público apontar, ao contrário do que havia dito durante toda a campanha, sua disposição em abster-se no processo de votação do governo, abrindo passo para que o PP voltasse a governar o país. Desde os bastidores, a explicação seria a pressão advinda dos poderes econômico-midiáticos que apoiaram ao partido, exigindo-lhe que, frente à sua caída expressiva, voltasse a assumir seu viés de centro-direita e seu papel de muleta do PP.

De forma diametralmente oposta, o Podemos inicia a campanha eleitoral fragilizado. Algumas pesquisas chegam dar-lhe exíguos 11% de intenção de votos, vaticinando ao Partido o papel de nova IU (Izquierda Unida, conglomerado entre o PC español e outras forças de esquerda), ou seja, a força de extrema esquerda marginal no sistema político. No entanto, o partido seria capaz de rearticular o diálogo com as forças políticas emergentes ao longo do território espanhol. Não por acaso, apresenta-se em listas conjuntas com os movimentos populares e cidadãos nas Comunidades Autônomas de Catalunha, Valência e Galícia. Nesses comunidades, a sigla “Podemos” será substituída, respectivamente, por “En Comun Podem”, “Compromís-Podemos” e “En Marea”.

De forma complementar, o partido voltou a mostrar ser o mais preparado e hábil na elaboração e realização de uma campanha política. Com um reduzido orçamento (2,2 milhões de euros), menor inclusive que o orçamento da Izquierda Unida, mas com o melhor dos candidatos, o partido promoverá uma “remontada”(virada) verdadeiramente emocionante. Nesse sentido, será determinante a atuação de Pablo Iglesias nas entrevistas televisivas e, sobretudo, nos debates eleitorais: um verdadeiro monstro político, nocauteando impiedosamente a seus adversários, sem perder a elegância, com muita inteligência, contundência e sagacidade.

Por sua vez, o PP fez uma campanha conservadora, ciente de sua cômoda vantagem nas pesquisas. Ainda que perda 40% dos votos que teve em 2011, o partido assumiu que melhor seria perder os anéis e conservar os dedos: perde-se a maioria absoluta, mas fica com a maior votação.

Ao PSOE, a campanha será marcada pelo desespero em tentar se conservar como segunda força política. O fantasma de uma “pasokização” (em referência ao seu homólogo grego, o “Pasok”, grande partido social democrata que junto com o “Nova Democracia” hegemonizou a política grega mas que atualmente se reduziu a força política marginal, incapaz de alcançar 10% dos votos nas 3 últimas eleições).

Em todo caso já se pode falar de perdedores e vencedores. No primeiro caso os partidos tradicionais. O Bipartidarismo, que nas seis eleições presidenciais celebradas nos últimos vinte anos somava entre 73% e 83% dos votos, dessa vez dificilmente alcançará os 50%. Além disso, as recentes e desesperadas manifestações do PSOE tentando associar o Podemos a União Soviética, Venezuela e Grécia, bem como sua postura frente ao “independentísmo” catalão e aos atentados de Paris, os aproximam ao PP e a Ciudadanos e mostram seu grau de anacronismo. No segundo caso, dos vencedores, o Podemos, que foi capaz de mudar profundamente a forma de fazer política no país. A agenda social e regeneração democrática voltaram ao centro do debate. Todos os partidos lançaram candidatos jovens, tiraram as gravatas e modernizaram os discursos e práticas políticas.

Podemos inicia a campanha com voto consolidado entre os eleitores jovens, urbano e com elevado nível educacional. Não por acaso, constitui-se como força política preferida entre estudantes. A tarefa pendente é ampliar seu voto aos eleitores de municípios pequenos e com menores níveis de escolaridade. Quanto à faixa etária, embora tenho maior concentração de votos entre os mais jovens, Podemos apresenta um apoio repartido de forma equilibrada entre os distintos segmentos etários. A exceção se dá entre eleitores maiores de 55 anos, onde o voto do partido diminui consideravelmente, permanecendo em aberto sua capacidade de penetração nesse extrato etário.

De forma geral, o desafio para Podemos passaria por buscar situar-se à frente do PSOE (“sorpaso”) e se legitimar como grande partido de oposição a um eventual governo do PP. Caso seja a segunda força, outra possibilidade seria formar governo com apoio dos parlamentares do PSOE e da IU. Assim, forçaria ao velho PSOE, como acontece na prefeitura de Madrid, a dar um giro em suas políticas e resgatar bandeiras esquecidas nos últimos anos. Caso contrário, com o PSOE à frente, o Podemos dificilmente conseguiria pressionar-lhe para que promovesse as mudanças necessárias para que o país voltasse a crescer e a promover a justiça social. Em todo caso, ser terceira ou quarta força com algo entre 15% e 20% já seria um excelente resultado para a formação “morada”, ainda mais num cenário no qual nenhum partido alcançaria os 30%.

Como mostram as pesquisas da última semana, Podemos vem em trajetória ascendente e, na última pesquisa eleitoral, da véspera da eleição, finalmente se situa como segunda força política, tanto em intenção direta de voto (16% contra 13,3% do PSOE) como na intenção de voto estimulada (21,5 contra 20,1% do PSOE).  Também por primeira vez nas pesquisas, há menos de 24h das eleições, o Podemos consegue o que parecia impossível: ultrapassar ao PSOE no número de vagas no parlamento, com um intervalo estimado entre 80 e 84 deputados, frente ao intervalo de 76-80 deputados para o PSOE.

Em todo caso, o grande vencedor dessas eleições é o conjunto dos povos deste lindo e diverso espaço plurinacional (para alguns, mal) chamado Espanha.  Decididos a não esquecer as patifarias de sua casta plutocrática, hoje, eles votam, votam “cambio”! E votam com um sorriso, porque o anelo de mudança se faz realidade: já o acariciamos a vitória com  as pontas dos dedos. Pablo Iglesias não se cansa de repetir: “Mudamos a política deste país. Agora nos falta mudar o parlamento e o governo”. Que assim seja, neste domingo! Sí se puede!

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