terça-feira, 11 de agosto de 2015

ANÁTEMA FEUDAL – III



 Martinho Júnior, Luanda

3 – A Federação Russa perdeu uma parte enorme de potencial militar em relação ao que foi a URSS, mas possui uma base científica-tecnológica capaz de superar os desafios e os obstáculos contemporâneos.

Sendo o maior país em extensão da Terra e o único com território em dois continentes (a Europa e a Ásia), a Federação Russa adopta uma doutrina defensiva e ao mesmo tempo dissuasora e por isso capaz de contra golpes.

A Rússia assestou contra golpes limitados em conflitos fronteiriços, ou próximos, como nos casos da Chechénia, da Geórgia, ou da Ucrânia, assim como garantiu capacidade de defesa à Síria no Mediterrâneo Oriental, de forma a simultaneamente alargar a malha de cobertura da sua frota do Mar Negro.

A Federação Russa é a potência que mais tanques possui, algo que tem a ver com as preocupações de cobertura de sua enorme extensão territorial, estando agora a introduzir novas e vantajosas tecnologias ao nível dos seus corpos de tanques, de blindados, de artilharia e de agrupamentos de mísseis.

A Rússia tem feito um aproveitamento das técnicas militares que tiveram seu curso durante o período de “Guerra Fria”, introduzindo tecnologias avançadas, algo que pode ser constatado nos vários ramos das suas Forças Armadas.

A Rússia possui poucas bases “ultramarinas” e nas suas fronteiras marítimas domina no Árctico, mantém uma força notável em relação ao Pacífico e sistemas defensivos em profundidade nos circuitos fechados do Báltico e do Mar Negro.

Sentindo a necessidade de dissuasão por via de contra golpes, a Federação Russa possui vantagens no número de ogivas nucleares e começa a estabelecer pontos de apoio a partir de alianças, inclusive fora da Euro-Ásia (caso da Venezuela, na América do Sul).

Em relação aos componentes dos BRICS, a Rússia é o principal fornecedor de armamento em relação à China e à Índia, em todas as componentes das respectivas forças armadas, podendo em breve vir a ser o principal fornecedor do Brasil.

A manobra militar russa ocorre no hemisfério norte e é muito rarefeita no hemisfério sul.

A poderosa frota do Norte serve de pontual reforço sempre que a Federação acha necessário, quer às frotas que cobrem o Atlântico (Báltico e Mar Negro), quer à frota do Pacífico.

Conforme escrevi em “Verão quente no leste da Europa”:

… “O facto da Federação Russa recorrer à memória histórica e épica da URSS na IIª Guerra Mundial, tem muito mais a ver com a mobilização para a resistência hoje, de forma a garantir a inviolabilidade da Federação Russa, do que com qualquer nostalgia dessa época, ou uma referência consistente ao socialismo de então!

O governo do tandem Putin-Medvedev é obrigado a enveredar por uma doutrina nacionalista com recurso a essa memória histórica, capaz de garantir o máximo de homogeneidade no imenso espaço euro-asiático da Federação Russa e os desfiles comemorativos do 70º aniversário da vitória sobre a Alemanha Nazi, são disso testemunho”…

É evidente que, com uma economia de mercado e vivendo o impacto de ideologias indexadas ao capitalismo, a Rússia, como os outros BRICS, é forçada à associação multipolar, onde encontra espaço para suas doutrinas de resistência à hegemonia unipolar.

É evidente também, perante um processo dialéctico desta natureza, que o anátema feudal acaba por se fazer sentir também na Rússia e,  prova disso, é o papel que está agora reservado à igreja ortodoxa, como factor que contribui para a coesão promotora da Federação Russa, face aos riscos de implosão.

Esse tipo de alianças, seriam impossíveis nos termos em que se regia a URSS e os países socialistas que compunham o Pacto de Varsóvia, pelo que na corrente guerra psicológica, o “conflito de civilizações” introduzido pela doutrina Bush, não perde de vista os factores religiosos e étnicos.

À dialéctica da “Guerra Fria”, entre o campo capitalista e o socialista, o anátema feudal teve e tem tudo a ganhar, pelo tipo de contradições que estão a ser geradas!

