"E
podemos ver o mar?" Esta foi uma das poucas perguntas que Ali fez sobre
Portugal, para onde viajou com a mulher e as três filhas, depois de
"resgatados" na estação de comboios de Viena de Áustria pela caravana
de solidariedade Famílias Como as Nossas. Sim, podem ver o mar. Está a dois
passos da sua nova casa, em São Martinho do Porto
Praia
de São Martinho do Porto, domingo de manhã. Os barcos ancorados na baía têm a
proa virada para a esquerda. Vai chover nas próximas horas, há de garantir quem
aqui mora, mas por enquanto só estamos rodeados de cinzento. As nuvens, o mar,
os quadrados da camisa de um homem, e até o pelo de um cão que quer
brincadeira, alinham na monocromia. É pena. Nos filmes, os finais felizes vêm
com céu azul, nem toda a gente gosta de cantar à chuva.
Daqui
a uns tempos, talvez o homem da camisa aos quadrados ache graça saber que no
século XIX chamavam "bidé das marquesas" a esta estância balnear do
concelho de Alcobaça por causa da nobreza que aqui passava o verão. Mas, hoje,
um dia e meio depois de pisar solo português, Ali Badri Alkhamis, 38 anos, não
precisa de piadas nem de sol para sorrir. Basta-lhe que as três filhas, de 9, 7
e 4 anos, estejam a correr na praia, às gargalhadas atrás de uma bola amarela,
um dos muitos presentes que receberam à chegada a Portugal.
Durante
a viagem entre Viena de Áustria e Lisboa, mais de três mil quilómetros feitos
quase sem paragens à boleia da caravana Famílias Como As Nossas, Ali perguntou
se ia poder ver o mar. Nuno Félix, o mentor e motor da iniciativa de apoio a
refugiados, respondeu-lhe com o seu sorriso-conquista-desconhecidos e duas
frases: o mar ia ficar-lhe à vista do terraço de casa; uns minutos a pé e
tê-lo-ia à sua espera todos os dias.
Foi
por isso para a praia que Nuno decidiu trazer Ali, com a mulher, Nada, 27 anos,
e as filhas, Dima, Inas e Rimas, logo na sua primeira manhã em São Martinho do
Porto. Ao fim de um bocado, já as três miúdas se misturavam com os seus quatro
filhos, Henrique, Pilar, Manel e Gastão, como se todos se conhecessem. E Ali,
que de início se deixara a uma distância respeitável da água, haveria de se
aproximar da rebentação de mão dada com a filha mais nova.
BOAS-VINDAS
COM 'HALVA'
Estaria
apenas a apreciar a beleza do lugar? Ou será que o mar lhe traz à memória a
perigosa travessia entre a Turquia e a Grécia, feita há menos de três semanas?
Não chegamos a perguntar-lhe porque Richard e Frank (seus vizinhos no
condomínio onde Nuno e a mulher, Vera, conseguiram um apartamento emprestado),
têm duas embalagens de halva para oferecer. Halva é um doce típico do Médio
Oriente, feito de sementes de sésamo torradas, moídas e misturadas com açúcar,
explica-nos Francisco (Frank) Amaral, um açoriano que foi para o Canadá em bebé
e há três anos abriu uma "mercearia do mundo" em São Martinho, a
Union Jacs. Um doce que, no caso, serve para dar as boas-vindas a esta família
síria.
Richard
Paul estende as caixinhas a Ali, que lhe agradece em inglês. Depois, diz com a
voz mais rouca: "A minha família fugiu da Roménia durante o Holocausto,
por isso sei bem aquilo por que estão a passar."
O
cão ladra que se farta na direção da bola fluorescente - é a deixa para Richard
e Frank fazerem a sua saída e Vera juntar as hostes porque o mercado da vila
está quase a fechar. Vera quer apresentar o casal sírio aos vendedores a quem
ela e Nuno costumam comprar peixe, legumes e fruta, na esperança de que o
"dois em um" programado corra bem. Um: o casal sírio fica a conhecer
os cantos à casa. Dois: a operação de charme servirá para limar a eventual má
vontade contra a vinda de refugiados de guerra para São Martinho.
O
"dois em um" há de transformar-se num "três em um": Ali e
Nada aproveitam para levar batatas, tomate, pepinos, beringelas, pimentos,
maçãs e um raminho de salsa. Querem ser eles a fazer o almoço para toda a
gente.
