domingo, 6 de dezembro de 2015

UMA FAMÍLIA SÍRIA COMO AS NOSSAS



"E podemos ver o mar?" Esta foi uma das poucas perguntas que Ali fez sobre Portugal, para onde viajou com a mulher e as três filhas, depois de "resgatados" na estação de comboios de Viena de Áustria pela caravana de solidariedade Famílias Como as Nossas. Sim, podem ver o mar. Está a dois passos da sua nova casa, em São Martinho do Porto

Praia de São Martinho do Porto, domingo de manhã. Os barcos ancorados na baía têm a proa virada para a esquerda. Vai chover nas próximas horas, há de garantir quem aqui mora, mas por enquanto só estamos rodeados de cinzento. As nuvens, o mar, os quadrados da camisa de um homem, e até o pelo de um cão que quer brincadeira, alinham na monocromia. É pena. Nos filmes, os finais felizes vêm com céu azul, nem toda a gente gosta de cantar à chuva.

Daqui a uns tempos, talvez o homem da camisa aos quadrados ache graça saber que no século XIX chamavam "bidé das marquesas" a esta estância balnear do concelho de Alcobaça por causa da nobreza que aqui passava o verão. Mas, hoje, um dia e meio depois de pisar solo português, Ali Badri Alkhamis, 38 anos, não precisa de piadas nem de sol para sorrir. Basta-lhe que as três filhas, de 9, 7 e 4 anos, estejam a correr na praia, às gargalhadas atrás de uma bola amarela, um dos muitos presentes que receberam à chegada a Portugal.

Durante a viagem entre Viena de Áustria e Lisboa, mais de três mil quilómetros feitos quase sem paragens à boleia da caravana Famílias Como As Nossas, Ali perguntou se ia poder ver o mar. Nuno Félix, o mentor e motor da iniciativa de apoio a refugiados, respondeu-lhe com o seu sorriso-conquista-desconhecidos e duas frases: o mar ia ficar-lhe à vista do terraço de casa; uns minutos a pé e tê-lo-ia à sua espera todos os dias.

Foi por isso para a praia que Nuno decidiu trazer Ali, com a mulher, Nada, 27 anos, e as filhas, Dima, Inas e Rimas, logo na sua primeira manhã em São Martinho do Porto. Ao fim de um bocado, já as três miúdas se misturavam com os seus quatro filhos, Henrique, Pilar, Manel e Gastão, como se todos se conhecessem. E Ali, que de início se deixara a uma distância respeitável da água, haveria de se aproximar da rebentação de mão dada com a filha mais nova.

BOAS-VINDAS COM 'HALVA'

Estaria apenas a apreciar a beleza do lugar? Ou será que o mar lhe traz à memória a perigosa travessia entre a Turquia e a Grécia, feita há menos de três semanas? Não chegamos a perguntar-lhe porque Richard e Frank (seus vizinhos no condomínio onde Nuno e a mulher, Vera, conseguiram um apartamento emprestado), têm duas embalagens de halva para oferecer. Halva é um doce típico do Médio Oriente, feito de sementes de sésamo torradas, moídas e misturadas com açúcar, explica-nos Francisco (Frank) Amaral, um açoriano que foi para o Canadá em bebé e há três anos abriu uma "mercearia do mundo" em São Martinho, a Union Jacs. Um doce que, no caso, serve para dar as boas-vindas a esta família síria.

Richard Paul estende as caixinhas a Ali, que lhe agradece em inglês. Depois, diz com a voz mais rouca: "A minha família fugiu da Roménia durante o Holocausto, por isso sei bem aquilo por que estão a passar."

O cão ladra que se farta na direção da bola fluorescente - é a deixa para Richard e Frank fazerem a sua saída e Vera juntar as hostes porque o mercado da vila está quase a fechar. Vera quer apresentar o casal sírio aos vendedores a quem ela e Nuno costumam comprar peixe, legumes e fruta, na esperança de que o "dois em um" programado corra bem. Um: o casal sírio fica a conhecer os cantos à casa. Dois: a operação de charme servirá para limar a eventual má vontade contra a vinda de refugiados de guerra para São Martinho.

O "dois em um" há de transformar-se num "três em um": Ali e Nada aproveitam para levar batatas, tomate, pepinos, beringelas, pimentos, maçãs e um raminho de salsa. Querem ser eles a fazer o almoço para toda a gente.