*Mapa do cerco militar levado a cabo pelos Estados Unidos e seus aliados-vassalos à Rússia (clicar para ampliar)

A (IMPAGÁVEL) DÍVIDA MUNDIAL




dívida mundial já vai nos US$60 milhões de milhões (trillion), sendo um terço da mesma da responsabilidade dos EUA.

A quota parte de Portugal nessa dívida é de 0,49%. Ou seja, ela é exactamente igual à da Rússia – também de 0,49%. Compare-se a diferença entre a dimensão das economias destes dois países...

Se ao invés de medir a dívida mundial em números absolutos ela fosse medida em percentagem do PIB, a dívida da Rússia seria próxima de zero. E a de Portugal já anda próxima dos 135% do PIB, com tendência para aumentar.

Vale a pena ler o livro de Cédric Durand acerca do capital fictício . O desaparecimento do mesmo é a condição prévia indispensável para o desaparecimento da crise do capitalismo.

Publicado em Resistir.info (clicar na imagem para ampliar)

O PRISIONEIRO QUE APAVORA O IMPÉRIO AMERICANO




A história da perseguição kafkiana a Julian Assange, criador do Wikileaks. Questão crucial: como Washington poderá mantê-lo aprisionado após 20/8, quando prescrevem seus “crimes”?

John Pilger – Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho

Reportagem em duas partes. Leia a primeira aqui

O caso Assange chegou à Suprema Corte do Reino Unido, finalmente, em maio de 2012. Num julgamento que acolheu o mandato de detenção europeu (EAW, European Arrest Warrant) – cujas rígidas exigências não deixaram quase nenhuma margem de manobra aos tribunais – os juízes acharam que os procuradores europeus podiam emitir mandatos de extradição no Reino Unido, sem qualquer supervisão judicial, apesar de o Parlamento pretender o contrário. Eles deixaram claro que o Parlamento havia sido “enganado” pelo governo Blair. O tribunal ficou dividido, 5 a 2, e decidiu contra Assange.

Contudo, o presidente da Suprema Corte, Lord Phillips, cometeu um erro. Ele aplicou a Convenção de Viena na interpretação de tratados, permitindo que o Estado ignorasse a letra da lei. Como apontou a advogada de Assange, Dinah Rose QC, isso não se aplica ao EAW.

A Corte Suprema reconheceu esse erro crucial somente quando teve de lidar com outra apelação contra o mandato, em novembro de 2013. A decisão sobre Assange estava errada, mas era tarde demais para retroceder. Com a iminência da extradição, o procurador sueco disse aos advogados de Assange que este, uma vez na Suécia, seria imediatamente levado a uma das infames prisões preventivas da Suécia.

Era difícil a escolha de Assange: extradição para um país que se recusou a dizer se ia ou não enviá-lo para os EUA; ou ir atrás do que parecia ser sua última oportunidade de refúgio e segurança. Apoiado pela maioria dos países da América Latina, o corajoso governo do Equador concedeu ao criador do Wikileaks o status de refugiado, com base em provas documentais e aconselhamento jurídico de que ele enfrentava perspectiva de punição cruel e incomum nos EUA; de que essa ameaça violava seus direitos humanos básicos; e de que próprio governo dele, a Austrália, o havia abandonado e era conivente com Washington. A primeira-ministra trabalhista australiana, Julia Gillard, havia até mesmo ameaçado deter seu passaporte.

Gareth Peirce, a renomada advogada de direitos humanos que representa Assange em Londres, escreveu ao então ministro do exterior australiano, Kevin Rudd: “Dado o alcance do debate público, frequentemente baseado em pressupostos inteiramente falsos … é muito difícil tentar preservar para Assange qualquer presunção de inocência. Assange tem agora sobre sua cabeça não uma, mas duas espadas de Dâmocles, de potencial extradição para duas jurisdições diferentes por causa de dois supostos crimes, nenhum dos quais são crimes em seu próprio país, e sua segurança pessoal está em risco em circunstâncias altamente carregadas de teor político.”