O
'HIJAB' NÃO É UM PORMENOR
Antes
da passagem pelo mercado, o grupo é abordado no caminho por uma senhora que
encosta o carro para cumprimentar os estrangeiros. "Bem-hajam!",
repetirá Maria do Carmo Pinto de Eliseu, os apelidos a denunciarem uma ligação
antiga à vila. Se todos por aqui agirem como ela, a família de Ali sentir-se-á
rapidamente em casa. A passagem pelo mercado gerou alguns olhares de soslaio e
ouviu-se a palavra "bomba" sussurrada por um homem mal-encarado, mas
pode ser que as gentes se habituem a ver Nada com o lenço a cobrir-lhe o cabelo
e o pescoço por razões religiosas. Inshallah.
A
diferença, já se sabe, é muitas vezes um fator de exclusão nas terras pequenas,
e São Martinho do Porto tem poucos habitantes - 2 868 em 16 km2. Na freguesia
das Avenidas Novas, onde a Mesquita Central de Lisboa foi construída em 1985,
moram 21 625 pessoas numa área cinco vezes menor. Durante o dia, a zona acaba
por ser bastante multicultural e encontram-se com frequência mulheres de cabeça
coberta.
O
hijab não é um pormenor, percebeu Nuno quando, na tarde de quarta-feira, 30 de
setembro, abordou Ali na estação central de Viena, a abarrotar com centenas de
refugiados, à espera de uma oportunidade de viajar para a Alemanha. Os
corredores estão cheios de gente a dormir no chão, as paredes cobertas de caras
sob a palavra "Missing", tantas são as famílias separadas durante a
fuga. Em dois minutos, o português explicou, com a ajuda de um voluntário, que
gostaria de levar uma família de refugiados para junto de sua própria família.
Mostrou fotografias dos quatro filhos, avisou que o salário mínimo em Portugal
é menor do que na Alemanha e que a viagem representaria riscos legais. Ali
ouviu tudo calado e, no final, só quis saber se a mulher iria poder usar o
lenço fora de casa. "Claro, a minha avó também usava", respondeu
Nuno, lembrando a tradição que ainda se mantém em muitas aldeias portuguesas.
QUASE
TODOS PAIS DE FILHOS
Mas
estamos a pôr o carro à frente dos bois, como se costuma dizer para criticar os
apressados, embora já sobrem poucos carros de bois em Portugal. Quem leu o
artigo sobre a missão da caravana Famílias Como As Nossas na edição anterior e
o "diário de bordo" que foi sendo publicado no site pode saltar os
próximos parágrafos. Os outros, façam o favor de acompanhar. Tudo começou com
uma conversa entre os amigos Nuno Félix e Pedro Policarpo, ambos pais de quatro
filhos e ambos com menos de 40 anos. Face às notícias da crise dos refugiados
na Europa, não eram capazes de continuar a olhar para o lado e decidiram
meter-se nos seus carros a caminho da Croácia. No regresso, anunciaram no
Facebook, haveriam de trazer famílias como as deles, com o objetivo de lhes proporcionar
vidas melhores. E quem viesse por bem que se juntasse à dupla (mais copilotos),
sabendo que iria por sua conta e risco.
Uns
dias antes da partida, Nuno dizia à VISÃO: "O mínimo que se deve fazer é
acolher provisoriamente estas pessoas." Socorrê-las rapidamente.
"Lembrem-se do princípio de quem anda no mar", comparava. "Vemos
um náufrago e não vamos analisar se há espaço no barco." Quando lhe
perguntavam se poderiam ser detidos nalguma fronteira, respondia que só podia
garantir que não fariam nada sem estarem salvaguardados por uma argumentação
jurídica sólida. "Se analisarmos a Convenção de Genebra e o Estatuto do
Refugiado, ninguém pode dizer que estas pessoas não preenchem todos os
requisitos."
Dali
a uma semana, na tarde de sexta-feira, 25, apareceram em Belém outros quatro
carros com gente disposta a fazer mais de seis mil quilómetros para ir buscar
refugiados de guerra. Gente diferente entre si mas afinada pelo mesmo diapasão.
Gente pronta a fazer a viagem no menor número de horas possível, a dormir em
andamento se necessário.
Era
esse o espírito de Pedro Mourão Lapa, de 46 anos, Vera Valério Batista, 39,
Bárbara Guevara, 35, Rita Rugeroni, 32, Paulo Leão, 44, David Franco, 46,
Carlos Alcário, 32, e Carlos Neves, 42. E ainda de André Ponte, 37, e Tiago
Raimundo, 24, que se tinham oferecido para copilotos de Nuno Félix e Pedro
Policarpo. No grupo havia empresários e gestores, mas também um estudante, uma
enfermeira, um artista plástico e duas locutoras de rádio. O que fazem não é
importante. "Venho porque tenho filhos", ouviríamos à maioria.