O 'HIJAB' NÃO É UM PORMENOR

Antes da passagem pelo mercado, o grupo é abordado no caminho por uma senhora que encosta o carro para cumprimentar os estrangeiros. "Bem-hajam!", repetirá Maria do Carmo Pinto de Eliseu, os apelidos a denunciarem uma ligação antiga à vila. Se todos por aqui agirem como ela, a família de Ali sentir-se-á rapidamente em casa. A passagem pelo mercado gerou alguns olhares de soslaio e ouviu-se a palavra "bomba" sussurrada por um homem mal-encarado, mas pode ser que as gentes se habituem a ver Nada com o lenço a cobrir-lhe o cabelo e o pescoço por razões religiosas. Inshallah.

A diferença, já se sabe, é muitas vezes um fator de exclusão nas terras pequenas, e São Martinho do Porto tem poucos habitantes - 2 868 em 16 km2. Na freguesia das Avenidas Novas, onde a Mesquita Central de Lisboa foi construída em 1985, moram 21 625 pessoas numa área cinco vezes menor. Durante o dia, a zona acaba por ser bastante multicultural e encontram-se com frequência mulheres de cabeça coberta.

O hijab não é um pormenor, percebeu Nuno quando, na tarde de quarta-feira, 30 de setembro, abordou Ali na estação central de Viena, a abarrotar com centenas de refugiados, à espera de uma oportunidade de viajar para a Alemanha. Os corredores estão cheios de gente a dormir no chão, as paredes cobertas de caras sob a palavra "Missing", tantas são as famílias separadas durante a fuga. Em dois minutos, o português explicou, com a ajuda de um voluntário, que gostaria de levar uma família de refugiados para junto de sua própria família. Mostrou fotografias dos quatro filhos, avisou que o salário mínimo em Portugal é menor do que na Alemanha e que a viagem representaria riscos legais. Ali ouviu tudo calado e, no final, só quis saber se a mulher iria poder usar o lenço fora de casa. "Claro, a minha avó também usava", respondeu Nuno, lembrando a tradição que ainda se mantém em muitas aldeias portuguesas.

QUASE TODOS PAIS DE FILHOS

Mas estamos a pôr o carro à frente dos bois, como se costuma dizer para criticar os apressados, embora já sobrem poucos carros de bois em Portugal. Quem leu o artigo sobre a missão da caravana Famílias Como As Nossas na edição anterior e o "diário de bordo" que foi sendo publicado no site pode saltar os próximos parágrafos. Os outros, façam o favor de acompanhar. Tudo começou com uma conversa entre os amigos Nuno Félix e Pedro Policarpo, ambos pais de quatro filhos e ambos com menos de 40 anos. Face às notícias da crise dos refugiados na Europa, não eram capazes de continuar a olhar para o lado e decidiram meter-se nos seus carros a caminho da Croácia. No regresso, anunciaram no Facebook, haveriam de trazer famílias como as deles, com o objetivo de lhes proporcionar vidas melhores. E quem viesse por bem que se juntasse à dupla (mais copilotos), sabendo que iria por sua conta e risco.

Uns dias antes da partida, Nuno dizia à VISÃO: "O mínimo que se deve fazer é acolher provisoriamente estas pessoas." Socorrê-las rapidamente. "Lembrem-se do princípio de quem anda no mar", comparava. "Vemos um náufrago e não vamos analisar se há espaço no barco." Quando lhe perguntavam se poderiam ser detidos nalguma fronteira, respondia que só podia garantir que não fariam nada sem estarem salvaguardados por uma argumentação jurídica sólida. "Se analisarmos a Convenção de Genebra e o Estatuto do Refugiado, ninguém pode dizer que estas pessoas não preenchem todos os requisitos."

Dali a uma semana, na tarde de sexta-feira, 25, apareceram em Belém outros quatro carros com gente disposta a fazer mais de seis mil quilómetros para ir buscar refugiados de guerra. Gente diferente entre si mas afinada pelo mesmo diapasão. Gente pronta a fazer a viagem no menor número de horas possível, a dormir em andamento se necessário.

Era esse o espírito de Pedro Mourão Lapa, de 46 anos, Vera Valério Batista, 39, Bárbara Guevara, 35, Rita Rugeroni, 32, Paulo Leão, 44, David Franco, 46, Carlos Alcário, 32, e Carlos Neves, 42. E ainda de André Ponte, 37, e Tiago Raimundo, 24, que se tinham oferecido para copilotos de Nuno Félix e Pedro Policarpo. No grupo havia empresários e gestores, mas também um estudante, uma enfermeira, um artista plástico e duas locutoras de rádio. O que fazem não é importante. "Venho porque tenho filhos", ouviríamos à maioria.