Somente quando contatou o Alto Comissariado Australiano em Londres, Peirce recebeu uma resposta – que não replicava nenhum dos pontos levantados. Numa reunião a que compareci com ela, o cônsul geral australiano, Ken Pascoe, fez a espantosa afirmação de que sabia “apenas o que leio nos jornais” sobre os detalhes do caso.

Enquanto isso, a perspectiva de um erro judiciário grotesco ficou submersa numa campanha injuriosa contra o fundador do WikiLeaks. Profundamente pessoal, mesquinha, com ataques cruéis e desumanos dirigidos a um homem não acusado de qualquer crime, e ainda assim submetido ao mesmo tratamento de um réu que enfrenta extradição acusado de assassinar sua esposa. O fato de que a ameaça sofrida por Assange significava uma ameaça a todos os jornalistas, à liberdade de expressão, ficou esquecido em meio à sordidez e ambição.

Publicaram-se livros, negociaram-se filmes, carreiras na mídia foram alavancadas às custas do WikiLeaks, com a suposição de que atacar Assange era um jogo justo e ele era pobre demais para processá-los. As pessoas ganharam dinheiro, muito dinheiro, enquanto o WikiLeaks lutava para sobreviver. O editor do The Guardian, Alan Rusbridger, considerou as revelações do WikiLeaks, que seu jornal publicou, “um dos maiores furos jornalísticos dos últimos 30 anos”. A publicação tornou-se parte de seu plano de marketing para aumentar o preço de capa do jornal.

Sem que um centavo sequer fosse para Assange ou para o WikiLeaks, um badalado livro do Guardian conduziu a um lucrativo filme de Hollywood. Os autores do livro, Luke Harding e David Leigh, descreveram Assange, gratuitamente, como uma “personalidade destruída” e “cruel”. Eles também revelaram a senha secreta que Assange havia dado em confiança ao jornal, destinada a proteger um arquivo digital com os telegramas da embaixada dos EUA. Com Assange agora preso na embaixada do Equador, Harding, postado do lado de fora, junto à polícia, regozijou-se em seu blog dizendo que “a Scotland Yard deverá rir por último.”

A injustiça cometida contra Assange é uma das razões pelas quais o Parlamento reformou, mais tarde, o Ato de Extradição (Extradition Act), para prevenir o mau uso do mandato de detenção europeu. A perseguição draconiana usada contra ele não poderia mais acontecer; acusações teriam de ser feitas e “interrogatórios” seriam insuficientes como base para extradição. “Seu caso foi encerrado, estocado e colocado num barril”, disse-me Gareth Peirce, “essas mudanças na lei significam que o Reino Unido agora reconhece como certo tudo o que foi argumentado em seu caso. No entanto, isso não o beneficia.” Em outras palavras, a mudança na legislação do Reino Unido, em 2014, significa que Assange teria ganho o caso e não seria forçado a asilar-se.

A decisão do Equador de proteger Assange em 2012 tornou-se um grande caso internacional. Embora a garantia de asilo seja um ato humanitário, e o poder de fazê-lo usufruído por todos os Estados sob a legislação internacional, tanto a Suécia como o Reino Unido recusaram-se a reconhecer a legitimidade da decisão do Equador. Ignorando a lei internacional, o governo Cameron recusou-se a garantir para Assange uma viagem segura até o Equador. Ao contrário, a embaixada equatoriana foi cercada e seu governo sofreu abusos, com uma série de ultimatos. Quando o ministro do Exterior, Willian Hague, ameaçou violar a Convenção de Viena de Relações Diplomáticas, anunciando que iria remover a inviolabilidade diplomática da embaixada e mandou a polícia prender Assange, a indignação causada em todo o mundo forçou o governo a recuar. Numa noite, a polícia apareceu na janela da embaixada em uma tentativa óbvia de intimidar Assange e seus protetores.

Desde então, Julian Assange tem vivido confinado num pequeno quarto sob a proteção do Equador, sem tomar sol e sem espaço para se exercitar, cercado pela polícia com ordem para prendê-lo. Durante três anos, o Equador deixou claro à promotora pública sueca que Assange está disponível para ser interrogado na embaixada de Londres, e por três anos ela se manteve intransigente. Nesse período, a Suécia interrogou, no Reino Unido, 44 pessoas ligadas à investigações policiais. Seu papel, e o do Estado sueco, é evidentemente político; e para a promotora Marianne Ny, que cuida do caso e se aposentará em dois anos, é necessário “vencer”.