O
destino final seria a Croácia mas, logo em Madrid, juntou-se Carolina, uma
videógrafa portuguesa, e em Milão subiu a bordo o apresentador de televisão
João Manzarra, amigo de Bárbara e Rita, e que, por compromissos profissionais,
ficaria apenas até à noite de terça-feira, 29. Enquanto acelerávamos, em
Portugal prosseguiam os contactos no terreno. A Eslovénia chegou a ser uma
hipótese, descartada à chegada a Liubliana porque os refugiados já se
encontravam em centros. A Croácia acabaria por tornar-se num dos momentos mais
fortes da viagem, com a visita a Opatovac, um campo junto à fronteira com a
Sérvia. Foi aí que os portugueses deixaram todos os bens trazidos de Lisboa e
compraram mais de dois mil euros em roupa para o inverno. E foi aí que ficou
parte dos corações da caravana. Dói ver refugiados a saírem das carrinhas da
polícia apenas de calções e sandálias, cobertos por ponchos de plástico que
deixam passar a chuva.
De
Opatovac, o grupo seguiria em direção a Viena porque as notícias mostravam a
estação central cheia de gente. Mas nessa quarta-feira, 30 de setembro, nem
todos decidiriam continuar viagem. Pedro Policarpo e André Ponte já tinham
desistido uns dias antes, por questões pessoais. Os outros sentiam-se quase
todos desconfortáveis com a ideia de terem de fazer a oferta diretamente às
pessoas e com a hipótese de serem barrados numa fronteira. "Se for como à
entrada na Sérvia...", lembrou alguém. Ali, um europeu que seja
intercetado a passar com ilegais paga uma multa de 400 euros, e os refugiados são
imediatamente detidos.
Reunido
o grupo num dos cafés da Wien Hauptbahnhof, contam-se os resistentes: Vera
Batista, Pedro Lapa e Paulo Leão. Dois carros com lugar para nove refugiados,
no total, porque o monovolume de Nuno sofreu uma avaria na Hungria. "Vamos
lá!", anima Leão, dono de uma empresa de transportes urgentes, que se pela
por missões impossíveis.
Ali
e Nada não foram os primeiros a ouvir o convite dos portugueses, mas seriam os
mais rápidos a decidir. E aceitaram logo escrever uma declaração em como vinham
para Portugal voluntariamente e tinham consciência de que poderiam ser detidos
durante a viagem. Já haviam corrido riscos bem maiores, na viagem desde a
Síria. "Tive medo até à Áustria", confessa agora Nada. "Sempre
que passávamos uma fronteira pensava que a polícia ia deter-nos. Expliquei às
minhas filhas que íamos em segredo, elas tinham de estar caladas."
VINTE
E CINCO DIAS À ESPERA DE UM BARCO
Entre
a Síria e a fronteira com a Turquia, os cinco foram andando de carrinha em
carrinha, de traficante em traficante. Dentro da Turquia, juntaram-se a um
grupo de duzentas pessoas para fazer uma longa caminhada. Era de noite, Rimas
foi passando das cavalitas do pai para as de um tio, que hoje está na Alemanha,
e Dima e Inas revezavam-se num carrinho de bebé empurrado por Nada. Os rapazes
mais novos do grupo seguiam na frente; no caso de haver perigo, correriam para
trás, a avisar os outros.
Ainda
na Turquia, Ali demorou vinte e cinco dias até conseguir cinco lugares num
barco que atravessasse o mar até à Grécia. Nada e as miúdas choraram durante as
duas horas e meia de viagem e Ali sentiu-se entre a vida e a morte. Só respirou
quando o barco, com seis metros de comprimento e quarenta e sete pessoas a
bordo, chegou a terra firme. "Nesse momento, nasci outra vez", diz,
sorrindo, na segurança do seu quarto em São Martinho, mostrando no telemóvel as
fotografias que alguém tirou à família, ainda com coletes salva-vidas.
Os
cinco foram registados na chegada à Grécia e deviam apresentar-se às
autoridades gregas em novembro, mas meteram pés ao caminho. Ali tem dois irmãos
na Alemanha, era para lá que planeavam ir. Chegariam a Viena depois de passar
pela Macedónia, Sérvia, Croácia e Hungria, gastando mais de 6 500 euros.
IR
À ESCOLA E BRINCAR NUM JARDIM
Dima
tem 9 anos, Inas 7 e Rimas 4. São baixinhas para a idade que consta no
documento de família mas mostram-se autónomas e obedientes. O pai conta que
elas passaram os últimos meses na Síria a correr para a cave sempre que se
ouvia uma bomba cair. "Ficávamos lá quatro ou cinco horas e eu dizia-lhes
que as bombas estavam longe para não terem tanto medo."