O destino final seria a Croácia mas, logo em Madrid, juntou-se Carolina, uma videógrafa portuguesa, e em Milão subiu a bordo o apresentador de televisão João Manzarra, amigo de Bárbara e Rita, e que, por compromissos profissionais, ficaria apenas até à noite de terça-feira, 29. Enquanto acelerávamos, em Portugal prosseguiam os contactos no terreno. A Eslovénia chegou a ser uma hipótese, descartada à chegada a Liubliana porque os refugiados já se encontravam em centros. A Croácia acabaria por tornar-se num dos momentos mais fortes da viagem, com a visita a Opatovac, um campo junto à fronteira com a Sérvia. Foi aí que os portugueses deixaram todos os bens trazidos de Lisboa e compraram mais de dois mil euros em roupa para o inverno. E foi aí que ficou parte dos corações da caravana. Dói ver refugiados a saírem das carrinhas da polícia apenas de calções e sandálias, cobertos por ponchos de plástico que deixam passar a chuva.

De Opatovac, o grupo seguiria em direção a Viena porque as notícias mostravam a estação central cheia de gente. Mas nessa quarta-feira, 30 de setembro, nem todos decidiriam continuar viagem. Pedro Policarpo e André Ponte já tinham desistido uns dias antes, por questões pessoais. Os outros sentiam-se quase todos desconfortáveis com a ideia de terem de fazer a oferta diretamente às pessoas e com a hipótese de serem barrados numa fronteira. "Se for como à entrada na Sérvia...", lembrou alguém. Ali, um europeu que seja intercetado a passar com ilegais paga uma multa de 400 euros, e os refugiados são imediatamente detidos.

Reunido o grupo num dos cafés da Wien Hauptbahnhof, contam-se os resistentes: Vera Batista, Pedro Lapa e Paulo Leão. Dois carros com lugar para nove refugiados, no total, porque o monovolume de Nuno sofreu uma avaria na Hungria. "Vamos lá!", anima Leão, dono de uma empresa de transportes urgentes, que se pela por missões impossíveis.

Ali e Nada não foram os primeiros a ouvir o convite dos portugueses, mas seriam os mais rápidos a decidir. E aceitaram logo escrever uma declaração em como vinham para Portugal voluntariamente e tinham consciência de que poderiam ser detidos durante a viagem. Já haviam corrido riscos bem maiores, na viagem desde a Síria. "Tive medo até à Áustria", confessa agora Nada. "Sempre que passávamos uma fronteira pensava que a polícia ia deter-nos. Expliquei às minhas filhas que íamos em segredo, elas tinham de estar caladas."

VINTE E CINCO DIAS À ESPERA DE UM BARCO

Entre a Síria e a fronteira com a Turquia, os cinco foram andando de carrinha em carrinha, de traficante em traficante. Dentro da Turquia, juntaram-se a um grupo de duzentas pessoas para fazer uma longa caminhada. Era de noite, Rimas foi passando das cavalitas do pai para as de um tio, que hoje está na Alemanha, e Dima e Inas revezavam-se num carrinho de bebé empurrado por Nada. Os rapazes mais novos do grupo seguiam na frente; no caso de haver perigo, correriam para trás, a avisar os outros.

Ainda na Turquia, Ali demorou vinte e cinco dias até conseguir cinco lugares num barco que atravessasse o mar até à Grécia. Nada e as miúdas choraram durante as duas horas e meia de viagem e Ali sentiu-se entre a vida e a morte. Só respirou quando o barco, com seis metros de comprimento e quarenta e sete pessoas a bordo, chegou a terra firme. "Nesse momento, nasci outra vez", diz, sorrindo, na segurança do seu quarto em São Martinho, mostrando no telemóvel as fotografias que alguém tirou à família, ainda com coletes salva-vidas.

Os cinco foram registados na chegada à Grécia e deviam apresentar-se às autoridades gregas em novembro, mas meteram pés ao caminho. Ali tem dois irmãos na Alemanha, era para lá que planeavam ir. Chegariam a Viena depois de passar pela Macedónia, Sérvia, Croácia e Hungria, gastando mais de 6 500 euros.

IR À ESCOLA E BRINCAR NUM JARDIM

Dima tem 9 anos, Inas 7 e Rimas 4. São baixinhas para a idade que consta no documento de família mas mostram-se autónomas e obedientes. O pai conta que elas passaram os últimos meses na Síria a correr para a cave sempre que se ouvia uma bomba cair. "Ficávamos lá quatro ou cinco horas e eu dizia-lhes que as bombas estavam longe para não terem tanto medo."