Desesperado, Assange recorreu do mandato de prisão nos tribunais suecos. Seus advogados citaram acórdãos do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, lembrando que ele esteve sob detenção arbitrária e indefinida, que já foi virtualmente prisioneiro por mais tempo que qualquer pena efetiva cabível em seu caso, ainda que fosse considerado culpado. O juiz do Tribunal de Segunda Instância concordou com os advogados de Assange: a promotora havia efetivamente violado o direito, ao manter o caso suspenso durante anos. Outro juiz emitiu uma repreensão ao Ministério Público. E ainda assim a promotora Ny desafiou o tribunal.

Em dezembro passado, Assange levou seu caso à Suprema Corte sueca, que pediu explicações ao chefe de Marianne Ny – o Promotor Geral da Suécia, Anders Perklev. No dia seguinte Ny anunciou, sem explicações, que havia mudado de ideia e iria interrogar Assange em Londres.

Em sua apresentação à Suprema Corte, o procurador geral fez algumas concessões importantes: argumentou que a coerção de Assange havia sido “intrusiva” e que o período na embaixada foi de “grande pressão” sobre ele. Admitiu inclusive que, se o processo tivesse algum dia ido para acusação, julgamento, e cumprimento de sentença na Suécia, Julian Assange já teria deixado a prisão há muito tempo.

Numa decisão dividida, um juiz da Corte Suprema argumentou que o mandato de prisão deveria ter sido revogado. A maioria dos juízes resolveu que, já que a promotora disse que iria agora para Londres, os argumentos de Assange haviam se tornado “consideráveis”. Mas o Tribunal de Justiça decidiu que, se ela não tivesse mudado de ideia de repente, teria se pronunciado contra a procuradora. Justiça por capricho. Em artigo publicado na imprensa sueca, um antigo procurador sueco, Rolf Hillegren, acusou Ny de perder toda e qualquer imparcialidade. Ele descreveu como “anormal” sua manutenção no caso e exigiu que ela fosse substituída.

Tendo dito que iria para Londres em junho, Ny não foi, mas enviou um representante, sabendo que o interrogatório não seria legal nessas circunstâncias, especialmente porque a Suécia não se dignou pedir ao Equador que marcasse o encontro. Ao mesmo tempo, seu escritório avisou o tabloide sueco Expressen, que mandou seu correspondente em Londres ficar esperando “notícias” no lado de fora da embaixada do Equador. A notícia foi que Ny estava cancelando o compromisso e culpava o Equador pela confusão; e ainda, implicitamente, que Assange era “não cooperativo” – quando a verdade era justamente o oposto.

À medida em que se aproxima a data de prescrição dos “crimes” atribuídos a Assange – 20 de agosto de 2015 – vai ter início, certamente, outro capítulo desta história horrenda. Marianne Ny tentará tirar mais um coelho da cartola, para beneficiar o os comissários e procuradores em Washington. Talvez nada disto seja surpreendente. Em 2008, uma guerra contra o WikiLeaks e Julian Assange foi prevista num documento secreto do Pentágono preparado pelo “Setor de Avaliação de Cyber-contrainteligência”. Ele descreve um plano detalhado para destruir o sentimento de “confiança”, que é o ‘”centro de gravidade” do WikiLeaks. Isto poderia ser conseguido com ameaças de “exposição [e] processo criminal”. O objetivo era silenciar e criminalizar essa rara fonte de informação verdadeira no jornalismo contemporâneo, difamando seu método. Enquanto esse escândalo continua, a própria noção de justiça fica reduzida, juntamente com a reputação da Suécia, e a sombra da ameaça dos Estados Unidos da América paira sobre todos nós.