O
dia a dia da família alterara-se há já muito tempo. Com a guerra, tinham-se
acabado os passeios e até as idas à escola. Nada chegou a ser ameaçada na rua
por usar um hijab em vez do niqab, que deixa apenas ver os olhos. Em janeiro
deste ano, Ali tomou a decisão de fugir com a família depois de fechar o seu
ateliê de alfaiate e vender uma pequena loja de ourivesaria. Órfão de mãe desde
os 7 anos, morrera-lhe o pai um ano antes, com um ataque cardíaco. O sogro foi
raptado e nunca mais apareceu. Viu vários familiares serem presos e todos os
dias lhe chegavam notícias da morte de amigos.
Nada
resistiu como pôde até aceitar que o futuro passaria pela Europa. "No
início, não gostei da ideia", admite, "porque a cultura é diferente e
pensava que não iam receber-nos bem." Mas, a partir do momento em que
decidiu, organizou tudo de forma a tornar a viagem menos difícil.
"Preparei as minhas filhas: disse-lhes que quando chegássemos iam poder ir
à escola e brincar num jardim, o sonho delas é fazerem isso." Antes de
fugirem da Síria, há um mês e meio, combinou com o marido que todos comeriam e
beberiam o menos possível para evitar idas à casa de banho, e que as miúdas
usariam sempre fraldas.
A
estratégia manter-se-ia imutável entre Viena e Elvas, já no carro conduzido por
Nuno e Vera, porque o ideal seria parar em zonas de descanso durante o dia e
usar as áreas de serviço à noite. Era preciso não chamar a atenção. Por estes
dias, uma mulher de hijab num monovolume com matrícula portuguesa levanta
suspeitas. Há muitos traficantes de pessoas a operar na Europa e as autoridades
apertaram o controlo nas fronteiras.
'IMORAL
É NÃO OS AJUDAR'
Posto
alfandegário austríaco na fronteira com a Itália, fim da tarde de quinta-feira,
?1 de outubro. No carro da equipa de reportagem da SIC, onde seguimos à boleia
desde a Hungria, gelamos. O carro de Pedro Lapa, conduzido por Nuno, é mandado
encostar porque falta a vinheta necessária para aceder às autoestradas na
Áustria - são 140 euros de multa. Uma distração fatal que levou o funcionário a
reparar em Nada. Pediu os passaportes de toda a gente, proibiu Nuno de usar o
telemóvel e chamou a polícia.
Começaram
os telefonemas de e para Portugal porque Nuno ainda conseguira avisar a mulher
e ligar para dois contactos que tinham prometido valer-lhe em caso de surgir
algum problema grave. O tempo passa. Meia hora? Uma hora? Vera, enfermeira e
psicóloga clínica, pede a Ali que traduza para Nada uma desculpa de meia
tigela: os austríacos só vão querer revistar o carro para ver se há droga ou
armas. As miúdas mantêm-se sossegadas, como lhes pede a mãe. Começa a escurecer
quando dois polícias chegam numa carrinha com espaço para levar uma dúzia de
pessoas. A família será detida e interrogada, e vão registar os últimos
telefonemas de Nuno, avisam. "As autoridades portuguesas não mandam
aqui."
A
repórter da SIC, Teresa Conceição, sabe alemão, um trunfo, descobriremos daqui
a pouco. O polícia mais velho acusa os portugueses de estarem a fazer uma coisa
imoral. Bastou essa frase para ela dizer que imoral é haver uma guerra na Síria
há quatro anos, não ajudar as pessoas que estão a fugir e condenar quem
tenta dar-lhes a mão. "Esta é uma iniciativa de pais de família que só
querem ajudar os refugiados", explicou.
O
polícia hesitou e voltou atrás na palavra - a família de refugiados poderia
seguir caminho desde que pagasse uma multa de 200 euros por circular na Áustria
sem documentos. "Ainda bem que foram parados aqui, na Itália iam todos
presos", disse o homem à despedida, apontando para a placa de fronteira,
uns metros à frente.
Relembramos
tudo isto na segunda-feira, 5 de outubro, enquanto esperamos que Ali, Nada e as
filhas saiam do gabinete do SEF, em Lisboa, onde estão há várias horas a
regularizar a situação. O pedido de asilo fora entregue sexta à noite, mal
entraram em Portugal. Agora, ficaram numa sala do rés do chão, acompanhados por
dois ?advogados pro bono, André Miranda e Diana Nunes, enquanto Nuno Félix foi
chamado ao primeiro andar.
"Fomos
muito bem recebidos", dirá Nuno, à saída, todo sorrisos. As três miúdas
riem à gargalhada, querem beijinhos e pedem para dançar a valsa ao colo de
alguém. Ali leva a mão ao peito, no lado do coração, e agradece em volta. Mas o
sorriso mais delicioso é o de Nada - até se esquece de pôr a mão à frente da
boca, como devem fazer as mulheres muçulmanas. Já se sente em casa.
Rosa
Ruela (texto) – Tiago Miranda (fotos) - Foto:
Tiago Miranda - Visão
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