O dia a dia da família alterara-se há já muito tempo. Com a guerra, tinham-se acabado os passeios e até as idas à escola. Nada chegou a ser ameaçada na rua por usar um hijab em vez do niqab, que deixa apenas ver os olhos. Em janeiro deste ano, Ali tomou a decisão de fugir com a família depois de fechar o seu ateliê de alfaiate e vender uma pequena loja de ourivesaria. Órfão de mãe desde os 7 anos, morrera-lhe o pai um ano antes, com um ataque cardíaco. O sogro foi raptado e nunca mais apareceu. Viu vários familiares serem presos e todos os dias lhe chegavam notícias da morte de amigos.

Nada resistiu como pôde até aceitar que o futuro passaria pela Europa. "No início, não gostei da ideia", admite, "porque a cultura é diferente e pensava que não iam receber-nos bem." Mas, a partir do momento em que decidiu, organizou tudo de forma a tornar a viagem menos difícil. "Preparei as minhas filhas: disse-lhes que quando chegássemos iam poder ir à escola e brincar num jardim, o sonho delas é fazerem isso." Antes de fugirem da Síria, há um mês e meio, combinou com o marido que todos comeriam e beberiam o menos possível para evitar idas à casa de banho, e que as miúdas usariam sempre fraldas.
A estratégia manter-se-ia imutável entre Viena e Elvas, já no carro conduzido por Nuno e Vera, porque o ideal seria parar em zonas de descanso durante o dia e usar as áreas de serviço à noite. Era preciso não chamar a atenção. Por estes dias, uma mulher de hijab num monovolume com matrícula portuguesa levanta suspeitas. Há muitos traficantes de pessoas a operar na Europa e as autoridades apertaram o controlo nas fronteiras.

'IMORAL É NÃO OS AJUDAR'

Posto alfandegário austríaco na fronteira com a Itália, fim da tarde de quinta-feira, ?1 de outubro. No carro da equipa de reportagem da SIC, onde seguimos à boleia desde a Hungria, gelamos. O carro de Pedro Lapa, conduzido por Nuno, é mandado encostar porque falta a vinheta necessária para aceder às autoestradas na Áustria - são 140 euros de multa. Uma distração fatal que levou o funcionário a reparar em Nada. Pediu os passaportes de toda a gente, proibiu Nuno de usar o telemóvel e chamou a polícia.

Começaram os telefonemas de e para Portugal porque Nuno ainda conseguira avisar a mulher e ligar para dois contactos que tinham prometido valer-lhe em caso de surgir algum problema grave. O tempo passa. Meia hora? Uma hora? Vera, enfermeira e psicóloga clínica, pede a Ali que traduza para Nada uma desculpa de meia tigela: os austríacos só vão querer revistar o carro para ver se há droga ou armas. As miúdas mantêm-se sossegadas, como lhes pede a mãe. Começa a escurecer quando dois polícias chegam numa carrinha com espaço para levar uma dúzia de pessoas. A família será detida e interrogada, e vão registar os últimos telefonemas de Nuno, avisam. "As autoridades portuguesas não mandam aqui."

A repórter da SIC, Teresa Conceição, sabe alemão, um trunfo, descobriremos daqui a pouco. O polícia mais velho acusa os portugueses de estarem a fazer uma coisa imoral. Bastou essa frase para ela dizer que imoral é haver uma guerra na Síria há quatro anos,  não ajudar as pessoas que estão a fugir e condenar quem tenta dar-lhes a mão. "Esta é uma iniciativa de pais de família que só querem ajudar os refugiados", explicou.

O polícia hesitou e voltou atrás na palavra - a família de refugiados poderia seguir caminho desde que pagasse uma multa de 200 euros por circular na Áustria sem documentos. "Ainda bem que foram parados aqui, na Itália iam todos presos", disse o homem à despedida, apontando para a placa de fronteira, uns metros à frente.

Relembramos tudo isto na segunda-feira, 5 de outubro, enquanto esperamos que Ali, Nada e as filhas saiam do gabinete do SEF, em Lisboa, onde estão há várias horas a regularizar a situação. O pedido de asilo fora entregue sexta à noite, mal entraram em Portugal. Agora, ficaram numa sala do rés do chão, acompanhados por dois ?advogados pro bono, André Miranda e Diana Nunes, enquanto Nuno Félix foi chamado ao primeiro andar.

"Fomos muito bem recebidos", dirá Nuno, à saída, todo sorrisos. As três miúdas riem à gargalhada, querem beijinhos e pedem para dançar a valsa ao colo de alguém. Ali leva a mão ao peito, no lado do coração, e agradece em volta. Mas o sorriso mais delicioso é o de Nada - até se esquece de pôr a mão à frente da boca, como devem fazer as mulheres muçulmanas. Já se sente em casa.

Rosa Ruela (texto) – Tiago Miranda (fotos) -  Foto: Tiago Miranda - Visão

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