Para importante informação adicional, acesse os seguintes links:

A ATUALIDADE CHOCANTE DE ADMIRÁVEL MUNDO NOVO




Oito décadas depois, romance de Huxley ganha nova atualidade, ao alertar que sociedades de controle podem apoiar-se, além da repressão, na tecnologia e culto do “progresso”

Ignacio Ramonet – Outras Palavras -  Tradução: Antonio Martins - Imagem: Katarina Macurova

Breve, terão se completado 75 anos da primeira edição brasileira (1941) de Admirável Mundo Novo1, grande romance perturbador lançado em 1932, na Inglaterra, pelo visionário filósofo e escritor Aldous Huxley.

Diante de tanta “felicidade artificial” em nossos dias, tantas manipulações e tantos condicionamentos contemporâneos, cabe perguntar: seria útil reler Admirável Mundo Novo? Acaso é necessário retomar um livro escrito há mais de oito décadas, numa época tão distante que a Internet não existia e sequer a TV havia sido inventada? Seria este romance algo mais que uma curiosidade sociológica, umbest-seller ordinário e efêmero, de que se venderam, em inglês, mais de um milhão de exemplares, já no ano de sua publicação?

Estas questões parecem ainda mais pertinentes porque o gênero a que pertence a obra – ficção científica, distopia, fábula de antecipação, a utopia científico-técnica – possui um grau muito elevado de obsolescência. Nada envelhece mais rápido que o futuro, sobretudo na literatura.

No entanto quem, superando estas reticências, mergulhar nas páginas do romance ficará chocado por sua surpreendente atualidade. Ficará claro que, pelo menos uma vez, o passado capturou o presente. Recordemos que o autor, Aldous Huxley (1894-1963), narra uma história que transcorre num futuro muito distante, próxima ao ano 2500 ou, mais precisamente “no ano 600 da Era Fordiana”, em alusão satírica a Henry Ford (1863-1947), pioneiro norte-americano da indústria automobilística e inventor de um método de organização de trabalho para a fabricação em série e padronização de peças. Tal método, conhecido como “fordismo”, transformou os trabalhadores em algo inferior a autômatos, robôs que repetiam, ao longo da jornada de trabalho, um único gesto. Sua emergência suscitou, à época, críticas violentas: pensemos, por exemplo, nos filmes Metropolis (1926), de Fritz Lang, ou Tempos Modernos (1935), de Charles Chaplin.

Aldous Huxley escreveu Admirável Mundo Novo, visão pessimista do futuro e crítica feroz do culto positivista à ciência, num momento em que as consequências sociais da grande crise de 1929 afetavam em cheio as sociedades ocidentais, e em que a crença no progresso e nos regimes democráticos parecia vacilar.

Publicado em inglês antes da chegada de Hitler ao poder na Alemanha (1933), Admirável Mundo Novo denuncia a perspectiva “de pesadelo” de uma sociedade totalitária fascinada pelo progresso científico e convencida de poder oferecer a seus cidadãos uma felicidade obrigatória. Apresenta a visão alucinada de uma humanidade desumanizada pelo condicionamento pavloviano2 e pelo prazer ao alcance de uma pílula (o “soma”). Num mundo horrivelmente perfeito, a sociedade decide totalmente, com fins eugenistas e produtivistas, a sexualidade da procriação.

É uma situação não tão distante da que se vive hoje em alguns países (sobretudo na Europa), em que os efeitos da crise de 2008 estão provocando o ascenso de partidos de extrema direita, xenófobos e racistas. Onde os anticoncepcionais já permitem um amplo controle da natalidade. E onde novas pílulas (como o Viagra e a feminina Lybrido) dopam o desejo sexual e o prolongam até além da terceira idade. Ao mesmo tempo, as manipulações genéticas permitem cada vez mais aos pais a seleção de embriões, para engendrar filhos em função de critérios pré-determinados – inclusive estéticos.

Outra relação surpreendente com a atualidade é que o romance de Huxley apresenta um mundo onde o controle social não dá espaços ao acaso, onde, formadas a partir do mesmo molde, as pessoas são “clônicas”, produzidas em série. A maioria tem garantidos o conforto e a satisfação dos únicos desejos que está condicionada a experimentar, mas perdeu-se, como diria Mercedes Sosa, a razón de vivir3.

Em Admirável Mundo Novo, a americanização do planeta está completa, a História acabou (como afirmaria, mais tarde, Francis Fukuyama4), tudo foi padronizado e “fordizado” – tanto a produção dos seres humanos, resultado de puras manipulações genético-químicas, quanto a identidade das pessoas, produzida durante o sonho por hipnose auditiva: a “hipnopedia”, qualificada por um personagem do livro como “a maior força socializante e moralizante de todos os tempos”.

Os seres humanos são “produzidos” no sentido industrial do termo, em fábricas especializadas – os “centros de incubação e condicionamento” – segundo modelos variados, que dependem das tarefas muito especializadas que serão atribuídas a cada um, e que são indispensáveis para uma sociedade obcecada pela estabilidade.

Desde seu nascimento, cada ser humano é, além disso, educado em “centros de condicionamento do Estado”. Em função dos valores específicos de seu grupo, e por meio do recurso maciço à hipnopedia, criam-se nele os “reflexos condicionados definitivos” que o fazem aceitar seu destino.

Aldous Huxley ilustrava assim os riscos implícitos na tese que vinha sendo formulada, desde 1924, por John B. Watson, o pai do “condutivismo”5, esta suposta “ciência da observação e controle do comportamento”. Watson afirmava com frieza que podia escolher na rua, ao acaso, uma criança saudável e convertê-la, à sua vontade, em médico, advogado, artista, mendigo ou ladrão, independentemente de seu talento, inclinações, capacidades, gostos e origem de seus ancestrais.

Em Admirável Mundo Novo, que é fundamentalmente um manifesto humanista, alguns viram também, com razão, uma crítica ácida à sociedade stalinista, à utopia soviética construída com mão de ferro. Mas também há, claramente, uma sátira à nova sociedade mecanizada, padronizada, automatizada que se criva à época nos Estados Unidos, em nome da modernidade técnica.

Extremamente inteligente e admirador da ciência, Huxley expressa no romance, no entanto, um profundo ceticismo em relação à ideia de progresso, e desconfiança diante da razão. Frente à invasão do materialismo, o autor engendra uma interpretação feroz às ameaças do cientificismo, do maquinismo e do desprezo à dignidade individual. Claro que a técnica assegurará aos seres humanos um conforto exterior total, de notável perfeição, estima Huxley com desesperada lucidez. Todo desejo, na medida em que possa ser expresso e sentido, será satisfeito. Os seres humanos terão, nesse ponto, perdido sua razão de ser. Terão transformado a si mesmos em maquinas. Já não se poderá falar, em sentido estrito, de “condição humana”.

Mas o “condicionamento” não cessou de se intensificar desde a época em que Huxley publicou o livro e anunciou que, no futuro, seríamos manipulados sem que nos déssemos contas. Em particular, pela publicidade. Por meio do recurso a mecanismos psicológicos e graças a técnicas muito experimentadas, nos mad men da publicidade conseguem que compremos um produto, um serviço ou uma ideia. Este modo, convertemo-nos em pessoas previsíveis, quase teledirigidas. E felizes.

Confirmando as teses de Huxley, Vance Packar publicou The Hidden Persuaders (na edição brasileira, Nova Técnica de Convencer), em meados da década de 1950 e Ernest Dichter e Louis Cheskin denunciaram que as agências de publicidade tentavam manipular o inconsciente dos consumidores. Sobretudo mediante o uso de “publicidade subliminar”, nos meios de comunicação de massas. Em 30 de outubro de 1962, executou-se um teste que demonstrava a eficácia da publicidade subliminar.: durante a exibição de um filme, lançavam-se mensagens “invisíveis” sobre certos produtos, em intervalos regulares. As vendas de tais produtos aumentaram.

Atualmente, a “publicidade subliminar” avançou e existem técnicas mais sofisticadas e mais perversas para manipular a mente do ser humano6. Por exemplo, mediante as cores que modificam nostras percepções e influenciam nostras decisões. Os especialistas emmarketing sabem disso e utilizam as técnicas para orientar nossas compras.

Num conhecido experimento de finais dos anos 1960, Louis Cheskin, diretor do Instituto de Pesquisa da Cor, pediu a um grupo de donas de casa que experimentassem três caixas de detergentes e decidissem qual delas dava melhor resultado com roupas delicadas. Apesar de as três conterem o mesmo produto, as reações foram distintas. O detergente da caixa amarela foi considerado “forte demais”, o da cor azul foi visto como não tendo “força para limpar”. Ganhou a caixa bicolor.

Em outro teste, duas amostras de cremes de beleza foram dados a um grupo de mulheres: uma num recipiente rosa; outra, num de cor azul. Quase 80% das mulheres declararam que o creme de frasco rosa era mais fino e efetivo que o de frasco azul. Ninguém sabia que a composição dos cremes era idêntica. “Não é exagero dizer que as pessoas não apenas compram o produto per se, mas também pelas cores que o acompanham. A cor penetra na psiqué do consumidor e pode converter-se em estímulo direto para a venda”, escreve Luc Dupont em seu livro 1001 truques publicitários7.

Nos anos 1950, quando a empresa produtora do sabonete Lux começou a vender seu produto nas cores rosa, verde e turquesa, substituindo o tablete habitual de cor branca, converteu-se na líder de mercado. As novas cores sugeriam delicadeza e cuidado, intimidade e carinho e os consumidores mostraram-se entusiasmados. Mais recentemente, na Europa, o Mc Donald’s deixou sua mítica cor vermelha (uma tonalidade apreciada pelas crianças e que costuma estimular a fome), a favor do verde, numa tentativa de aproximar sua marca da comida saudável e de um estilo de vida sustentável8.

A leitura de Admirável Mundo Novo alerta contra todas estas agressões9. Sem esquecer as manipulações midiáticas10. Este romance também pode ser visto como uma sátira muito pertinente da nova sociedade delirante que está sendo construída hoje, em nome da “modernidade” ultraliberal. Pessimista e sombrio, o futuro visto por Aldous Huxley serve de advertência e anima, na época das manipulações genéticas e da clonagem, a vigiar de perto os progressos científicos atuais e seus potenciais efeitos destrutivos.

Admirável Mundo Novo ajuda a compreender melhor o alcance e os riscos e perigos que surgem quando, de novo e por todos os lados, “progressos científicos e técnicos” nos chocam com riscos ecológicos11 que põem em perigo o futuro do planeta. E da espécie humana.
1No texto original, Ramonet faz alusão aos 80 anos da primeira edição em língua espanhola, publicada em 1935 pelo editor catalão Luís Miracle. No Brasil, a Editora Globo foi pioneira em lançar Admirável Mundo Novo, em 1941, com tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano. Há em catálogo uma edição brasileira (312 páginas, R$ 21). A obra também está disponível, gratuitamente, na Internet. (Nota do Tradutor)
2Referência a Ivan Pavlov, médico russo, Prêmio Nobel de Medicina em 1904 por seus trabalhos experimentais sobre os “reflexos condicionados”, o mais célebre dos quais é o do “cão de Pavlov”.
4Em uma obra extremamente huxleyana, O fim da História e o último homem (1992).
5Ver http://www.ilustrados.com/tema/1298/Psicologia-evolutiva-conductismo-John-Broadus-Watson.html
6Ler, de Ignacio Ramonet, Propagandas silenciosas, La Habana, 2002; e, de Noam Chomsky e Ignacio Ramonet, Cómo nos venden la moto, Icaria, Barcelona, 1995.
7Luc Dupont,1001 trucos publicitarios, Lectorum, México, 2004
8Ler La Vanguardia, Barcelona, 13 de enero de 2012.
9Ler também, por exemplo, de Mertxe Pasamontes, “Una docena de modos en que nos manipulan para que estemos insatisfechos”. http://unadocenade.com/una-docena-de-modos-en-que-nos-manipulan-para-que-estemos-insatisfechos/
10Ler também, de Noam Chomsky, Diez estrategias de manipulación a través de los medios.http://www.revistacomunicar.com/pdf/noam-chomsky-la-manipulacion.pdf
11Ler Laudato sí, a Encíclica “verde” del Papa Francisco, Vaticano, 16/6/2015http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

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